“Quando o dono da vinha voltar, o que fará com os vinhateiros?” (Mt 21,40)
Na perspectiva bíblica, a vinha aparece sempre como aliada do ser humano; ela nos ensina a viver em harmonia com a água, com a terra e com todos os seres, numa relação de aliança. A primeira relação do ser humano com a Vinha, portanto, não é a da posse, mas a da acolhida, por ela ser dada em herança. Todos os bens da Criação são recebidos por nós deste modo, ou seja, como dons.
A Vinha, como realidade doada, convida à compreensão de sua origem, não para dominá-la e manipulá-la, mas para tornar o dom uma benção fecunda para todos. A vinha é dada por Deus em função da vida. Por isso a Vinha é sagrada e é lugar de contemplação e encontro íntimo com o Criador; ela é o teatro da glória de Deus, isto é, da manifestação da presença divina. E o ser humano é chamado a “trabalhar com” o Criador, cuidando da Vinha, para que ela seja fecunda e alimente a alegria de todos.
O Evangelho de hoje (27 dom. T.Comum) revela que, quando as pessoas rompem a aliança com Deus e se afastam d’Ele, a vinha fica estéril. Quando uns poucos se apropriam dela como donos, ela passa a ser o lugar da espoliação, da devastação, da morte e deixa de ser espaço para a convivência fraterna e solidária.
De fato, contemplando a “grande Vinha do Senhor”, percebemos que o poder-dominação sobre a natureza e o consumismo exacerbado destruiu o sentido cordial das criaturas e legou-nos um devastador vazio existencial.
Segundo a revelação bíblica, as criaturas não estão colocadas umas ao lado das outras, em justaposição, mas são todas sinfônicas, interligadas. Há uma grande unidade, feita de muitos níveis, de muitos seres diferentes, todos eles ligados e religados entre si. E, por isso, num profundo e intenso dinamismo.
O drama do ser humano é não se sentir em comunhão num todo maior e perder a memória de que é parte do todo; é não se sentir um elo vivo e esquecer que este é um elo da única corrente de vida. A antropologia bíblica é iluminadora ao reconhecer a vida humana numa estreita interconexão com outros seres, como uma teia interdependente.
Ao predominar a autoafirmação e o domínio do ser humano sobre a Criação, produziu-se a quebra da “religação” com tudo e com todos. Ele se colocou num pedestal solitário a partir de onde pretende dominar a Terra e os céus; como consequência dessa atitude temos a devastação da vinha. O embrutecimento do ser humano, de sua interioridade, a perda do gosto pela verdade, pelo bem e pelo belo, o extravio da ternura e da transcendência, repercutem em falta de respeito pela natureza, em ruptura com as outras criaturas, em insensibilidade ecológica.
Por sua atitude de arrogância e de autossuficiência, o ser humano explorou exaustivamente a vinha herdada e a destruiu, depredou, aniquilou, tomou posse dela... Assim, não foi respeitoso para com o Criador que a ele reservou a missão de cuidar da sua vinha e de compartilhar os seus frutos.
Há um clamor generalizado que emerge da realidade desafiante enfrentada pela humanidade: o planeta Terra está gravemente enfermo. As consequências trágicas estão presentes por toda parte: degradação do meio ambiente, diminuição acelerada das fontes de água potável, desertificação, degelo das calotas polares com a consequente elevação do nível do mar, grande incidência de furacões e de queimadas, extinção de milhares de espécies de animais, escassez de alimento, proliferação de doenças, migrações forçadas... Enfim, o desequilíbrio dos ecossistemas pode comprometer, de forma irreversível, todas as formas de vida sobre a terra.
Ferir a Vinha é ferir o próprio Criador. Quando observamos vinhas outrora verdejantes e agora destruídas ou entulhadas de lixo, uma sensação de violação, de tragédia, quase de sacrilégio, se manifesta no nosso interior. E uma voz ecoa das profundezas da destruição: “Quê fizestes de minha vinha?”.
Como seres humanos, somos convocados a desenvolver uma consciência criatural, em que a Criação deixa de ser vista como objeto de domínio. Ela é um dom de Deus que deve ser acolhido com reverência, respeito e louvor. Somente a vivência dessa relação do ser humano com a criação possibilitará novas relações sociais e ambientais, o novo tempo de paz e justiça.
É nesse momento dramático que uma nova cosmologia se revela inspiradora. Em vez de “dominar” a natureza, situa-nos no seio dela em profunda sintonia e sinergia. O que caracteriza essa nova cosmologia é o cuidado em lugar da dominação, o reconhecimento do valor intrínseco de cada ser e não sua mera utilização humana, o respeito por toda forma de vida e os direitos e a dignidade da natureza, não sua exploração.
A primeira relação do ser humano com a Criação, portanto, não é a da posse, nem a da pergunta pelo seu porquê, mas a da acolhida em seu ser dado. A forma dessa acolhida é o assombro de sua presença e o temor diante de sua possível perda.
Enfim, a parábola do evangelho de hoje aponta para uma relação de acolhida agradecida e reconhecida para com a Vinha, pois ela é o lugar no qual não só existimos, mas somos chamados a uma plenitude de vida, em aliança e comunhão com o Deus Trindade.
Somos todos “lavradores” encarregados de tornar a vinha fecunda. Somos todos “lavradores” que temos de prestar contas a Deus dos frutos de sua vinha, que não nos pertence. Assim, o exercício do senhorio, ou a dominação, por parte do ser humano, deve significar respeito à ação criativa divina e contribuir com o crescimento e a evolução da natureza em todas as suas dimensões; igualmente, cuidado com o meio ambiente para fazer dele uma fonte de bênçãos, ou seja, de comunhão com todos e, a partir dele, crescer em harmonia interior e estreitamento de relações com o próprio Criador.
Texto bíblico: Mt 21,33-43
Na oração: Mobilizar meus sentidos para ver, ouvir, tocar, sentir e saborear a beleza de nossa terra. Considero minha conexão com esta beleza e como ela me faz perceber o amor da Trindade ao cosmos, em constante evolução.
Considero o novo sentimento de maravilha que cresce em meu coração e como dá novo sentido à minha missão de colaborador no grande jardim do Criador.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana-CEI