“Imediatamente abriram-se-lhe os ouvidos e a língua se desprendeu” (Mc. 7,35)

 

23º Dom.Tempo Comum

 

 

 

Na religião judaico-cristã a palavra ocupa um lugar central. Para um judeu, poder escutar a Deus e poder orar a Ele fazia parte da sua identidade; ele repete todos os dias o “Shema Israel” (“escuta, Israel”), a oração de Deut. 6,4-9, que determina que o viver diário, em todos os seus momentos, esteja permeado desta escuta. Por isso, ser “surdo e mudo” significava estar afastado da essência da devoção, incapaz de realizá-la pelo ouvido e pela palavra; não escutar e nem falar significa não desenvolver a característica mais íntima do ser humano: o acesso à linguagem.

 

De fato, nós somos as palavras que escutamos e aquelas que falamos; a capacidade de escutar e de falar revela nossa verdadeira identidade. Considerar o mistério escondido naquela palavra que saiu de nossa boca e de nosso coração de forma afirmativa, redentora... bendita. Quando assim conseguimos comportar com nossas palavras, estamos contribuindo, literalmente, para a “edificação humana” do outro. Com isso, estamos falando de um ser mais saudável, equilibrado, integrado em suas dimensões (psíquica, social, corpórea, espiritual).

 

É extraordinário perceber como as palavras ditas com cuidado e amor (pedagogia de Jesus) produzem efeitos benéficos para o ser humano. Como é importante para uma pessoa, travada na sua capacidade de comunicação, escutar palavras ordenadoras de emoções, de autoestima. Essas palavras são bem-aventuradas, pois se tornam capazes de fazer crescer, sustentar, enfim, edificar pessoas mais saudáveis no convívio social, humano-afetivo, espiritual.

 

Este é o pano de fundo para a consideração do relato da cura do surdo-mudo, que o Evangelho de hoje nos propõe. Nele encontramos a ação personalizadora de Jesus, que será feita de acordo com a linguagem de compreensão do enfermo. Com sua presença terapêutica, Jesus gera vida, destrava as pessoas para que vivam a partir da verdade mais profunda de si mesmas.

 

A ação começa com o movimento de algumas pessoas anônimas que conduzem um surdo-mudo (também anônimo) até Jesus. O que aparece claro são suas perceptíveis carências. A surdez lhe impede ser autônomo. Ele não se desenvolve por seus próprios meios. Seu grau de dependência é tal que nem sequer tem consciência para reconhecer a dimensão de seu problema. Outros tomam a iniciativa por ele. Sua situação é agravada pela incapacidade de falar. A surdez que anulava sua receptividade, unida à sua anormalidade na fala, lhe impediam uma relação normal com o mundo exterior. Ele vive fechado em si mesmo, sem poder comunicar-se com ninguém. Está aprisionado em seu isolamento, travado em sua existência. Portanto, Parece lógico, que alguém tivesse que atuar para conduzir o surdo-mudo até Jesus, para que fosse “tocado”; aqui aparece a força do contato.

 

Sabemos pouco da riqueza de nosso contato. O contato nos cura. É um caminho de comunicação maravilhoso. Na enfermidade, muitas pessoas não buscam mais que o contato. Um verdadeiro contato nos envia sempre para dentro. Não é somente o contato da pele, mas o que nos põe em marcha para nosso interior. O contato nos faz despertar. Existe a idade da palavra, a do ouvido, a do olhar..., mas neste momento Jesus se detém na idade do contato. O caminho do contato é o da mais profunda comunhão.

 

Jesus começa por usar uma linguagem não-verbal; é a linguagem mais primitiva, anterior à palavra: através dos gestos, o surdo-mudo vai sendo reconstruído em sua humanidade. Jesus, no início da cura, “o conduz à parte, longe da multidão”; uma condução não-verbal, um afastamento da multidão, para longe da massificação.

 

E lá, na intimidade do contato, o doente é cuidado na individualidade das suas dores.

- “Pôs-lhe os dedos nos ouvidos”; literalmente, “pôs o dedo na ferida”.

A mão é fonte de contato, é canal de passagem da energia curativa.

- “Depois tocou-lhe a língua com saliva”;  força terapêutica da saliva.

- “Levantando os olhos ao céu..” Jesus Cristo olha para o alto, em direção ao Pai. Com o olhar para o alto, encaminha-o para além de si. É preciso remetê-lo ao Pai, origem de toda vida.

- “Jesus suspirou”. Com o sopro, prolonga o gesto do Criador no 6º. Dia da Criação: lembra como Deus “fez tudo bem” no início. Recorda o sopro do Espírito, que transforma o “caos” existencial do surdo-mudo em “cosmos”, ou seja, a presença do sopro que passará pelas cordas vocais e pela língua, para ser transformado em palavras.

- “E disse-lhe: ‘Effatha’ (que quer dizer: ‘abre-te’)”. Palavra dirigida ao coração do surdo-mudo. É como se dissesse: “abre-te à tua identidade! destrava teu interior!”

Depois de tantos passos no não-verbal e primitivo, vem a palavra. E o surdo-mudo desata sua língua e começa a falar. Insere-se nos devotos que ouvem a Deus e proclamam que Ele é o único, com todos os órgão do corpo.

 

Uma vez libertado de sua limitação, o personagem se emancipou, recuperou sua autonomia e pode manifestar-se sem entraves. Agora nada o limita. Possui plena capacidade para integrar-se na convivência social. Desaparecem as causas que lhe impediam optar com liberdade. A possibilidade de uma nova vida se abriu para ele.

 

Contrariamente aos outros milagres, desta vez Jesus faz uma série de gestos; mais precisamente, eram ações que demonstravam relação e envolvimento: tocou o corpo do homem, olhou para o céu, exprimindo sua comunhão com Deus, e suspirou como sinal de participação profunda no acontecimento. A cura não é um ritual exterior, mas brotava de um encontro, de um gesto que demonstra comunhão entre a pessoa doente, Jesus e Deus.

 

Marcos, narrando o milagre da cura do surdo-mudo, nos leva, ao mesmo tempo, a intuir que acontece também outro milagre: em pleno território pagão, Jesus abre os ouvidos das multidões para que escutem a Palavra de Deus, desata o nó da sua língua de modo a se unir ao cântico de louvor que se eleva a Deus por todos aqueles que creem nele. De fato aconteceu que, aqueles que levaram o doente a Jesus, no final, também foram “curados”.

 

Em todo o trecho, o surdo-mudo não diz uma palavra, não toma nenhuma iniciativa, não exprime um pensamento ou um sentimento que tenho sido relatado pelo evangelista. De resto, a sua doença o tornava incapaz de se comunicar. Mas, depois do encontro com Jesus e da cura, aquele que estava distante de todos tornou-se pólo de atração, no sentido de que, por meio dele, a multidão reconheceu e louvou o Senhor. Sua doença, sua cura, sua vida, se tornaram sacramento, um ponto de encontro, um “lugar” no qual também os outros puderam e podem encontrar Jesus.

 

Texto bíblico:  Mc. 7, 31-37

A missão de Jesus é a de devolver à pessoa a sua palavra. Não apenas a palavra aprendida, mas a palavra que exprime verdadeiramente o que ela pensa, que expressa seus profundos desejos, que revela sua real identidade.

 

Na oração:

“O que não consigo ouvir?”

- em mim - do meu caos de impulsos, afetos e desejos?

- do meu próximo - seu grito de dor, seu clamor, seu desamparo, sua alegria?

- de Deus – do Seu caminho, do Seu chamado, da Sua bênção?

 

E o que está mudo em mim?

– Que linguagem está presa, quê órgão fonador não se articula com o sopro do Espírito?

- Que palavras são emudecidas e alojadas no corpo, na forma de dores, doenças, tensões musculares, inibições

- Que afetos são sufocados na forma de mutismos, angústias, raivas, tristezas e depressões?

- Que palavras são inibidas e transformadas em condutas de agressão contra outros e contra mim?

- Que órgãos são esquecidos? Minhas entranhas ainda são consultadas?

 

 

Pe. Adroaldo Palaoro sj

Coordenador do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI

05.09.2012