“E olhando para os que estavam sentados ao seu redor, disse: ‘aqui estão minha mãe e meus irmãos”
O evangelho de Marcos tem como preocupação fundamental responder à pergunta: “Quem é Jesus”. Porém, o evangelista não elabora teorias cristológicas, mas visa despertar nos leitores uma adesão e identificação com o Mestre da Galileia.
No evangelho deste 10º domingo do Tempo Comum, Marcos revela a identidade de Jesus através de diferentes temas: a multidão que se reúne junto à casa onde Ele se encontrava, a reação de seus parentes que querem sequestrá-lo, os mestres da lei que o acusam de estar possuído por Belzebu, o pecado contra o Espírito Santo, a chegada de sua mãe e irmãos, a nova família que se reúne em torno a Ele... Embora pareça não haver uma relação e uma lógica interna no texto, estes temas tem um ponto em comum: a presença inspiradora e provocativa de Jesus. Não é mais possível permanecer neutro diante do seu modo de ser e viver, de sua liberdade, de sua transparência, de sua abertura à diversidade, de sua profunda sintonia com o Pai. Por isso, de um lado, a reação da multidão, seduzida pelo novo ensinamento de Jesus; de outro, a reação de seus familiares e escribas que não o compreendem: querem sequestrá-lo ou o acusam de fazer pacto com “belzebu”.
Jesus, desde o seu batismo, foi apresentado como o Filho de Deus, a quem todos deveriam escutar. Ele foi constituído mediador da salvação divina oferecida a toda humanidade. Suas palavras e ações, porém, tinham como princípio dinamizador o Espírito Santo, força de Deus que atuava n’Ele.
A atitude de seus parentes, que o acusavam de louco quando viram as multidões acorrerem a Ele, e a interpretação dos mestres da Lei que viam nele o poder de “belzebu”, chocava-se com a realidade da ação divina em Jesus. Isso significava negar que o Espírito Santo agia n’Ele e atribuíam ao demônio o que pertencia ao Espírito de Deus. Eis uma autêntica blasfêmia!
As acusações contundentes levantadas contra Jesus deixavam transparecer um fechamento radical à ação do Espírito. Assim como Jesus agia pela força do Espírito, do mesmo modo só quem se deixa iluminar pelo Espírito pode agir como Jesus. Quem se fecha ao Espírito, torna-se incapaz de discernir a manifestação da misericórdia de Deus, em Jesus. Fechar-se para Ele, portanto, significa fechar-se para Deus e, por conseguinte, tornar-se indigno de perdão.
Se Jesus nos alerta severamente sobre a “blasfêmia contra o Espírito Santo” é porque este pecado consiste precisamente na atitude petrificada diante da ação de Deus em nós, permanecendo desamparados, sem ninguém que nos defenda do erro e do mal. Os blasfemos se excluem a si mesmos do perdão, se separam do Espírito de Deus. Trata-se de uma clara opção fundamental pelo mal, impedindo o Espírito Santo de agir. O pecado contra o Espírito Santo não é simplesmente um ato, mas uma atitude contínua de resistência, uma cegueira radical, uma petrificação interior que bloqueia toda possibilidade do perdão de Deus.
O Espírito é a força que sustenta a nova comunidade que Jesus instituiu com seu projeto messiânico; por isso, pecam contra o Espírito aqueles que negam e rejeitam sua ação libertadora em favor dos excluídos e dos pobres. Dura foi a acusação contra Jesus; duríssima foi sua resposta. Negando-se a acolher a obra de Deus, os mestres da lei se destroem a si mesmos. Ao afirmar que Jesus “tem um espírito impuro”, eles não o rejeitam simplesmente, mas rejeitam e negam a obra salvadora de Deus em favor daqueles que são vítimas de uma sociedade injusta.
O Espírito é uma força que atua em nós e que não é nossa. É o próprio Deus inspirando e transformando nossa vida. Ninguém pode dizer que não está habitado por esse Espírito. O importante é não o apagar, avivar seu fogo, fazer com que arda purificando e renovando nossa vida.
Com a presença desta força interior, a pessoa se sente guiada pelo seu dinamismo, que lhe proporciona saúde física, lucidez mental e limpidez afetiva. É esta força que comanda os melhores momentos da vida humana como um princípio ativo, dinâmico, criativo... Tais forças primordiais, vitais, presentes nas diferentes etapas do crescimento, são essenciais ao ser humano, graças às quais ele se orienta diante das solicitações da vida pessoal e das múltiplas escolhas, constrói a sua vida pessoal e chega ao seu amadurecimento; elas assistem e sustentam o ser humano no caminho da maturidade para a plenitude do seu ser.
O mesmo Espírito, que atuava livremente em Jesus, sustenta os vínculos entre seus seguidores, constituindo a sua “nova família”.
O Reino de Deus, anunciado por Jesus, estabelece laços profundos entre aqueles que assumem seu projeto de vida. Estes laços fazem dos discípulos do Reino uma grande família, não unida pelos vínculos do sangue e, sim, pela sintonia com a vontade do Pai. A comunidade dos seguidores de Jesus, então, pode ser definida como a família do Reino, cuja característica são os laços fraternos que unem seus membros.
Assim, a ligação entre Jesus e os seus(suas) seguidores(as) é muito mais profunda do que a sua convivência física com eles. Havia algo de superior que os une, sem estar na dependência de elementos conjunturais, quais sejam, a pertença a uma determinada família, raça ou cultura.
Para Jesus, estes são seus irmãos, suas irmãs, suas mães. São irrelevantes outros títulos de relação com Ele, quando falta este pré-requisito. O critério estabelecido por Jesus possibilita a todo discípulo do Reino, em qualquer tempo e lugar, saber-se unido a Ele como a um ser querido muito próximo. Por conseguinte, é sempre possível estabelecer laços com ele pela via da afetividade.
Ser “irmão” ou “irmã” de Jesus tem sua razão de ser; mas, ser sua “mãe” parece inexplicável. No entanto, podemos buscar uma luz no mais simples e cotidiano da vida, ou seja, o que acontece na gravidez: desde o começo e de maneira progressiva, todo o interior da mãe, as paredes do seu útero, vão se ampliando para deixar um espaço cada vez maior ao bebê que está crescendo dentro dela e que precisa mover-se e desenvolver-se.
Partindo desta imagem, podemos dizer que, para nos tornar “mãe de Jesus”, precisamos liberar espaços em nossa vida, “empurrando para trás” aquilo que não nos deixa expandir e crescer. Concretamente, trata-se da vivência cotidiana do amor, no sentido de abrir lugar para os outros, de deixá-los passar primeiro, de ampliar nossa própria interioridade para que eles possam ser como são e mover-se facilmente. Descobrimos que é preciso esvaziar-nos de falsas seguranças, desapegar-nos, remover costumes, relativizar coisas...
Certamente haverá algum sinal de vida querendo crescer e abrir caminho em nosso ser profundo.
Assim, o evangelista Marcos distingue dois tipos diferentes de “irmãs”, “irmãos” e “mães” de Jesus: aqueles que estão “fora” e aqueles que estão “dentro”, no círculo. O grupo que está em torno a Jesus goza de uma grande intimidade, de uma proximidade espacial e de sintonia com o coração d’Ele. Jesus, o Mestre, ocupa o centro e a multidão, numa atitude de escuta, situa-se em torno a Ele.
O relato do evangelho deste domingo finaliza priorizando a irmandade e situando o homem e a mulher em plano de igualdade. A imagem do círculo simboliza: vínculo com Jesus (identificação) e vínculo com os outros (diferentes serviços). A circularidade facilita estabelecer a igualdade; aqui não há hierarquia, nem imposição de uns sobre os outros. A igualdade é o lugar privilegiado, o único lugar. Todos vivem serviços diferentes, inspirados pelo modo de ser e viver do mesmo Jesus.
Texto bíblico: Mc 3,20-35
Na oração: Muitas vezes, nossas vidas giram em torno àquilo que dá a sensação de segurança: riqueza, vaidade, poder, prestígio... Outras vezes, giram em torno a ídolos ou mitos com “pés de barro”.
- Em torno de quê ou de quem gira sua vida?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
06 de junho de 2024