Na noite, acende-se uma luz. Aparece um anjo, a glória do Senhor envolve os pastores e finalmente chega o anúncio há séculos esperado: «Hoje (…) nasceu-vos um Salvador, que é o Messias Senhor» (Lc 2, 11). Mas surpreende aquilo que o anjo acrescenta para indicar aos pastores como encontrar Deus que veio à terra. «Isto vos servirá de sinal: encontrareis um menino envolto em panos e deitado numa manjedoura» (2, 12). Eis o sinal: um menino. E é tudo: um menino na tosca pobreza duma manjedoura. Cessam luzes, fulgor, coros de anjos. Só um menino. Nada mais! Como predissera Isaías: «Um menino nasceu para nós» (Is 9, 5).
O Evangelho insiste neste contraste. Narra o nascimento de Jesus, começando por César Augusto, que ordena o recenseamento de toda a terra: mostra o primeiro imperador na sua grandeza. Mas, logo a seguir, leva-nos a Belém, onde, de grande, não há nada: apenas um menino pobre envolto em panos, rodeado por pastores. E ali está Deus, na pequenez. Eis a mensagem: Deus não cavalga a grandeza, mas desce na pequenez. A pequenez é a estrada que escolheu para chegar até nós, tocar-nos o coração, salvar-nos e levar-nos de volta para aquilo que conta.
Irmãos e irmãs, ao parar diante do presépio, fixemo-nos no centro: deixemos para trás luzes e decorações – que são belas – e contemplemos o Menino. Na sua pequenez, está Deus inteiro. Reconheçamo-Lo: «Menino, vós sois Deus, Deus-Menino». Deixemo-nos invadir por este espanto alvoroçado. Aquele que abraça o universo, precisa de ser tomado nos braços. Ele, que fez o sol, tem de ser aquecido. A ternura em pessoa precisa de ser mimada. O amor infinito tem um coração minúsculo, que emite batimentos leves. A Palavra eterna é infante, isto é, incapaz de falar. O Pão da vida tem de ser nutrido. O criador do mundo não tem onde morar. Hoje inverte-se tudo: Deus vem, pequenino, ao mundo. A sua grandeza oferece-se na pequenez.
E nós – perguntemo-nos – sabemos acolher esta estrada de Deus? É o desafio de Natal: Deus revela-Se, mas os homens não O compreendem. Faz-Se pequeno aos olhos do mundo… e nós continuamos a procurar a grandeza segundo o mundo, talvez até em nome d’Ele. Deus abaixa-Se… e nós queremos subir para o pedestal. O Altíssimo indica a humildade… e nós pretendemos sobressair. Deus vai à procura dos pastores, dos invisíveis… nós buscamos visibilidade, fazermo-nos ver. Jesus nasce para servir… e nós passamos os anos atrás do sucesso. Deus não busca força nem poder; pede ternura e pequenez interior.
Eis o que devemos pedir a Jesus no Natal: a graça da pequenez. «Senhor, ensinai-nos a amar a pequenez. Ajudai-nos a compreender que é a estrada para a verdadeira grandeza». Mas que significa, concretamente, acolher a pequenez? Em primeiro lugar, significa acreditar que Deus quer vir às pequenas coisas da nossa vida, quer habitar nas realidades quotidianas, nos gestos simples que realizamos em casa, na família, na escola, no trabalho. É na nossa existência ordinária que Ele quer realizar coisas extraordinárias. Trata-se duma mensagem de grande esperança: Jesus convida-nos a valorizar e redescobrir as pequenas coisas da vida. Se Ele está lá connosco, que nos falta? Então deixemos para trás o lamento por causa da grandeza que não temos. Renunciemos às lamúrias e rostos amuados, à avidez que nos deixa insatisfeitos. A pequenez, a maravilha daquela Criança pequenina: esta é a mensagem.
Mais ainda! Jesus não quer vir só às pequenas coisas da nossa vida, mas também à nossa pequenez: ao nosso sentir-nos fracos, frágeis, inadequados, talvez até errados. Irmã e irmão, se, como em Belém, te circunda a escuridão da noite, se em redor notas uma indiferença fria, se as feridas que trazes dentro te gritam «contas pouco, não vales nada, nunca serás amado como queres», nesta noite – se tu sentes isto – tens a resposta de Deus, que te diz: «Amo-te assim como és. A tua pequenez não Me assusta, as tuas fragilidades não Me preocupam. Fiz-Me pequeno por ti. Para ser o teu Deus, tornei-Me teu irmão. Amado irmão, amada irmã, não tenhas medo de Mim, mas reencontra em Mim a tua grandeza. Estou perto de ti e a única coisa que te peço é isto: confia em Mim e dá-Me guarida no teu coração».
Acolher a pequenez significa mais uma coisa: abraçar Jesus nos pequenos de hoje. Ou seja, amá-Lo nos últimos, servi-Lo nos pobres. São eles os mais parecidos com Jesus, nascido pobre. E é nos pobres que Ele quer ser honrado. Nesta noite de amor, um único medo nos assalte: ferir o amor de Deus, feri-lo desprezando os pobres com a nossa indiferença. São os prediletos de Jesus, que nos hão de acolher um dia no Céu. Uma poetisa escreveu: «Quem não encontrou o Céu cá em baixo, falhá-lo-á lá em cima» (E. Dickinson, Poems, XVII). Não percamos de vista o Céu, cuidemos de Jesus agora, acarinhando-O nos necessitados, porque Se identificou com eles.
Fixando de novo o presépio, vemos que, no seu nascimento, Jesus está rodeado precisamente pelos pequenos, pelos pobres. São os pastores. Eram os mais simples; e foram os que estiveram mais perto do Senhor. Encontraram-No, porque «pernoitavam nos campos, guardando os seus rebanhos durante a noite» (Lc 2, 8). Estavam lá para trabalhar, porque eram pobres e a sua vida não tinha horário, dependia do rebanho. Não podiam viver como e onde queriam, mas regulavam-se de acordo com as exigências das ovelhas que cuidavam. E Jesus nasceu lá próximo deles, perto dos esquecidos das periferias. Vem onde a dignidade do homem é posta à prova. Vem nobilitar os excluídos, revelando-Se primeiramente a eles: não a personalidades cultas e importantes, mas a gente pobre que trabalhava. Nesta noite, Deus vem encher de dignidade a dureza do trabalho. Recorda-nos como é importante dar dignidade ao homem com o trabalho, mas também dar dignidade ao trabalho do homem, porque o homem é senhor e não escravo do trabalho. No dia da Vida, repitamos: chega de mortes no trabalho! Empenhemo-nos para que cessem.
Olhemos uma última vez para o presépio, alongando a vista até às suas extremidades, onde já se vislumbram os Magos que vêm, peregrinos, para adorar o Senhor. Olhemos e compreendamos que, à volta de Jesus, tudo se compõe numa unidade: não estão só os últimos, os pastores, mas também os eruditos e os ricos, os Magos. Em Belém, estão juntos pobres e ricos, quem adora como os Magos e quem trabalha como os pastores. Tudo se harmoniza quando, no centro, está Jesus: não as nossas ideias sobre Jesus, mas Ele mesmo, o Vivente. Então, queridos irmãos e irmãs, voltemos a Belém, voltemos às origens: à essencialidade da fé, ao primeiro amor, à adoração e à caridade. Olhemos os Magos que vêm em peregrinação e, como Igreja sinodal, a caminho, vamos a Belém, onde está Deus no homem e o homem em Deus; onde o Senhor ocupa o primeiro lugar e é adorado; onde os últimos ocupam o lugar mais próximo d’Ele; onde pastores e Magos estão juntos numa fraternidade mais forte do que qualquer distinção. Que Deus nos conceda ser uma Igreja adoradora, pobre, fraterna. Isto é o essencial. Voltemos a Belém.
Faz-nos bem ir lá, dóceis ao Evangelho de Natal, que apresenta a Sagrada Família, os pastores e os Magos: são, todos, pessoas a caminho. Irmãos e irmãs, ponhamo-nos a caminho, porque a vida é uma peregrinação. Ergamo-nos, despertemos porque, nesta noite, acendeu-se uma luz. É uma luz suave e lembra-nos que, na nossa pequenez, somos filhos amados, filhos da luz (cf. 1 Tes 5, 5). Irmãos e irmãs, alegremo-nos juntos, porque ninguém apagará jamais esta luz, a luz de Jesus, que, desde esta noite, brilha no mundo.
SOLENIDADE DO NATAL DO SENHOR
HOMILIA DO PAPA FRANCISCO
24.12.21
“Encontrareis um recém-nascido envolvido em faixas e deitado numa manjedoura” (Lc 2,12)
Jesus “desce” aos rincões da humanidade; sua Luz brilha no interior da gruta e a partir daí ilumina todo o universo. As grutas sempre despertaram fascínio nos seres humanos; possuem uma força atrativa e guardam segredos em seu interior. Ao mesmo tempo simbolizam o desejo permanente de retornar ao ventre materno, lugar de segurança, de aquecimento...
A contemplação do Nascimento de Jesus nos impulsiona a fazer a travessia para o interior de uma Gruta: ali o Grande Mistério se faz visível e revelador do sentido da existência humana.
Trata-se de “entrar” nela com suavidade, de percebê-la e fazê-la descer até o coração, de convertê-la em matéria de consideração, de oração silenciosa e surpreendida.
A contemplação do Menino Jesus na Gruta revela que Deus assumiu a aventura humana desde seus começos até seu limite (vida, amor e morte). Deus se fez “tecido humano”, revestiu o ser humano de sua própria glória, plenificou-o de sentido e de finalidade. No nascimento de Jesus é revelada a grandeza, a dignidade, o mistério inesgotável do ser humano. Nossa humanidade foi divinizada pela “descida” de Deus.
Acolhido pela natureza, presente na Gruta, Deus se deixou impactar por tudo aquilo que o rodeava. Tudo isso é Deus na nossa carne quente e mortal. Um Deus que “adentrou” na humanidade e de onde nunca mais saiu; um Deus que agora pode ser buscado em nossa interioridade e em tudo o que é humano.
Na pobreza, na humildade da nossa própria história pessoal, inserida na grande história da humanidade, torna-se possível acolher o dom do amor de Deus visível na Criança de Belém.
A linguagem da Gruta de Belém é poderosa; é intensa; é urgente; é um reflexo de presenças e encontros, de assombro e de silêncio. No seu interior ressoam as palavras mais humanizadoras e mais vivas: justiça, bondade, liberdade, igualdade, paz, compaixão, alegria, acolhida... Palavras que não podem ser esqueci-das, sepultadas ou banalizadas por modismos ou novidades. Palavras que só podem ser pronunciadas diante do “Deus que se faz Criança” para que fiquem gravadas a fogo em nosso coração e se visibilizem na nossa maneira de ser e viver.
A Gruta também nos recorda que “Deus é Palavra”; uma Palavra que se fez Vida e acampou entre nós. Uma Palavra inspiradora, chocante, coerente, feita “carne e sangue”, feita “lágrima e riso”. Palavra que se faz proximidade, encontro, abraço...; Palavra que é de sempre e é eterna.
O fato de que Deus tenha decidido salvar-nos a partir de uma gruta que recolhia animais é, sem dúvida alguma, a revelação mais desconcertante d’Ele. Nosso Deus é certamente contracultural, inesperado, surpreendente, pois não corresponde às ideias que forjamos d’Ele, é diferente, não é óbvio que Ele seja assim.
É preciso estarmos abertos para as surpresas de Deus!
Entremos, pois, na gruta, mas não de qualquer maneira. Estamos frente a um mistério santo: Deus se fez um de nós, compartilha nossa pobreza e precariedade. Aqui só tem lugar as atitudes interiores e corporais de agradecimento, humildade, reverência e serviço.
Se contemplarmos Jesus na manjedoura, longa e amorosamente, experimentaremos que algo nos move a mudar dentro de nós: uma mudança de sonhos e esperanças, uma mudança no modo de nos situar no mundo, de nos relacionar com os outros, conosco mesmos e com Deus.
Aqui está enraizada a convicção de que Belém pode mudar nossa vida. O “mistério” contemplado atinge as camadas mais profundas do afeto e do coração, gerando novidade em nossa vida cotidiana.
A contemplação do mistério do Nascimento de Jesus ativa em nós uma maneira cristificada de ser e de estar no mundo; nossa presença e nossa missão fazem do mundo em que vivemos um lugar transparente, santo e luminoso em Deus. “Entrar na Gruta” do Nascimento nos expande e nos lança em direção ao mundo, à humanidade, nos faz mais universais e nos capacita para sermos contemplativos nas relações.
Na espiritualidade cristã, quem experimenta o encontro com o Deus vivo e amoroso, começa a “ver” os homens e as mulheres no mundo como Deus mesmo os vê. Precisamente por ter-se encontrado com o Deus-Amor, a pessoa torna-se mais “encarnada” na realidade e mais comprometida com os outros, sobretudo com os mais pobres, os mais sofridos e excluídos; é aquela que mais se compromete com a justiça e é a que mais desenvolve uma criatividade eficaz na história, com obras que nos surpreendem.
O mistério do Nascimento nos sensibiliza e nos capacita para nos aproximar desse nosso mundo com uma visão mais contemplativa. O “subir” até Deus passa pelo “descer” até às profundezas da humanidade.
Como “contemplativos nos encontros”, movidos por um olhar novo, entramos em comunhão com a realidade tal como ela é. É olhar o mundo como “sacramento de Deus”; um olhar capaz de descobrir os sinais de esperança que ali existem; um olhar afetivo, marcado pela ternura, pela compaixão e gerador de misericórdia; um olhar gratuito e desinteressado, “janela da alma”, que nos expande numa atitude acolhedora de tudo que nos rodeia; um olhar que rompe distancias e alimenta encontros instigantes.
É preciso sair dos limites conhecidos; sair de nossas seguranças para adentrar-nos no terreno do incerto; sair dos espaços onde nos sentimos fortes para arriscar-nos a transitar por lugares onde somos frágeis; sair do inquestionável para enfrentarmos o novo...
É decisivo estar dispostos a abrir espaços em nossa história a novas pessoas e situações, novos encontros, novas experiências... Porque sempre há algo diferente e inesperado que pode nos enriquecer...
A vida está cheia de possibilidades e surpresas; inumeráveis caminhos que podemos percorrer; pessoas instigantes que aparecem em nossas vidas; desafios, encontros, aprendizagens, motivos para celebrar, lições que aprendemos e nos fazem um pouco mais lúcidos, mais humanos e mais simples...
Queremos, neste Natal, manter abertas as portas da esperança para todos os seres humanos, em um caminho que vai nos conduzindo à Vida. É preciso fazer a “travessia” do “natal” do nosso ego, autocentrado e consumista, ao Natal que desperta em nós as melhores energias de vida, sempre em favor da vida.
E poderemos sentir a alegria de Maria, de José e dos anônimos pastores; a indizível alegria, aquela que só pode ser recebida como presente e da qual nasce o compromisso mais radical e esperançoso pela transformação social que nosso mundo tanto necessita.
O nascimento de Jesus em uma Gruta desmascara esta dura realidade: portas fechadas, uma cidade cheia, a falta de hospitalidade ou de atenção de um povo... Natal continua sendo um tempo de contrastes, uma história de luz e sombra, de possibilidades e de oportunidades; enquanto uns se deixam afetar pela surpresa de Deus que entra na história pelo lado dos mais fracos, outros nem se dão conta daquilo que está acontecendo. Enquanto alguns estavam despertos e bem atentos, outros estavam bem protegidos, perdidos em suas histórias, em suas preocupações e compromissos, em suas urgências e interesses, dormindo tranquilamente, sem se inteiraram de que ali, a poucos metros, um menino nascia. Não foram capazes de descobrir algo admirável naquele Menino deitado numa menjedoura, porque nem sequer o viram; perderam a capacidade de estar atentos, de manter os olhos abertos e o coração sedento.
Texto bíblico: Lc 2,1-14
Na oração: Faça um “deslocamento” em direção à sua “gruta interior”; com os olhos bem abertos e curiosos dos “humildes pastores” descubra as surpresas que ali Deus continua realizando.
- Abra-se, com profunda gratidão, ao dom da Vida que se faz vida nas profundezas de seu ser.
Um abençoado Natal a todos!
Pe. Adroaldo Palaoro sj
22.12.21
“Quando Isabel ouviu de Maria, a criança pulou no seu ventre e Isabel ficou cheia do Espírito Santo”
A grande e boa notícia da Anunciação não levou Maria a ensimesmar-se e a submergir-se numa reflexão estática do Mistério que se desenvolvia em seu ventre. Pelo contrário, moveu-a a colocar-se prontamente e com pressa em caminho: “levantou-se, dirigindo-se apressadamente à região montanhosa”.
De onde brota tanta prontidão?
O caminho interior, que começou com um chamado de Deus, não é um caminho reto e plano, mas serpenteante e tortuoso, interpelador e cheio de novidade.
O anjo deixou Maria motivada para empreender uma nova etapa em sua vida através do encontro com sua prima Isabel. Está claro que a Anunciação estava pedindo Visitação desde o primeiro momento.
Maria, a quem foi anunciada, corre a visitar para anunciar. O ícone da Visitação, com o forte abraço de Isabel e Maria, nos ajuda a entrar e interiorizar o tempo do Advento, com sua mensagem esperançosa, aberta ao novo. Lucas nos diz que o AT chegou a seu fim, já não pode gerar mais vida. Isabel representa a “travessia” porque está aberta às surpresas de Deus. Zacarias, no entanto, representa o antigo, é o incrédulo diante da grande novidade que Deus lhe abre. Por isso, ele é representado como mudo; sua fé está adormecida, ancorada em um passado. O primeiro testamento já não tem mais nada novo a comunicar. Isabel, embora sendo estéril biologicamente, permanece aberta a deixar que Deus presenteie o novo em seu ventre.
Na Visitação, Lucas revela a centralidade do feminino para emudecer Zacarias da lógica e das garantias. Ao recuperar o feminino realça-se a perspectiva do Amor acima da razão; Isabel, apesar de sua esterilidade e velhice, abre-se a um projeto que vai além do natural.
O sacerdote Zacarias, no entanto, está mudo e ausente do relato da Visitação; ele não tem nada que dizer, enquanto sua mulher, idosa, estéril e não considerada, crê, e seu ser se enche de vida. É o início do Novo Testamento. Isabel faz de mediação entre a instituição e a profecia que anuncia a vinda do Messias.
Os varões (sacerdotes, escribas, fariseus...) também permanecem silenciosos, ficaram mudos como Zacarias. No fundo, todos eles têm medo do Messias.
Maria, com sua inocente e profunda sabedoria, enquanto descobre seu ser habitado, recebe a notícia de que também sua prima anciã está gestante; com a força e a prontidão próprias de pessoas guiadas pelo Espírito, “ela se pôs a caminho, dirigindo-se com toda pressa às montanhas”. Deixa seu lar, sua segurança, se desinstala... Não perde tempo considerando o esforço que este deslocamento para as montanhas implica. O serviço é urgente. O caminho que ela deve percorrer é símbolo de outra forma de viver.
Maria poderia recorrer ao Templo e relatar aos sacerdotes a passagem de Deus por ela; mas, atenta a seu interior habitado, descobre que é guiada a “outros lugares sagrados” onde a presença de Deus se revela surpreendente através de uma mulher considerada estéril, fora dos rituais vazios do passado.
Entra em casa de Isabel, dá-se o encontro e o reconhecimento. Visita que faz explodir a alegria entre ambas.
Elas se acolhem, se abraçam... “e eles se movem em seus ventres”. Há esbanjamento de vida.
Nessa casa, pratica-se a hospitalidade, a acolhida entranhável, o cuidado, a palavra justa e a escuta infinita... Maria é hóspede, ao mesmo tempo que hospeda o Mistério em seu ventre.
Na cena da Visitação, Maria não só reconhece a Isabel, mas também é reconhecida por ela. Encontram-se frente a frente as duas mulheres, levando em suas entranhas o segredo de Deus, o presente e o futuro da vida.
Um duplo reconhecimento, que os pintores souberam expressar maravilhosamente apresentando as duas mulheres colocando mão sobre o ventre, uma da outra. Gesto de profundo reconhecimento: o que está acontecendo em seus ventres só pode ser surpresa de Deus. Com certeza, este reconhecimento é o segredo de toda a alegria e de toda a luz que dimana desta Visitação; reconhecimento que consiste no ato de abraçar, beijar, tocar, constatar, acolher...; mas, reconhecimento que é também gratidão, ação de graças, agradecimento que as invade diante do Dom de Deus.
O “futuro precursor” cresce nas entranhas de Isabel e recebe ali, em clima de exultação, a certeza de que se cumprem as antigas esperanças; por isso salta, bailando de alegria, no ventre mesmo de sua mãe.
Agora Isabel “bendiz”: como mulher emocionada, satisfeita, contempla Maria e não tem inveja dela; recebe o dom ou graça que provém do Senhor (do Filho de Maria) e o agradece; por isso, com palavra clara, culminando o Antigo Testamento e tomando a palavra dos sacerdotes de seu povo (já mudos como o mostra Zacarias), ela bendiz a Mãe messiânica e o fruto de seu ventre que é Jesus.
Maria se deixou encher pela benção e bem-aventurança de sua prima. Não tem nada que acrescentar, não deve explicar ou comentar coisa alguma, pois tudo é claro. Simplesmente, consente.
Concluímos afirmando que o ícone por excelência de Advento é o da uma mulher gestante. A vida que está pulsando nela é imagem para que compreendamos e tomemos consciência de que todos estamos implicados nessa gestação. Somos convidados a entrar nesse silêncio habitado, para experimentar, em uníssono, o pulsar do divino em nós, dentro de nós. Deus “pula de alegria” em nosso interior quando abrimos espaço para sua presença e sua ação em nossa vida.
Podemos considerar o encontro das duas mulheres, grávidas da Vida, como um “abraçar o passado” para despedi-lo, deixá-lo ir porque já está estéril, e acolher o futuro, a comunidade de Jesus que Maria está gestando. Se, com profunda gratidão, nos despedimos do passado, evoluímos, para um presente-futuro em contínua mudança, em contínuo processo para a Vida.
O autêntico Advento vai além da espera, é gestação; não é só a arte de viver despertos e mobilizados, é gerar em nosso interior “algo novo” para entregar ao mundo que, gritando, pede de nós uma presença compassiva e servidora.
O que gestamos em nós deve ter a feição do amor invencível, do amor valente, do amor capaz de romper fronteiras, de superar os ódios, de quebrar as distâncias, de aplainar os “egos inflados”. Gestação de vida, de esperança, de paixão por um mundo diferente.
A Igreja precisa de seguidores(as) “gestantes”, não só de fiéis “expectantes”.
Deus dança em nosso interior quando sentimos o impulso para o outro, o despertar de nossos desejos mais nobres, o emergir de sonhos adormecidos, nosso espírito criativo, nossos sentimentos oblativos... Muitas vezes, é preciso uma presença inspiradora de alguém, também “carregada de Deus e de espírito serviçal” que nos visite e faça saltar tudo o que é mais “humano” em nós, o “joão” que todos carregamos.
Tudo isso nos enche de alegria serena, de esperança benfazeja, de generosidade aberta...
Texto bíblico: Lc 1,39-45
Na oração: Maria recebe a visita de Deus em sua casa e desloca-se para a casa de Isabel para lhe dar o abraço mais longo e apertado da história. Abraço que se prolonga em nós quando estamos habitados de Vida e a presença da Vida nos outros faz com que todo nosso ser dance de alegria e de esperança.
Nosso interior é um “ventre fecundo”, espaço onde são gestados desejos nobres, sonhos inspiradores, sentimentos mobilizados, impulsos criativos...
- Qual é o “novo e surpreendente” que está sendo fecundado e que fará toda diferença no amanhã de sua vida?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
16.12.21
“Quem tiver duas túnicas, dê uma a quem não tem; e quem tiver comida, faça o mesmo” (Lc 3,11)
Advento e Natal nos situam no clima das grandes esperanças da humanidade; neste dezembro mágico nosso coração caminha mais rápido, rompe o tempo, já está lá na frente, pronto para acolher a surpresa.
Tudo aponta para o Eterno que nos escapa e nos encontra. Aqui a imaginação trabalha e cria momentos felizes. Com essa esperança, podemos dar sabor à nossa vida, muitas vezes modesta e simples.
A esperança não é só uma virtude teologal, mas uma habilidade que temos de exercitar; podemos aprender a ter esperança, e esta destreza nos faz mais humanos e mais fortes diante das adversidades da vida.
Quem vive o clima do Advento não é prisioneiro da “cotidianidade”; toda a nossa vida se transforma na história de uma espera e de um encontro surpreendente. Nessa espera vislumbramos detalhes decisivos: a vivência da ternura, a reinvenção da vida em cada amanhecer, a gratuidade amorosa, a alegria descontrolada, o despertar de sonhos... Espera-se Jesus vivendo os valores que Ele encarnou: a sintonia com os pobres, o coração dilatado no serviço, o cuidado terapêutico, a ajuda gratuita...
Nessa atitude de espera o cristão pode dar sabor à sua vida: nos pequenos gestos ela floresce e aponta para um sentido novo.
“O povo estava na expectativa...”: uma bonita maneira de indicar uma atitude positiva de espera diante de João Batista que, sob o impulso da Palavra brotada no deserto, tocou o coração de muitos.
De fato, João Batista é um personagem instigante e provocativo; muitas pessoas, impactadas pelo seu modo de falar, vão até ele para escutá-lo. João não fala do cumprimento minucioso das normas legais ou dos ritos religiosos. Em nenhum caso faz alusão a uma nova religião, que exigisse um culto diferente, e sim a uma nova forma de viver que dá sentido à própria existência e desperta um modo de proceder para que a relação com os demais seja realmente fraterna, carregada de respeito, de cuidado, de partilha.
O chamado de João à conversão e seu apelo a uma vida mais fiel a Deus despertou em muitas pessoas uma pergunta concreta: “Que devemos fazer?”. Com algumas pinceladas João reforça a necessidade de mudar a maneira de pensar e de agir; isto é, ativar o que já está presente em nosso coração: o desejo de uma vida mais justa, digna e fraterna.
Todas as propostas que João Batista faz estão direcionadas a melhorar a convivência humana. Percebe-se uma maior preocupação por tornar mais humanas as mútuas relações, superando toda atitude egocentrada.
De fato, uma religiosidade que não se alarga em direção aos outros não é a religiosidade que Deus deseja. Aqui não se trata propriamente de fazer coisas nem de assumir deveres, mas ser de outra maneira, viver de forma mais humana; em outras palavras, a partir do centro de cada um, despertar aquilo que é o mais verdadeiramente humano, para que flua humanidade em todas as direções. Que todo o nosso ser se mova na perspectiva do amor oblativo, que se expressa em “entranhas solidárias”.
João Batista é mais um personagem de Advento; tudo estava tranquilo até que ele apareceu no deserto. Sua pregação sacudiu as consciências, fazendo reacender o espírito solidário que estava atrofiado no coração de todos: a multidão, os publicanos, os soldados... Segundo a definição do Papa Francisco “a solidariedade deve ser vivida como a decisão de devolver ao pobre o que lhe corresponde” (EG 189). A solidariedade é uma decisão, carregada de afeto. A razão, por si mesma não nos leva a ela. É uma decisão pessoal, cordial, livre, voluntária...
A solidariedade é espontânea, não se impõe a partir de cima, senão que supõe uma predisposição favorável ao encontro com o outro, deixando-nos afetar cordialmente pela realidade de quem sofre. A solidariedade nasce da gratuidade e nos faz mover em direção dos outros, sobretudo dos excluídos, daqueles privados de sua dignidade humana.
O encontro com o “outro” marginalizado dá um “toque” especial à nossa espiritualidade e nossa espiritualidade faz nossa ação mais radical – mais enraizada em si mesma e vai mais fundo nas raízes da injustiça. Aproximar-nos do “pobre” e deixar-nos “afetar” pelo seu sofrimento torna-se a maior fonte de nossa espiritualidade. Suas “fraquezas” suscitam em nós o melhor de nós mesmos e, ao nos envolver afetivamente em sua vida, faz com que vivamos um misto de ternura e indignação a que chamamos compaixão.
A solidariedade nos leva a reconhecer no outro (sobretudo o outro que é excluído, marginalizado...) uma dignidade e uma capacidade criativa de superar sua situação; ela gera protagonismo e nunca dependência; compartilha sem humilhar; cria humanidade em seu entorno, com generosidade, humildade e silêncio; supera todo exibicionismo, sentimentalismo ou instrumentalização do outro.
Sabemos que há uma profunda afinidade entre “sólido” e “solidário”; ambas as palavras, etimológicamente, procedem da expressão latina “solidus”. Diz-se “sólido” em virtude de sua firmeza, densidade, fortaleza ou por ser aquilo que se estabelece com razões fundamentais e verdadeiras; a pessoa “solidária” é aquela que encarna tais virtudes. Há um “plus” maior quando essa pessoa vive a fé cristã. Porque, uma fé ausente de solidariedade carece de coerência e sentido; não é firme e não tem a suficiente densidade para suportar as incompreensões daqueles que não estão em sintonia com suas atitudes solidárias.
Portanto, solidariedade é uma “questão de entranhas”, ou seja, encontrar, experiencial e vitalmente, os “outros” excluídos e despojados de tudo, e sentir-se tocado, afetado pela imensa dor que marca a vida de tantos. A partir daqui o rosto da pessoa solidária é modelado pela compaixão e gratuidade.
A “solidariedade compassiva”, que brota do “patire cum” ou compadecer-nos diante da dor e da miséria do outro, devolve a todos nós a imagem de seres humanos. A solidariedade nos humaniza.
Trata-se aqui de viver a cultura da solidariedade, entendida evangelicamente, que forja nosso ser e nosso fazer no manancial que brota da compaixão e se desenvolve realizando a justiça.
A solidariedade que nasce da compaixão não acaba nela mesma, mas leva a reconhecer no outro uma dignidade e uma capacidade criativa de superar sua situação.
Isto pede de nós uma atitude de abertura ao outro, o que implica colocar-nos em seu lugar, deixar-nos questionar e desinstalar por ele... Importa, pois, redescobrir com urgência a solidariedade como valor ético e como atitude permanente de vida...; não uma solidariedade ocasional, mas uma solidariedade cotidiana que se encarna nos pequenos gestos de serviço no dia-a-dia.
Só assim o tempo Advento deixará transparecer seu sentido mais profundo. Deus, ao entrar na história, se faz solidário com a humanidade, salvando-a. O rosto solidário de Deus se visibilizará em cada um de nós quando entramos no fluxo do Seu amor descendente e comprometido.
Texto bíblico: Lc. 3,10-18
Na oração: A originalidade do Advento está em “alargar” o espaço interior para que os outros encontrem lugar. A atitude da partilha, da solidariedade e do compromisso com os últimos são expressões deste Tempo tão nobre e inspirador.
* Na sua vivência cristã, como responder frente ao chamado tão simples e tão humano de João Batista?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
08.12.21
“Esta é a voz daquele que grita no deserto: ‘preparai o caminho do Senhor’” (Lc. 3,4)
Estamos no tempo do Advento, alimentando uma esperança ousada; para isso, é preciso fazer descer ao nível do chão o orgulho de nossos montes elevados, a presunção de nosso ego inflado, a altura de nossa vaidade...
O pano de fundo deste tempo litúrgico é a experiência bíblica do deserto, lugar onde podemos nos sintonizar com Deus, escutar melhor o seu chamado para sermos presenças inspiradoras neste velho mundo.
Deserto passa a ser tempo de purificação e de vida em marcha: somos povo peregrino deixando-nos conduzir somente por Deus. O deserto é território da verdade, o lugar onde vivemos do essencial. Ali não há lugar para o supérfluo; ali não podemos viver acumulando coisas sem necessidade; ali não é possível o luxo nem a ostentação.
O decisivo é discernir e buscar o melhor caminho para orientar nossa vida em direção à “Terra Prometida”.
De maneira solene, o evangelho deste domingo apresenta o início da atividade de João Batista, situando nas coordenadas concretas de tempo e lugar, os acontecimentos que marcarão a história da humanidade. O evangelista Lucas tem interesse em destacar os nomes dos personagens que controlavam, naquele momento, as diferentes esferas do poder político e religioso; são aqueles que planejam e dirigem tudo.
No entanto, o acontecimento decisivo de Jesus Cristo foi preparado e aconteceu fora dos espaços de influência política e religiosa, sem que os poderosos percebessem o que estava acontecendo nas periferias da história.
Assim, a Graça e a Salvação de Deus banham a história a partir de baixo, dos últimos. O essencial não está nas mãos dos poderosos; eles que controlam as diferentes esferas do poder político e religioso, aqui não decidem nada.
É nesse contexto que Lucas afirma com toda firmeza que “a Palavra de Deus foi dirigida a João, filho de Zacarias, no deserto”. Não em Roma, nem no recinto sagrado do Templo de Jerusalém, mas no deserto. João Batista não é um funcionário do Templo, é um profeta. As instituições e o poder não querem profetas em suas fileiras: homens que pensem, que anunciem, deem ânimo ao povo, ou que denunciem as mazelas do poder desumanizador.
Por isso, muitos profetas aspiravam tanto o deserto, símbolo de uma vida mais despojada e melhor enraizada no essencial, uma vida ainda sem estar “distorcida” por tantas infidelidades a Deus e tantas injustiças com o povo. Neste marco do deserto, o Batista anuncia o símbolo grandioso do “batismo”, ponto de partida de conversão, purificação, perdão e início de vida nova.
Voltar ao deserto: esta é a mensagem chave deste segundo domingo do Advento. Trata-se de aprender a simplificar, centrando-nos no essencial, pois só com o essencial podemos viver no deserto, sem adornos falsos, sem complexos de superioridade. Esta é a maior graça que Deus pode nos comunicar: conduzir-nos de novo ao deserto, para simplificar, para dialogar, para partilhar... Voltar ao deserto para renunciar as comodidades falsas, para sermos nós mesmos, esvaziar-nos e assim poder viver simplesmente como humanos.
É do deserto que surge uma nova “voz”: desafiante, mobilizadora, que nos traz para o essencial; voz que tem forte ressonância em nosso coração.
Estamos imersos numa confusão de vozes que nos distraem, nos saturam e nos fazem viver na superficialidade. As vozes barulhentas que procedem dos grandes centros de poder e dos meios de comunicação são vozes ocas, estéreis, sem consistência, e que se dispersam no ar. Com isso vamos perdendo a sensibilidade para captar as vozes delicadas que procedem do mais profundo de nós mesmos.
A realidade na qual vivemos clama por vozes corajosas, que despertem a vida, as consciências e apontem para um horizonte de sentido. Estamos saturados de vozes carregadas de morte, de ódio, de intolerância...
O Tempo do Advento é um forte apelo de retorno ao coração. Só a voz que vem “lá das quebradas do deserto” é capaz de sintonizar-se com as tênues vozes que brotam do nosso ser profundo; “Voz divina” que desperta nossas vozes. Só ela é capaz de ativar nosso ser original, mobilizar nossos recursos, desbloquear nossa vida, desencadeando um movimento inovador que nos faz entrar em comunhão com todos e com o Todo.
Para ouvir a desafiante voz do Batista é preciso deslocar-nos para o deserto, sair dos espaços fechados e atrofiados. O lugar determina nossa maneira de pensar, de sentir, de amar. A voz que vem dos amplos espaços do deserto tem um impacto rompedor nos nossos espaços rotineiros (físicos, afetivos, psicológicos, sociais, religiosos...); assim, somos impulsionados a sair daquilo que nos dá a sensação de segurança e conforto. Advento não é para acomodados! É para os(as) inquietos(as).
Só o encontro com a “voz” do Precursor pode quebrar o modo arcaico e petrificado de pensar, viver e amar. Só o encontro das duas vozes reacende em nós o desejo de uma transformação contínua.
Sabemos que a “voz” não é só expressão de uma interioridade, articulando sentimentos, pensamentos, sonhos...; toda voz particular também carrega em si a dimensão comunitária; a voz de cada um é caixa de ressonância da voz da humanidade.
Nesse sentido, o Advento é um tempo privilegiado para unir nossas vozes, para fazer emergir uma voz solidária, que assume a voz sufocada de tantos sofredores e excluídos. São tantas as vozes travadas nas gargantas de muitos e que não encontram meios para se expressar. Com isso, a “voz” que nos chama à Vida acaba caindo “no deserto”, ou seja, não encontra destinatários, porque nos encontramos dispersos, distraídos em mil ocupações, vivendo na superficialidade.
Sejamos “voz” dos “sem voz”!
Somos chamados ao deserto onde a voz da Vida ressoa com mais intensidade, sem ser sufocada pelo “vozerio crônico”. Com sua austeridade e simplicidade, o deserto não é lugar de experiências superficiais. A profundidade da identidade de uma pessoa é testada e experimentada no deserto.
O deserto é o grande auditório para ouvir Deus; “solidão” cheia de presença. Ainda que sozinhos, sentimo-nos solidários, em comunhão com todos. A proximidade de Deus vai ser sentida e percebida.
Ao tomar distância do estressante ritmo cotidiano, teremos a possibilidade de reconhecer a voz de Deus em nós com outra intensidade e com outra força. Assim, a experiência de deserto passa a ser “tempo e lugar” de decisão, de orientação da vida, de enraizamento de nossos valores, de consciência maior da nossa identidade pessoal e da nossa missão... O mestre do deserto é o silêncio; o deserto tem valor porque revela o silêncio, e o silêncio tem valor porque nos revela Deus e a nós mesmos.
Texto bíblico: Lc 3,1-6
Na oração: “Preparem o caminho do Senhor,
endireitem suas estradas...”
- O que está “torto” em minha vida pessoal, relacional, espiritual... que precisa ser endireitado?
- Quais são os grandes caminhos tortos, presentes na sociedade de hoje, que clamam por minha presença e meu compromisso, para endireitá-los?
- Que caminhos posso ajudar a construir para despertar uma nova esperança nestes tempos tão sombrios? Como endireitar os caminhos para que chegue mais rápido o Reinado de Deus?
Pe. Adroaldo Palaoro SJ
02.12.2021
“…levantai-vos e erguei a cabeça, porque a vossa libertação está próxima” (Lc 21,28)
Iniciamos um novo ano litúrgico. É Advento. Quando começamos algo novo, o empreendemos com esperança e ativamos nossa melhor disposição. O Advento nos convida a começar de novo, a nos renovar; ele nos oferece uma nova oportunidade para romper inércias, deixar para trás o que é caduco e explorar algo novo em nossas existências.
O Advento nos recorda sempre que as coisas mais importantes da vida requerem espera, vigilância, assombro, acolhida e que a obscuridade e a luz convivem sempre no coração da história e em nosso próprio coração. Ou seja, que tudo está misturado e que o Deus que vem, se embarra, se faz carne em nossa carne, com nossas grandezas e misérias, as nossas e as de nosso mundo; é nessa encarnação que se fundamenta nossa esperança.
Advento fala de esperança-confiança em Alguém que está por chegar e que nós podemos facilitar sua chegada. Esta esperança é como a impressão, os rastos, o desejo ardente que Deus colocou em nosso coração. Deus sonhou o ser humano, e o ser humano anseia por Deus. Nossa história pede um novo sentido a partir desta fé-esperança-confiança. A fé confia em Deus. A esperança confia a Deus.
No Evangelho deste domingo Jesus se esforça por sacudir as consciências de seus seguidores e seguidoras: “tomai cuidado para que o coração não fique insensível; não vos deixeis arrastar pela frivolidade e pelos excessos; mantei viva a indignação; estai sempre despertos; vivei com lucidez e responsabilidade; não vos canseis; mantei sempre acesa a atenção...”
Lucas enumera algumas atitudes que afogam a possibilidade de entrar em sintonia com o Deus que continuamente vem ao nosso encontro: viver o cristianismo acomodado aos critérios do mundo sem nos dar conta, ou seja, insensibilidade do coração; deixar-nos prender pelas garras do consumismo, concretizado nos atos desordenados de comer e beber; as preocupações que esvaziam a vida e nos deslocam do essencial.
Na literatura apocalíptica, os “sinais” que são nomeados no texto do evangelho – movimentos no sol, na lua e nas estrelas, o estrondo do mar e as ondas, a angústia das pessoas, presas do medo e da ansiedade – falam do final do “mundo velho” e do surgimento de um “mundo novo”. Tudo isso pode ser comparado às dores de parto, que anunciam o nascimento de uma nova vida.
Nessa situação difícil, surge a tentação de buscar compensações – “vício, bebida, preocupações da vida” – capazes de nos distrair e inclusive de nos fazer cair em estado de letargia durante um tempo. Mas, todas essas compensações têm em comum que nos fazem adormecer e, desse modo, abortam a novidade que poderia brotar em nós.
Frente a essa armadilha, – nós humanos tendemos a fugir de tudo aquilo que nos assusta ou simplesmente nos desloca -, a leitura evangélica proposta neste início do ano litúrgico é um chamado a despertar. Sabemos do perigo de viver distraídos, dispersos, perdidos nos afazeres cotidianos.
O “despertar” requer atenção, consciência, presença..., e é o contrário da rotina, distração, perturbação, confusão... Trata-se de atitudes contrapostas que remetem a dois estados de consciência: o estado mental, no qual terminamos perturbados, e o estado de presença, que se sustenta na atenção e traz consigo lucidez e liberdade interior.
É preciso ter os olhos abertos para além das preocupações cotidianas para entrar em sintonia com a presença d’Aquel que vem sempre ao nosso encontro. O maior inimigo de nossa existência é a dispersão, ou seja, investir afetivamente nas atividades cotidianas mais imediatas e esvaziar o horizonte de sentido de nossa vida. Para dar lugar Àquele que vem sempre é preciso alargar espaço em nossas vidas, expandir o coração.
À luz do texto lucano, podemos dizer que, em nós existem a angústia, o medo e o espanto, não causados pelos “sinais no sol, na lua e nas estrelas”. Pelo contrário, nossas preocupações e angústias são causadas pelas crises econômicas, pelos conflitos sociais, pelo abuso de poder, pela falta e pão e trabalho, pela cultura do ódio e da indiferença..., e de tantas estruturas injustas, que só poderão ser removidas pela passagem-presença do amor de Deus e sua justiça no coração de todos nós.
Respiremos. “Maranathá!” (Vem, Senhor Jesus!”). Sabemos que a arma mais destrutiva, sofisticada e letal no mundo que vivemos é o medo – “os homens vão desmaiar de medo -; essa força que nos paralisa pouco a pouco. Em primeiro lugar, aceitando as pequenas injustiças, sendo conivente e insensível diante do ódio e das intolerâncias; em segundo lugar, nossa insensibilidade diante das injustiças que massacram os mais fracos e não tocam nosso bem-estar.
Quando o nível de injustiças vai subindo, é sinal de que estamos nos acostumando com elas: elas vão nos “aclimatando”, nos domesticando e nos insensibilizando. Nesse fluxo da injustiça, vamos nos esquecendo que a dignidade humana é coisa séria e que é preciso defendê-la a todo custo.
É urgente não nos deixar determinar pela armadilha do medo; e, para isso, somos convidados a nos adentrar no tempo do Advento que nos fala dos contrastes tão fortes que o ser humano vive em todos os tempos: a violência e a confiança, o medo e a esperança, a fé inquebrantável e a dúvida angustiante....
Nestes tempos de obscuridade e sofrimento, somos desafiados e continuar crendo nos recursos e nas ricas possibilidades que a humanidade carrega em seu interior; para isso devemos “estar vigilantes, orando a todo momento” (Lc 21,36). Vigilantes, mas sem medo.
É preciso cuidar para que se renove a esperança e a fé na vida. É preciso manter acesa a certeza de que a comunidade global chegará a viver na Paz, que emergirá indestrutível a partir do mais profundo de nossa consciência, para estendermos os braços uns aos outros com olhar cristalino e sentimentos divinizados.
O Advento desperta em nós o carisma de sermos “poetas do futuro”, embelezando tudo o que vemos e fazemos, revelando uma Presença que dinamiza tudo, inclusive no mais doloroso.
Deus, com sua vinda permanente ao mundo, marcou um caminho de esperança para os descartados da sociedade. O Advento é tempo de espera (do verbo “esperançar”), tempo para recordar que ninguém fica fora da foto, que todos somos protagonistas e convidados a sair das sombras que nos rodeiam.
Nossa esperança é saber que Deus “olhou a humildade de seus servos e servas”, e nos instiga a levantar o nosso olhar para ver os rostos daqueles que arrastam suas vidas na sombra da exclusão e da dor.
O Advento é tempo de assombro e de renovação, mas pede de nós situar-nos frente à realidade não como algo já conhecido, mas como permanentes aprendizes.
Assombro diante do mistério e da gratuidade do Deus de Jesus que quer fazer tudo novo; assombro diante do milagre do amor e da entrega e seu empenho, no coração humano e na história, de renovar tudo, até que toda a realidade e a criação sejam uma contínua “ação de graças”, até que surjam o novo céu e a nova terra onde não haverá mais pranto, nem primeiros e nem últimos.
Texto bíblico: Lc 21,25-28.34-36
Na oração: A vida cristã é uma vida de espera, traço característico do ser humano, pois se trata de uma espera carregada de esperança.
No supermercado da vida há muitas ofertas que pretendem preencher o vazio da espera, mas não tem consistência, não nos saciam, não nos preenchem, e não nos apontam para um horizonte de sentido.
Esperar é uma forma de viver, um hábito de vida. Nós somos o que esperamos.
Existem esperas doentias, que provocam ansiedade, medo e nos paralisam; esperas centradas em nós mesmos.
- O que espero? Se não sei o que espero, a vida perde o sentido; quem não espera, não busca, não amadurece.
- O que vislumbro no meu horizonte pessoal, profissional, social, eclesial...?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
26.11.2021
imagem: pexels.com
“Todo aquele que é da verdade escuta a minha voz”
A Igreja Católica celebra, no último domingo do Ano Litúrgico, a festa de Cristo Rei. Uma imagem provocativa, pois quebra toda concepção que temos de “rei” e “reinado”.
Esta é a ousadia de Jesus: proclamar-se “rei” sem tomar a Capital, sem conquista militar como os impera-dores romanos, nem por eleições, nem por herança de família, nem por estratégia de partido...
Certamente, Jesus utilizou a imagem de rei e de reino, mas não quis ser rei na linha do domínio econômico, social ou militar, mas de serviço mútuo, revelando aos homens o testemunho da verdade de Deus e do sentido da vida. Por isso, não veio para anunciar uma guerra apocalíptica, nem a destruição dos perversos, mas semear humanidade, a partir da Galiléia, oferecendo a Palavra aos enfermos, marginalizados e pobres, pois outros haviam se apropriado dela, deixando-os sem nada. Quis assim que todos fossem reis, em um Reinado fundado na verdade de Deus e na fraternidade entre os homens.
O evangelho deste domingo nos apresenta uma cena inusitada: o poder terreno se depara com alguém que diz: “sou rei”, sendo um condenado à norte, sozinho, frágil, pobre, despojado de todo poder, que passou a noite submetido a terríveis torturas, coroado de espinhos, sangrando e com as mãos atadas. Esse Rei é Jesus, um profeta que desafiou os dogmas do poder terreno representado por Pilatos.
Aqui, nesta cena, se enfrentam o opressor e o oprimido. Jesus tem autoridade sem governar, exige sem dominar nem oprimir; propaga sua verdade sem conquistar nem impor. Seu reinado não cria instituições de poder terreno, senão que cria fraternidade.
Onde se apoia a autoridade de Jesus e a precariedade da autoridade do governador Pilatos? No testemunho da Verdade. Pilatos não dizia a verdade, não caminhava na verdade, nem estava a serviço da verdade. E Jesus era a Verdade. Em sua vida, Jesus sempre se revelou verdadeiro e transparente; ensinou e realizou a verdade: “para isto nasci, para dar testemunho da verdade”.
Jesus, sendo autêntico, sendo verdade, era o verdadeiro Rei. Mas o que lhe pedia seu verdadeiro ser era colocar-se a serviço de todo aquele que lhe necessitava, sem impor nada aos demais. Nesse sentido, Jesus é Rei, porque vem dar testemunho da verdade, mas não de uma verdade racional ou teológica, separada da Vida, mas da mesma vida como transparência de amor, em comunhão com todos.
Jesus é Rei e todos podemos ser “reis” n’Ele e com Ele; “ser rei” é viver des-centrado, sensível à realidade de quem sofre, criativo no espírito de serviço; “ser rei” é viver na verdade do que somos, em gesto de transparência, que é amor mútuo, conhecimento compartilhado, sem armas, sem negociatas políticas, sem manipulação da religião para enriquecimento ilícito.
Esta é a festa da Igreja, a festa da Verdade. Não se trata de dizer que Jesus é a Verdade e viver depois na mentira estruturada. Trata-se, simplesmente, de viver na verdade: verdade que é transparência afetiva, pessoal e relacional; só a verdade nos cura e nos liberta do apego ao poder, da ganância do dinheiro, da imposição sobre os outros...
É da essência do ser humano existir sempre na verdade. É preciso des-velá-la e não escondê-la. A verdade é indobrável. Mesmo ensanguentada, não capitula. Verdade exige honestidade, pois, sem honestidade, a verdade passa a ser produto de barganha. Verdade violentada por interesses mesquinhos, verdade esvaziada de compaixão e de sentimentos. Percebemos no contexto atual que o importante não é a verdade do ser, mas a do aparentar; o importante não é a coerência de vida, mas a mentira camuflada de verdade.
A ocultação da verdade é um dos sintomas mais fortes do processo de desumanização que estamos vivendo; a “cultura da mentira”, a destruição da reputação dos outros através das “fake news”, os negócios escusos, os orçamentos secretos, o negacionismo como hábito de morte... constituem a chamada “crise da mentira”. Quanta incoerência! Dizemos que somos seguidores d’Aquele que “veio testemunhar a verdade” e, no entanto, procedemos como canais por onde flui a mentira deslavada.
Des-velar a verdade de si mesmo e acolher a verdade no outro é sinal de maturidade. A verdade é limpa. É inocente. A verdade retira o mundo das trevas da ignorância, do negacionismo, do “terra-planismo”.
Os “pilatos” da atualidade estão a postos violentando a verdade em nome de uma ideologia que alimenta ódios, preconceitos, intolerâncias...
Também nós, em nosso interior, alimentamos um Pilatos para quem vale a mentira, o engano, a falsa promessa, a falsa imagem... Acaso somos o que dizemos ser? Acaso vivemos o que falamos?
Desse modo, quem se fecha numa crença ou numa ideologia, sente-se automaticamente dono da verdade. Daqui brotam a exclusão de quem pensa e sente diferente, o fanatismo, o proselitismo... Tudo isso a partir de uma atitude arrogante, que pretende auto-justificar-se, apelando à posse da verdade.
Diante dos donos do poder e das autoridades religiosas que se julgam em posse da verdade e que tem um “deus” feito à medida de seus interesses, Jesus afirma que “veio para dar testemunho da verdade”. A Verdade é uma das grandes carências existenciais; ela aponta para o sentido da existência, expressa a grande e permanente busca do ser humano. Não se trata de uma necessidade periférica, mas uma dimensão que nos humaniza. Jesus, diante de Pilatos, se apresenta como resposta a esta busca.
“Conhecer a verdade” é aspiração humana inata. O ser humano tem sede de verdade. Vai buscá-la nas dimensões mais profundas de seu espírito. Antes que “ter” a verdade, ele quer “ser verdade”, ele deseja existir na verdade. Descobrir a verdade é desejo mobilizador.
Compensa atravessar vigílias e trilhar veredas para chegar à verdade. Uma das angústias humanas é não alcançar o manancial da verdade. Enquanto existir verdade encoberta, o ser humano vive inquieto.
A verdade clareia a vida. Sem a verdade, a existência é sombria. A verdade gera autenticidade. Onde falta a verdade, instala-se lacuna na existência. Quem não vive a verdade, está “carunchado” por dentro. Impregnar-se da verdade é humanizar-se.
Ser “testemunha da verdade” requer “viver na verdade”; e viver na verdade inclui o reconhecimento e a aceitação da própria verdade (com suas luzes e sombras) e da verdade dos outros. Quando alguém transita por este caminho, começa a viver na humildade e isso é já “caminhar na verdade” (S. Teresa).
Ser seguidor de Jesus é fixar o olhar n’Ele, pois Ele é o centro do nosso caminho; ao caminhar com Ele, vamos nos revelando e a partir d’Ele vamos descobrindo nosso ser verdadeiro (que nos abre para acolher a verdade presente em cada ser humano – verdade que vai além das verdades religiosas, políticas, ideológicas...). É significativo que os antigos gregos entenderam a verdade como “a-létheia” (“sem véu”), ou seja, quando emerge a verdade de nós mesmos.
Quem se descobre verdadeiro e sem máscara, vive profundamente, alarga sua vida a serviço dos sem-vida.
E esse reconhecimento da verdade – isso é a humildade – se transforma em luz, descanso e liberdade.
Esta é a via da humanização; e quanto mais nos humanizamos, mais nos divinizamos.
Texto bíblico: Jo 18,33-37
Na oração: Jesus Cristo é a única Verdade; é na Verdade d’Ele que todos “somos, vivemos e existimos”.
- Devemos fazer um exame do consciente coletivo diante d’Aquele que é “Testemunha da Verdade”.
- É preciso atrever-nos a discernir com humildade o que há de verdade e o que há de mentira em nosso seguimento de Jesus.
- Onde há verdade libertadora e onde há mentira que nos escraviza?
- Precisamos dar passos em direção a maiores níveis de verdade humana e evangélica em nossas vidas, em nossas comunidades, em nossas instituições.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
17.11.21
“Aprendei da figueira esta parábola: quando seus ramos ficam verdes e as folhas começam a brotar, sabeis que o verão está perto” (Mc 13,28)
Estamos chegando ao final de mais um “ano litúrgico” (este é penúltimo domingo), e a liturgia nos propõe leituras que, fazendo referência aos “últimos tempos”, querem nos convidar à “vigilância” e a atenção ao tempo presente.
O Evangelho de hoje é parte do cap. 13 do Evangelho de Marcos, que contém um breve “apocalipse”, ou seja, uma revelação, um desvelamento, um desnudamento dos múltiplos véus que cobrem a realidade humana, com suas contradições, incertezas, promessas e esperanças.
Devido às imagens que este gênero literário utiliza, com frequência atribui-se ao termo “apocalipse” um significado de “catástrofe” ou “destruição”. A realidade, no entanto, é diferente. Etimologicamente “apo-kalypsis” significa “destapar o que está escondido”, “tirar o véu”, “desvelar”, ou seja, “revelação”.
No texto evangélico de hoje nos é revelado, através de sinais (abalos celestes e terrestres, tribulações...), que esta ordem das coisas (o “mundo”) vai ser renovado em profundidade. Tudo desmorona à nossa volta, tudo vai desaparecer; mas o que o texto realça é a contundente confiança na afirmação e na promessa de Jesus: “O céu e a terra passarão, mas minhas palavras não passarão”. Ele trará a salvação de Deus; não chegará com aspecto ameaçador.
A destruição anterior é a possibilidade de uma construção mais profunda, fundada no Filho do Homem. Por um lado, o mundo velho acaba. Mas, por outro, chega o ser humano verdadeiro, a humanidade de Deus. Para quem crê, o mesmo “fim deste mundo” vai se converter em princípio de esperança universal.
Por isso, as palavras de Jesus “não passarão”; não perderão sua força salvadora; continuarão alimentando a esperança de seus seguidores e serão sempre alento para os pobres.
As Palavras do Filho do Homem constituem o nosso rochedo, são a nossa força; elas são o centro de nossa vida, iluminando-nos e ativando nossos melhores recursos para acolher a novidade radical do Evangelho.
O sol, a lua e os astros se apagarão, mas o mundo não ficará sem luz. Será o Filho do Homem quem o iluminará para sempre, estabelecendo a verdade, a justiça e a paz na história humana, tão marcada por contínuas mentiras, injustiças e violências.
Nesse sentido, pode-se afirmar que, no final, não será preciso sol ou lua, porque o Filho do Homem será diretamente luz e vida para todos. Seus seguidores poderão ver finalmente seu rosto tão buscado: “Vereis o filho do Homem vindo nas nuvens”. Não caminhamos para o nada e o vazio. Jesus virá ao nosso encontro, para nos conduzir ao abraço do Pai de bondade.
Quando acontecerá tudo isto? Já, agora mesmo: tudo está acontecendo. Estamos na noite que precede à aurora do dia do Homem, da humanidade de Cristo. Devemos nos manter como servos vigilantes no tempo das tribulações e das trevas deste mundo, cheios de esperança.
Jesus põe como sinal uma figueira. Estamos na primavera/verão que precede o tempo dos bons figos, dos bons frutos. Neste contexto podemos recordar o risco de sermos figueiras estéreis, sem frutos. E Jesus está esperando os frutos de nossa figueira. Nós mesmos somos o sinal de que deve chegar o Filho do Homem, a humanidade reconciliada. Este é o tempo oportuno.
Está preparada nossa figueira para dar frutos? Em que “estação” nos encontramos?
Jesus era um profundo observador da natureza; sabia “ler” as estações da natureza e vislumbrar, por detrás delas, a manifestação da presença divina.
Toda estação tem seu sentido, sua riqueza e seu mistério. Não é um mero repetir de ciclos: cada uma delas traz algo novo, diferente. Também não estão separadas e nem há uma divisão estanque entre as estações: estão interconectadas, interdependentes. Cada estação é mobilização para a seguinte.
As estações da natureza nos ajudam a desvelar as estações existenciais. Cada estação interna é um “kairós”, um tempo único e original, que deve ser vivido intensamente. Cada estação interior também apresenta sua riqueza e seu mistério. O problema está na petrificação de uma estação interior, ou seja, medo da mudança, medo de entrar em outra estação, medo de fazer a passagem.
Outro problema é o fato de não suportar uma determinada estação, querendo fugir dela para entrar logo em outra estação. Cada estação gesta algo novo; vivê-la a fundo é humanizar-se, deixar-se surpreender.
Podemos distinguir dois movimentos nas estações existenciais: dois de maior interioridade (outono e inverno): tempo de desfolhamento, esvaziamento e poda para livrar-se do que está sobrando (outono). Tempo de descida (hibernação) para concentrar-se no essencial (inverno).
Outro movimento: primavera e verão – vida expansiva, aberta (tempo dos brotos, flores e frutos: sonhos, desejos, projetos, criatividade).
Em todas as estações há uma certeza: a presença da seiva (presença divina), que tudo sustenta, embora, muitas vezes tudo parece estar morto.
Cada tempo litúrgico também apresenta diferentes estações ao longo do ano; estamos terminando um tempo litúrgico, com suas diferentes estações, e nos preparando para viver outro novo tempo, com suas surpresas. Uma nova esperança reacende e a nossa vida adquire novo sabor e sentido.
O anúncio de uma nova “estação” abre um “tempo” de júbilo imenso porque chega o Filho do Homem, nova humanidade reconciliada, a meta da criação de Deus, centrada e redimida em Cristo.
Estamos esperando o novo ser humano que vem de Deus, ou seja, de nossa mesma capacidade divina de ser e de nos renovar; esperamos o Deus de Jesus que é e que vem em nós.
Falsos sóis, luas e astros (ego inflado) querem fazer prevalecer suas efêmeras luzes em nosso interior, fazendo brilhar nossa vaidade, nossa prepotência, nosso autocentramento. Tudo isso deve ser abalado e cair, para que o centro de nosso espaço interior seja ocupado pela presença d’Aquele “que é tudo em todos”.
Nos dias sem sol de nossa vida, a esperança se parece a esses ramos de árvores no inverno. Dá a impressão de estarem mortas. Mas o calor da primavera as desperta e as veste de novo vigor. Há dias nos quais a esperança se parece a grãos semeados na terra. Ninguém mais os vê, até que um dia somos testemunhas de que o broto surge e o talo espera a espiga.
Para o cristão, a esperança é muito mais que otimismo; é a virtude teologal que nunca engana. Esperar é a capacidade de ver, mesmo quando nossos olhos não veem. É um dom do Espírito que deve ser pedido sempre. Cristo é o motivo angular de nossa esperança, a revolução na história apesar da limitação, do mal e da morte, que nos impulsiona a “esperar contra toda esperança” (Rom. 4,18)
Texto bíblico: Mc 13,24-32
Na oração: “Marana thá” (vem, Senhor! Vem, mundo melhor!), repetiam em aramaico os primeiros cristãos para dizer e realizar a esperança. Esperar não é pedir nem aguardar que alguém venha ou que algo aconteça. É levantar a cabeça e abrir os olhos, levantar-nos cada dia, deixar-nos inspirar pelo Espírito que alenta em tudo, semear e antecipar o mundo melhor, necessário e possível, como fez Jesus. Assim é que devemos e podemos “esperar”.
- Em que “estação” a árvore da sua vida se encontra? Primavera, verão, outono ou inverno? Você percebe o “novo” que cada uma delas está gestando?
- A “seiva”, que inspira e sustenta todas as “estações” de sua vida, encontra facilidade para circular por todo o seu ser? Há alguma dimensão da sua interioridade que está bloqueada, impedindo a passagem do “oxigênio divino”?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
13.11.21
“Sede como homens que estão esperando seu senhor voltar de uma festa de casamento...”(Lc 12,36)
“Fazer memória” dos entes queridos que já fizeram a “travessia” para a plenitude, nos situa diante desta realidade: todos morremos sozinhos, mas morremos, ao mesmo tempo, para todos e com todos, na grande corrente de Vida da qual todos procedemos, na qual todos pós-vivemos; ou seja, retornamos ao coração d’Aquele a quem Jesus chamou “Deus dos Vivos”, não de mortos.
Morremos em Deus, para que nossa vida possa se fazer vida para os demais.
A vida é um contínuo expandir de possibilidades, recursos, dinamismos... e a morte se revela como a “expansão radical”: mergulhados em Deus, nos tornamos universais; rompemos os limites do tempo e do espaço e a plenitude de vida, tão buscada, torna-se realidade.
O impulso que alimenta nosso anseio por sermos eternos, deixa de ser uma ilusão.
Passamos por sucessivas experiências de vida que rompem os limites; assim, o nascimento de uma criança significa expandir sua vida que se tornara estreita no ventre materno. No processo de ruptura, aconteceu uma morte à situação anterior, mas as possibilidades de vida se ampliaram: novo espaço, novas relações, novos desafios... Assim, no percurso histórico de cada um, sucessivas mortes vão abrindo horizontes inspiradores e a vida vai se enriquecendo no encontro com todas as expressões de vida: nas pessoas, na natureza...
A partir desse horizonte de Vida que se abre intuímos que a “grande travessia final” é o processo natural na qual todos, um dia, vão se deparar. Para os que estão do lado de cá da fronteira, têm-se a impressão que a pessoa “partiu”; para os que estão do outro lado, há a certeza que a pessoa está “chegando”, carregada de vida, de memória e de experiências. E viverá para sempre dentro do mistério do “Deus dos vivos”.
Como cristãos, acreditamos que “a vida se transforma no seio da Vida em Cristo”; sua vitória solidária na ressurreição abre, para todos, o mesmo destino: seremos “aspirados” para dentro do coração de Deus.
Há um dado que nos afeta a todos nestes tempos pós-modernos: a incapacidade cultural de abordar os limites, perdas, fracassos, mortes... Vivemos uma cultura na qual a dor e a morte foram expulsas da experiência humana. É algo feio, de mau gosto, algo a ser eliminado da vida cotidiana.
Vivemos uma das grandes mentiras de nosso tempo, ou seja, a morte já não está presente no cenário cotidiano, já não existe. A morte é distante e virtual, que não afeta à nossa própria sensibilidade.
Vivemos como se tivéssemos que ser imortais. Sempre é assunto dos outros, mas nunca pode ser assunto “meu”. Quando ela está perto, as pessoas se afastam dela, ou então, ela é afastada para locais específicos.
É o fracasso radical de uma cultura fundada sobre o êxito e o sucesso e, quando sentem a presença da morte, tudo fica desestabilizado.
Mas o confronto com a morte não precisa desembocar em um desespero que possa destituir a vida de todo sentido. Ao contrário, a morte pode ser uma experiência que nos faz despertar para uma vida mais intensa.
Ela nos faz reingressar na vida de uma maneira mais rica e apaixonada; ela aumenta a consciência de que esta vida, nossa única vida, deve ser vivida de maneira mais inspirada e plena, sem a marca da culpa e dos remorsos. Paul Theroux disse que a morte é tão dolorosa de se contemplar que nos faz “amar a vida e valorizá-la com tal paixão que ela poderia ser a causa verdadeira de toda felicidade e de toda arte”. A experiência da morte pode servir como uma experiência reveladora, um catalisador extremamente útil para grandes mudanças na vida. “A morte, menos temida, dá mais vida”.
O evangelho indicado para este dia nos fala de “velar”, de “estar preparados”: é um chamado a despertar. Estamos despertos quando mantemos uma “atenção plena” ao que acontece em nosso interior e ao nosso redor. Um dos riscos que hoje nos ameaça e esfria nosso fervor no seguimento de Jesus é cair numa vida superficial, mecânica, rotineira, massificada... Com o passar dos anos os projetos, metas e ideais vão se apagando e perdemos a capacidade de dar um sentido novo à nossa existência.
A vigilância não é medrosa e pessimista; é alegre expectativa do Deus que nos surpreende no hoje de nossa existência; é chamado a viver com lucidez e responsabilidade, sem cair na passividade ou letargia.
Por isso é preciso estar despertos e viver a “espiritualidade da espera”: isso implica viver o momento presente, porque qualquer momento é o definitivo, é viver o tempo habitado por Deus. Esperar é estar despertos para nos conectar com essa Presença sempre surpreendente.
Uma visão esvaziada da morte desumaniza a vida presente e nos impede de viver em plenitude o momento atual. A vida presente tem pleno sentido por si mesma. O que projetamos para o futuro já está aqui e agora, ao nosso alcance. Aqui e agora podemos viver a eternidade, quando a vida é atravessada pela Vida divina. A “espera” tem, sem dúvida, um significado ativo; a “espera” não pode separar-se da busca e do encontro, do agir, do amar e servir. A espera é agradecida, é construtiva, é autêntica sede de Deus. Espera ligada ao verbo “esperançar”. Nosso coração está habitado de esperas. Vivemos em “estado de espera”. Somos seres esperantes: através das esperas revelamos quem somos.
Longe das esperas superficiais, efêmeras, sem densidade, o cristão vive a Espera que nos abre ao novo, ao futuro, que nos faz criativos...
A surpresa e a riqueza de cada momento fazem de cada instante da vida a antecipação do que será a vida plena. Viver a vida neste mundo, em comunhão com todas as expressões de vida, é conhecer a alegria de apostar como se fôssemos eternos.
É na escuridão da dor e da morte que a fé se manifesta e nos revela que fomos feitos por mãos celestiais, chamados à vida, para a liberdade, para a bondade, para a amplidão dos céus.
Confessamos que a vida é de Deus e, como Ele, é eterna. E nossa última morada não é sob a lápide fria de um túmulo, mas no coração do mistério de um infinito Amor.
A morte do ser humano é um “trânsito para o Pai”, “morrer para dentro de Deus”. Vivemos “travessias” provisórias até a grande travessia para Deus. A morte é nossa confirmação na mão de Deus: Ressurreição.
Assim diz Paulo: “Mas tudo o que é denunciado é manifestado pela luz; e tudo o que é manifestado torna-se claro com a luz. Eis porque se diz: ‘Desperta, tu que estás dormindo, levanta-te dentre os mortos, e Cristo te iluminará". (Ef 5,13-14)
Texto bíblico: Lc 12,35-40
Na oração: Todos morreremos, mas podemos descobrir na morte a mão de Deus e oferecer nossa mão de amor a todos, como fez Jesus, como fez Maria, como fizeram tantas pessoas que deixaram suas “marcas” de amor em cada um de nós.
- “Fazer memória” dessas pessoas é ativar a “memória agradecida” que inspira um compromisso em favor da vida.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
01.11.21
Imagem: pexels.com
“Os discípulos aproximaram-se, e Jesus começou a ensiná-los: Bem-aventurados...” (Mt 5,1)
A festa deste domingo nos diante de uma infinidade de santos e santas anônimos(as), esses(as) que não foram oficialmente canonizados(as), nem estão nos calendários litúrgicos, mas cujas vidas deixaram transparecer a santidade de Deus e viveram, com radicalidade, as bem-aventuranças proclamadas por Jesus; ao mesmo tempo, esta festa desperta nossa sensibilidade para perceber que estamos continuamente rodeados de muitos(as) santos(as), homens e mulheres que, no escondimento do cotidiano, revelam uma presença aberta e comprometida, inspirada e mobilizadora; uma vida carregada de fidelidade e de alegria evangélica.
Que tem todos eles(elas) em comum? Que suas vidas apontam para Deus de maneira clara; aquilo que vivem, que fazem e que dizem manifesta que são conduzidos(as) pelo Espírito de Deus. E, por isso, quando os(as) vemos ou encontramos com eles(as), intuímos que é possível o amor, a misericórdia, a compaixão, a justiça, a bondade, a mansidão, a pureza de coração...
Em que se diferenciam? Em tudo o mais: seguramente há jovens e anciãos, instruídos e analfabetos, mulheres e homens; haverá tímidos e extrovertidos, hiperativos e calmos... Uns vivem o evangelho no contato constante com as pessoas; há outros que consagram suas vidas à ciência, na solidão de um laboratório ou de uma biblioteca. Dançam, rezam, abraçam, choram, amam, se equivocam, acertam..., porque, afinal de contas, são todos humanos. E ser santo(a) é ser humano por excelência.
A santidade não é a busca de um perfeccionismo autocentrado, nem um cumprimento virtuoso de leis para receber medalhas de mérito. É uma maneira original de viver o amor: radical, possível, definitiva. A santidade não é buscada para que cada um possa sentir-se orgulhoso; é vivida porque é uma forma de melhorar o mundo, a própria vida e a dos outros.
Os(as) santos(as), de ontem e de hoje, nos confirmam que todos podem ser transparência da santidade de Deus neste mundo. Certamente, muito perto de nós existe alguém que é janela aberta que aponta para essa direção. Não há santos(as) de primeira grandeza e outros de segunda, mas uma só santidade que se revela e se expressa na comunhão de todos. Teresa D’Ávila afirmava que a santidade não é um privilégio de poucos; é uma responsabilidade de todos nós; ser santo(a) é ser inteiro(a), é ser simples, é ser transparente, é ser original.
Nossa vocação é a santidade da Vida para além de todo sistema moral, para além de toda crença, para além de toda religião, porque fora da Igreja há salvação ou santidade. A santidade é, pois, um dom recebido de Deus, que alimenta em nós o desejo e a disposição de “sair de nós mesmos” para viver a experiência do amor na relação com o mesmo Deus, no encontro com os outros e no cuidado e proteção da Casa Comum.
O evangelho indicado para esta festa nos revela que Jesus, no alto da Montanha, mostrou o grande caminho para nos conectar com a santidade de Deus: as bem-aventuranças. Nelas, Jesus proclama que o verdadeiro segredo para uma humanidade totalmente recriada é a força expansiva do amor e da misericórdia, cimentadas no comum denominador da humildade.
Só entrando na dinâmica da transcendência podemos descobrir o sentido das bem-aventuranças. Muitas vezes, a Igreja se esqueceu que ela deve estar a serviço de um projeto de felicidade, e acabou se convertendo num rebanho de “sofredores” (“neste vale de lágrimas”), sob a guia de “experts” pastores da dor, do sacrifício, do medo e do juízo. Mas, como cristãos, somos seguidores(as) d’Aquele que foi um “expert” na felicidade. Por isso, é chegado o momento de recuperar o evangelho da felicidade, na linha das bem-aventuranças.
O Deus que Jesus anunciou sempre esteve comprometido com a vida plena dos seus filhos e filhas, oferecendo um caminho de felicidade para todos, começando pelos pobres. É um Deus que ama os pequenos e perdidos, assumindo com e para a humanidade um projeto de felicidade e vida plena.
Nesta festa de “Todos os Santos e Santas”, é inspirador revisitar as bem-aventuranças: elas nos despertam, nos des-velam e, inclusive, nos inquietam, porque, se as assumimos como estilo de vida, elas nos desinstalam e nos ajudam a compreender a vida de uma maneira diferente. Com o impacto das bem-aventuranças em nosso coração, deixam de estar na primeira linha a violência, o ódio, o poder, a vaidade, a intolerância, o negacionismo..., que ficam substituídos pela paz, solidariedade, bondade, humildade, justiça...
Os(as) santos(as), de ontem e de hoje, fizeram das bem-aventuranças o centro e a pauta de seu viver; todos(as) eles(as) colocaram à frente de suas vidas não o Decálogo escrito em tábuas de pedra, mas as bem-aventuranças, escritas em seus corações. Elas já estão presentes no mais profundo de todos os seres humanos; o que Jesus fez ao proclamá-las foi desvelar o que é mais nobre e mais humano em cada pessoa.
O(a) santo(a) é, de certa forma, um(a) especialista na arte, muitas vezes árdua, de “transgredir”, de liberar, de abrir os espaços ocupados pelas certezas efêmeras, para dar lugar à vida do Espírito. É um(a) profeta(tisa) do retorno ao essencial, um(a) espeleólogo(a) das profundezas do ser humano, na busca do que realmente importa. E essa capacidade de ir mais longe permite-lhe colher as sementes da eternidade já no “chão da vida”, de viver com o coração projetado para a “terra prometida” da plenitude. Imerso(a) no presente, sim, mas sem se deixar sobrecarregar, sabendo que cada um é parte do mundo, sem ser o seu centro.
Sua presença contagia a alegria do Evangelho pois só ele(ela) é capaz de remover obstáculos que impedem o humor de viver como ressuscitados(as).
Não é coincidência que "humildade" e "humor" têm uma origem comum, ambos derivam de "húmus", terra.
A alegria vincula-se ao estado de plenitude humana, à criatividade, ao entusiasmo, ao prazer, ao contentamento, à satisfação, ao regozijo, à felicidade. “Bem-aventurados os que sabem rir de si mesmos: nunca cessarão de se divertir”.
“O(a) santo(a) é capaz de viver com alegria e sentido de humor. Sem perder o realismo, ilumina os outros com um espírito positivo e rico de esperança. Ser cristão é ‘alegria no Espírito Santo’” Rom. 14,17) " (Papa Francisco – GE. n. 122)
Os Evangelhos revelam que Jesus vivia sereno, feliz, alegre. As bem-aventuranças são o fiel reflexo de sua vida. Seu íntimo trato com o Pai, sua paixão pelo Reino, suas relações pessoais, suas amizades, seu modo de enfrentar a “hora”, sua aceitação da vontade do Pai, sua paixão e morte são vividas em paz.
Diante dos prodígios e milagres que vai realizando em sua vida pública, Jesus exulta de alegria no Espírito Santo. Ele nos revela que Deus é alegria em si mesmo e para nós, e que a salvação definitiva é “entrar na alegria do seu Senhor” (Mt 25,21).
Portanto, o modo de proceder do(a) santo(a) no mundo é imagem fiel do modo de proceder do próprio Jesus, que é princípio e garantia da Verdade, do Bem, da Justiça, da Misericórdia, da Compaixão...
Texto bíblico: Mt 5,1-12
Na oração: Olhemos, contemplemos, sintamos, observemos, deixemo-nos conduzir pela santidade do Espírito. Descobriremos as paisagens interiores e panorâmicos que nunca descobriríamos por nós mesmos; descobriremos, sobretudo, que cada um(a) de nós é um(a) “santo dos Santos”, um sacrário da santidade de Deus. O “santo dos santos” é o coração mesmo de cada pessoa e a santidade de Deus se identifica com a vida de cada um(a).
- Sua presença junto às pessoas do seu cotidiano deixa transparecer a “santidade” de Deus?
- Contemplar saboreando o significado de cada uma das bem-aventuranças: em que medida elas se visibilizam no seu dia-a-dia? Há algo petrificado em seu interior que trava o fluxo das bem-aventuranças?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
01.11.21
Imagem: pexels.com
“Amarás o Senhor teu Deus... amaras o teu próximo como a ti mesmo” (Mc 12,30-31)
Este é o contexto do evangelho deste 31ºdomingo do Tempo Comum: Jesus já está em Jerusalém há alguns dias; realizou a purificação do tempo, discutiu com os chefes dos sacerdotes, mestres da lei e anciãos sobre sua autoridade para fazer tais coisas; com os fariseus e herodianos discutiu sobre o pagamento do tributo a César; com os saduceus discutiu sobre a ressurreição...
Nesse ambiente marcado por tantos conflitos, um “mestre da lei” se aproxima de Jesus; não demonstra nenhuma agressividade e nem lhe estende uma armadilha, mas vive uma angústia existencial, marcada por um forte legalismo. Sua vida está fundamentada num emaranhado de leis e normas que lhe determinam como comportar-se em cada circunstância, sem dar margem à criatividade e ao desejo de abrir-se ao novo. Do seu coração brota uma pergunta decisiva: “Qual é o primeiro de todos os mandamentos?” Qual é o mais importante para acertar na vida? Onde centrar a vida para livrar-se do peso das exigências da lei?
A pergunta do mestre da lei tem sentido porque na Torá encontravam-se 613 preceitos. Para muitos rabinos todos os mandamentos tinham a mesma importância, porque procediam de Deus. Para alguns, o mandamento mais importante era o cumprimento do sábado. Para outros, o amor a Deus era o primeiro.
Jesus entende muito bem o que sente aquele homem que dele se aproxima. Quando na religião vão se acumulando normas e preceitos, costumes e ritos, doutrinas e dogmas, é fácil viver dispersos, sem saber exatamente que é o fundamental para orientar a vida de maneira sadia.
Tanto naquele tempo como hoje somos sufocados por uma abundância de leis, tanto religiosas como civis. No fundo, estão sobrando leis, mas está faltando o amor. O amor não cabe nas leis, só cabe no coração. Quem ama não precisa de leis.
A novidade da resposta de Jesus está no fato de que o mestre da lei lhe perguntou pelo mandamento principal (“amarás o Senhor teu Deus...”), mas Ele acrescenta um segundo, tão importante como o primeiro: “Amarás o teu próximo como a ti mesmo”. Ambos mandamentos estão no mesmo nível, devem ir sempre unidos; Jesus faz dos dois mandamentos um só. Ele não aceita que se possa chegar a Deus por um caminho individual e intimista, esquecendo o próximo. Deus e o próximo não são magnitudes separáveis. Por isso, tampouco se pode dizer que o amor a Deus é mais importante que o amor ao próximo.
Diante da pergunta do mestre da lei pelo mandamento mais importante (no singular), Jesus responde dizendo que são dois (no plural). E não há mandamento maior que eles.
A resposta de Jesus aponta para os dois eixos centrais na vida dos seus seguidores: Deus e o próximo; ambos eixos se exigem mutuamente, a ponto de um levar ao outro, e a ausência de um provoca a ausência do outro. Quem está sintonizado em Deus, está necessariamente aberto ao amor e à solidariedade; e quem está centrado no amor ao próximo está aberto à iniciativa e graça de Deus.
O(a) seguidor de Jesus não se caracteriza por pertencer a uma determinada religião, nem por doutrinas, nem ritos, nem normas morais... mas por viver no “fluxo do amor” que tem sua fonte no coração do Pai.
O mandamento do amor não é apresentado como uma lei que torna nossa vida dura e pesada, mas uma resposta ao que Deus é em cada um de nós, e que em Jesus se manifestou de maneira contundente. Nosso amor será “um amor que responde a seu Amor”.
O Amor que é Deus, temos de descobri-lo dentro de nós, como uma realidade que está unida intimamente ao nosso ser. Por isso, só há um mandamento: manifestar esse amor que é Deus, em nossas relações com os outros; o amor é o divino germinando nos meandros do humano. O amor é a realidade que nos faz mais humanos.
Ser seguidor(a) de Jesus, portanto, é uma questão de amor. Amar como Ele é transformar-se n’Ele.
O seguimento de Jesus nos convida a esta liberdade que se encontra na palavra “Ágape”, o amor da superabundância, o amor de gratuidade, o amor que transborda, que nada pede em troca. Amar sem ter nada de particular para amar. Amar não a partir de nossa carência, mas amar a partir de nossa plenitude. Amar não somente a partir de nossa sede, mas amar a partir de nossa fonte que corre.
Só o “ágape” expressa o amor sem mistura de interesse pessoal. Seria um puro dom de si mesmo, só possível em Deus. Deus não é um Ser que ama, é o Amor. N’Ele, o Amor é sua essência; se Deus deixasse de amar um só instante, deixaria de existir. Não podemos esperar de Deus “amostras pontuais de amor”, porque não pode deixar de demonstrar o amor um só instante.
Ágape é o amor divino. Esse amor é o mais raro, o mais precioso, o grau mais elevado do dom de si mesmo.
Estas são algumas características do ágape cristão: é um amor espontâneo e gratuito, sem motivo, sem interesse, até mesmo sem justificação, oblativo, expansivo... o puro amor.
O amor (ágape) impregna o ser humano. “Afeta a totalidade humana; roça a sensibilidade, aloja-se na medula dos ossos, pulsa nos batimentos cardíacos, arfa na respiração, circula pelo sangue, aquele o pensamento, rola pelos braços, agita as mãos, baila na consciência, escorre no olhar, sonoriza-se na palavra, recolhe-se no silêncio, peregrina nos passos, oculta-se no inconsciente, murmura na oração...” (Juvenal Arduini). O Amor é onipresença. “É um estado de ser” (R. May). O amor é a habitação do ser humano. “O amor jamais acabará” (S. Paulo).
O amor é esvaziar-se do “ego” dentro de si mesmo, para que haja lugar para o outro. O amor tem um rosto.
Assim como Deus, que se “esvaziou de sua divindade”, o ágape se esvazia de si mesmo para dar mais lugar, para não invadir, para deixar ao outro um pouco mais de espaço, de liberdade... “Amar é encontrar sua riqueza fora de si” (Alain).
Para o poeta Rilke, o amor é constituído por “duas humanidades que se inclinam uma diante da outra”.
Amor como dom gratuito de si mesmo. Não é motivado pelo valor do outro, isto é, pela recompensa que os gestos de amizade podem trazer. Com efeito, neste caso, não se ama o outro porque ele é bom (como na amizade verdadeira), mas para para que seja bom, já que o amor quer o bem do amado.
Tal como a água de um rio escavando seu leito profundo, o amor é a força que nos escava, que alarga e aumenta nossa capacidade de irmos para além de nós mesmos. Uma das maiores razões para o amor ser uma experiência de expansão se deve à sensação de imortalidade e eternidade que nos proporciona.
O amor carrega em si a marca da eternidade. Quem ama vê o tempo se ampliar e a vida ganhar mais sentido. Alguns dizem que há lugares de nós mesmos que só passam a existir após o sofrimento ter penetrado ali. Há lugares em nosso interior que não existem enquanto o amor não tiver penetrado.
Texto bíblico: Mc 12,28-34
Na oração: - entoar um hino de louvor e gratidão a Deus pelo Seu “amor em excesso” que se revela no cotidiano da vida;
- ter sempre presente na memória que fomos criados para viver em relação de amor e solidariedade com todos;
- considere que toda a Criação saiu das mãos do Criador como presente especial e gratuito, como uma mensagem de Amor a cada um de nós.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
29.10.21
Imagem: pexels.com
“O cego jogou o manto, deu um pulo e foi até Jesus” (Mc 10,50)
A imagem do cego à beira do caminho de Jericó pode ser uma ocasião privilegiada para des-velar (tirar o véu) o sentido do nosso seguimento de Jesus. Seguimento que implica, ao mesmo tempo, “ter os olhos fixos” em Jesus e “os ouvidos afinados” para escutar o clamor que vem das margens.
Esta cena pode também ser um momento oportuno para “descer” em nossa interioridade e ali encontrar os “bartimeus” que nos habitam e que estão gritando por luz: feridas, fracassos, traumas, experiências não integradas, fatos não processados...
À beira do caminho, Bartimeu é o símbolo da marginalização: está fora do caminho, jogado na sarjeta, sem poder se mover, percebendo como os outros passam e dependendo deles. O contexto social e religioso já tinha determinado ao cego o seu lugar (a exclusão), mas ele não se resigna. Continua procurando superar sua situação apesar da oposição das pessoas. Sentiu, na passagem de Jesus por ele, a oportunidade única para expressar sua carência e gritou.
O cego nunca imaginaria que a Luz estaria passando a seu lado e que tinha chegado para ele a ocasião única de deixar-se iluminar por ela. Por isso, o único meio para expressar seu profundo desejo de sair de sua escuridão era a sua voz; pôs-se a gritar com todas as suas forças e a chamar o caminhante de “Filho de Davi”.
Seus gritos despertaram uma reação negativa naqueles que acompanhavam Jesus e, em seguida, tentaram levantar diante do cego um muro de recriminações e proibições. Mas o cego continuou a gritar esperando que sua voz alcançasse Aquele que estava do outro lado do muro, antes que continuasse caminhando e afastando-se dele.
Mais uma vez aparece a sutil ironia de Marcos: os que seguiam a Jesus eram um obstáculo para que o cego se aproximasse d’Ele. Os mais próximos a Jesus continuavam sem ver.
O cego, imediatamente ouviu outra voz que se dirigia a ele e fazia saltar pelos ares a distância que os separava: “Chamai-o” Em menos de uma linha se repete por três vezes o verbo “chamar”. O chamado antecede sempre ao seguimento.
O menor gesto de acolhida foi suficiente para o cego jogar o manto, dar um salto, andar tateando e com cuidado e se aproximar junto d’Àquele que o havia chamado. Agora confia, embora não veja ainda.
O manto representa o que havia sido até o momento: era seu refúgio que agora se converte em um estorvo. Ao jogar seu manto para o lado, poderíamos dizer que o cego abriu mão daquilo que o protegia e retira a máscara, atrás da qual havia se escondido. Quer ir até o Mestre do jeito que é: com toda sua necessidade e impotência; levanta-se com um pulo, como que eletrizado pelo convite de Jesus.
Toda sua esperança está agora focada no “Filho de Davi”. O Mestre não retira de imediato a cegueira de Bartimeu. Primeiro quer conhecê-lo, verificar suas reais motivações, se há um querer verdadeiro... Com sua pergunta - “o que queres que te faça?” -, Jesus o desafia a contar mais a seu respeito, dirige-se à sua vontade: o que você quer realmente?
Essa pergunta faz com que o cego entre em contato consigo mesmo e com seu anseio mais profundo.
Jesus, como um bom terapeuta pergunta ao paciente: “O que você quer de mim? Por que me procurou? O que deseja alcançar? E o que deseja que eu faça?”... São questionamentos desse tipo que movem o paciente a voltar sobre si mesmo e a verificar se há um desejo profundo de sair de sua situação ferida.
Assim, ele assume sua parte na responsabilidade pelo processo terapêutico ou de ajuda espiritual; ao mesmo tempo, a tarefa do terapeuta ou do acompanhante espiritual é claramente definida.
Quando Jesus se detém, chama Bartimeu e lhe dirige uma pergunta motivadora, abrindo-se ao diálogo e concedendo voz e palavra, na realidade Ele está afirmando que o mais decisivo não é a enfermidade, mas a humanidade da pessoa do cego. Sua pergunta desata outras tantas possibilidades e recursos que ainda estavam atrofiados no interior daquele homem.
A imagem do cego à beira do caminho se revela como instigante e provocativa: muitas vezes, nossa vivência do seguimento de Jesus pode cair no marasmo, sonolência, estagnação, medo, repetição, inércia e fixismo. Mas ela pode ser conduzida também com sabedoria e imaginação; há um momento em que é preciso “dar o salto”: isso requer coragem, ousadia, agilidade e mobilidade para ir adiante na longa jornada que a vida nos apresenta.
Nosso interior contém potencial para vencer a inércia e superar o medo do desconhecido, do fracasso, da desilusão... Carregamos sonhos e desejos, mas podemos correr o risco de convertê-los em uma contínua espera, em algo que não se materializa. Para alcançá-los, temos de saltar, temos de nos separar do solo para poder chegar até eles. Esse instante, ou esse tempo, produz-nos vertigem, o medo pode nos paralisar.
O solo são nossas seguranças, o conhecido, o que já temos. O solo é nossa realidade. Renegar o solo que nos sustenta é viver maldizendo nossa realidade, não a aceitando.
Aquele que não conhece e não aceita o solo no qual pisa não pode saltar. Outros, no entanto, estão tão apegados ao solo que é impossível para eles dar o salto. A realidade para eles é como o asfalto nos dias calorosos de verão: os calçados ficam colados ao chão. Estão tão presos ao presente imediato, impedidos de serem ousados no salto criativo.
Para dar o salto ousado é preciso fazer como o cego Bartimeu: desvencilhar-nos de nosso manto, fardo inútil e peso que nos imobiliza à beira do caminho. É ele que impede nossa agilidade e mobilidade no seguimento de Jesus; são nossos apegos, nossas falsas seguranças, nosso comodismo...
É preciso também recordar, ao mesmo tempo, que não podemos lamentar o solo que pisamos; ativar a atitude de gratidão por cada trecho do caminho, por cada salto feito, pelos momentos de risco e frios na barriga. No fundo, é preciso ter a tranquila certeza de que saltar é humanizador e plenificante.
É importante descobrir o real significado do salto que nos arranca do passado paralisante e nos lança na aventura que modela a vida pessoal, social, ética, religiosa, histórica...
O salto inteligente estimula a criatividade e rejeita a mediocridade.
Para isto, devemos suscitar e cultivar o legítimo “salto”, que é fenômeno inovador e fecundo. Isso implica pisar o solo com a confiança de que sabemos que a vida está cheia de novas possibilidades, de metas que ainda não superamos, de encontros que ainda não se realizaram, de chamados aos quais ainda não respondemos, de compromissos ainda não assumidos...
Construir a vida que queremos implica saber saltar, saber partir e deixar para trás nossa situação de comodidade, os lugares cotidianos onde nos movíamos como peixe na água, onde nos sentíamos seguros.
O salto lúcido mantém o olhar vigilante, de discernimento: em que direção saltar?
Texto bíblico: Mc. 10,46-52
Na oração: O salto autêntico reclama coragem àquele que está prostrado; de tempos em tempos precisamos de saltos que nos ajudem a superar o medo e nos garanta a autonomia e a construção de nossa própria história.
Há um impulso interior que nos convida a saltar, do conhecido ao novo: um novo projeto, um novo compromisso, uma nova missão. Isso implica momentos de risco, mas também ali está a serena confiança de que podemos e queremos saltar. Não no vazio, mas no encontro.
A oração é o ambiente natural para concentrar-se e preparar-se para o grande salto da vida.
- O que lhe impede desapegar-se do “manto” que lhe dá a falsa sensação de segurança e conforto?
- Quê saltos mais ousados você está precisando realizar neste momento de sua vida?
- “Faça memória” dos “saltos” que foram significativos em sua vida...
Pe. Adroaldo Palaoro sj
22.10.21
“Tiago e João, Filhos de Zebedeu, aproximaram-se de Jesus...” (Mc 10,35)
Jesus viu claramente que o perigo mais grave que ameaçava a sua nova comunidade era a tentação do poder. Não há dúvida de que isso é o que causa o maior prejuízo a todos, o que mais nos desumaniza, o que mais nos divide e o que, por isso mesmo, torna praticamente impossível a convivência em paz, sem agressões e sem violência. Por essa razão, Jesus não tolerou, de maneira alguma, as pequenas ou grandes ambições das quais os apóstolos deram sinais evidentes. Ele viu que tinha de cortar pela raiz, inclusive brotos à primeira vista insignificantes, as rivalidades e as pretensões de poder de uns sobre outros, por mais que tais pretensões aparecessem camufladas com as melhores intenções.
Por isso, Jesus não quis se relacionar com as pessoas e com os discípulos com base na superioridade ou no poder, mas na exemplaridade. Mais ainda, não só nunca quis agir como superior que se impõe com poder, mas também viu em semelhante comportamento uma conduta radicalmente inaceitável.
Marcos é o evangelista que se mostra mais duro frente ao que qualifica como “cegueira e surdez” dos discípulos para ver e entender a mensagem de Jesus.
A contraposição com as atitudes do Mestre se põe às claras, de um modo especial, nos chamados “anúncios da paixão”. Enquanto Jesus apresenta seu caminho como “entrega” até o extremo, os discípulos são flagrados quando discutem entre si questões de poder ou de “quem é mais importante” dentro do grupo.
Sabemos que a busca de poder, em todos os níveis, é tão antiga como a humanidade. Também no reduzido grupo de Jesus, que sempre denunciou isso com força, aflorou um conflito interno por esse motivo.
O poder, em qualquer de suas formas e intensidades, constitui uma das tentações mais fortes para o ser humano. Que tem o poder que tanto seduz e se converte em objeto prioritário de desejo?
O motivo é simples: nasce da necessidade do ego de autoafirmar-se. E a ele se vinculam sensações (mesmo que ilusórias) de segurança e de liberdade. Com efeito, acredita-se que, ao ter mais poder, alguém se sentirá mais seguro e poderá fazer o que lhe apeteça. Se temos em conta que a busca de tais “ideais” constitui a essência mesma do ego, ser-nos-á fácil advertir que o poder apareça como uma das tentações mais intensas.
Onde se enraíza a armadilha? Como em qualquer outro caso, na mentira. Tudo o que nos afasta da verdade que somos produz necessariamente confusão e sofrimento. Ou, em outras palavras, sempre que experimentamos confusão e sofrimento é sinal de que estamos desconectados (afastados) da verdade que somos.
O ego prepotente se afirma na comparação, confrontando-se com os outros e marcando sua imaginária superioridade. O poder lhe promete uma posição de superioridade e inclusive de domínio. A partir de sua pretensão de que a realidade responda a seus desejos, crê encontrar no poder a posição privilegiada para conseguir tudo o que se propõe.
O ego inflado, como vazio que é, tem fome de segurança. Assim nasce sua necessidade compulsiva de apegar-se a tudo aquilo que pode lhe sustentar: posses, bens, títulos, imagem... Pois bem, o poder promete conferir-lhe uma sensação de força e de superioridade, fazendo-o crer que está acima de todos.
Isso é o que o poder promete. Mas a realidade é bem diferente: o que realmente produz é divisão e enfrentamento. E é aqui onde se faz clara a sabedoria de Jesus, constatando como funciona o exercício do poder, prevenindo de sua armadilha (“não deve ser assim entre vós”) e partilhando seu próprio caminho de serviço. O poder nunca é mediação de salvação. E o poder que mais desumaniza é o “poder religioso”, pois alimenta diferentes medos nas pessoas.
Sabemos que o poder corrói os relacionamentos, criando um ambiente carregado de tensão e desconfiança. Sem níveis básicos de confiança as instituições desmoronam.
O seguimento de Jesus não passa pelo caminho do acúmulo de poder, mas pelas trilhas despojadas do serviço até a entrega da própria vida. A busca do poder é o programa do “ego inflado”, que terminará em frustração; o espírito de serviço brota do nosso ser mais original e, por isso, mais nos humaniza, pois reforça os vínculos entre as pessoas, alimenta a circularidade de vida e não a pirâmide hierárquica.
A distinção entre poder e autoridade talvez possa nos iluminar e permite compreender o necessário ministério dos diferentes responsáveis na comunidade de Jesus.
Toda comunidade precisa de uma mínima organização. Mas os responsáveis por ela não devem comportar-se como aqueles que governam neste mundo, que se aproveitam de sua posição e tratam os outros como subordinados. Pelo contrário, na comunidade de Jesus, todos devem atuar como servidores e serem exemplos para os demais. Neste “ser exemplo” está a diferença entre poder e autoridade.
Autoridade procede de autor. Tem autoridade aquele que tem capacidade, crédito, estimação, verdade, apreço, reputação; tem autoridade quem ativa a autoria e a autonomia no outro.
Poder, por sua vez, tem a ver com potestade, força, poderio, dominação, mando. Enquanto a autoridade tem capacidade de atração e convencimento, o poder se impõe a partir de fora e pela força. No exercício da autoridade o centro é o outro; no poder, pelo contrário, é o próprio ego que se faz centro e manipulador.
Para os seguidores de Jesus a autoridade não funciona como poder, mas como serviço. Jesus tinha muita autoridade, mas se negou a utilizar o poder. Surpreendeu a seus contemporâneos “porque lhes ensinava como quem tem autoridade e não como os escribas” (Mc 1,22).
Nos Evangelhos, a “autoridade” de Jesus nunca é entendida como ação de domínio ou de imposição que violenta as pessoas. A “exousia” de Jesus é autoridade para perdoar, para curar, para ensinar...; tal ensinamento não era imposição doutrinal e normativa dos letrados que oprimiam as pessoas com cargas religiosas insuportáveis.
O contraste era evidente: os dirigentes religiosos tinham “poder”, mas não tinham “autoridade” diante das pessoas. No caso de Jesus, a situação era exatamente o inverso: não tinha “poder” sobre o povo, mas gozava de uma enorme “autoridade”, que seduzia, atraía e entusiasmava as pessoas.
A autoridade de Jesus nascia da experiência de sua filiação divina, e não de titulações. Era uma autoridade competente, a daquele que vai adiante expondo sua vida, e não o poder “daqueles que carregam as pessoas com fardos insuportáveis e, nem com um só dedo, não tocam nesses fardos” (Lc 11,46).
Jesus tinha “autoridade” porque era alguém que se definiu, sabia o que queria, tinha uma causa em seu coração, não abria mão de alguns valores fundamentais, tinha clareza onde queria chegar...; só Ele era capaz de mover as pessoas, de fazer seguidores e não meros obedientes às suas ordens.
Texto bíblico: Mc 10,35-45
Na oração: Liderar com autoridade implica espírito de confiança, tratar o outro com bondade, ouvir atentamente, ter verdadeiro respeito para com os talentos do outro, ter real interesse por ajudar o outro para que tenha êxito, confiar responsabilidade, manter acesa a chama do sonho para que cada um possa tirar o melhor de si mesmo a favor da comunidade, sintonizar com os princípios profundos e permanentes da vida, expressar consideração, elogio e reconhecimento pela atuação do outro... Enfim, liderar a serviço dos outros nos livra das algemas do ego e da concentração em nós mesmos, destruindo a alegria de viver.
Não somos “filhos(as) de Zebedeu”; somos “companheiros(as) de Jesus” e amigos(as) entre nós, e compreendemos que só esse companheirismo energiza nossos esforços e potencializa nossas iniciativas.
- Quê há em mim de busca de poder, mesmo que seja em minhas relações mais próximas; quê há em mim de serviço gratuito?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
14.10.21
“Jesus, olhou para ele com amor e disse: ‘só uma coisa te falta...’” (Mc 10,21)
A itinerância de Jesus é um contínuo convite a sair de nossos espaços atrofiados para encontrar a Deus nos outros, e entrar em sintonia com o coração d’Ele. Deus nos espera “fora do acampamento” (EE 33,7), ou seja, fora do nosso controle, de nossos lugares seguros e confortáveis, dos espaços que escondem sua presença e onde estão presentes o medo, a desconfiança... “Fora do acampamento” Deus nos desvela quem somos, quem são os outros e quê missão quer nos confiar. “Fora do acampamento” estão os diferentes com seus questionamentos e interpelações, com suas alegrias e medos, seus desejos e sonhos...
Foi na estrada, “quando Jesus saiu a caminhar”, que um homem rico chega correndo e se ajoelha diante dele. Jesus se detém, acolhe a pergunta que lhe é feita e inicia uma conversação, abrindo, assim, um espaço de confiança para que o “apressado” partilhasse suas inquietações, a pergunta pelo sentido de sua vida.
O homem correu ao encontro de Jesus de maneira inesperada; e Jesus não inventou desculpas para esquivar-se dizendo: “tenho que ir a outro lugar”, “todos me esperam”, “estou cansado”, “volte amanhã”... Com este simples gesto de se deter e não passar ao largo, Jesus mostra sua acessibilidade e comunica ao homem rico que se interessa por ele, que não é insensível à sua busca, que assume sua realidade.
Embora a pergunta do homem rico esteja muito centrada nele mesmo – “que devo fazer para ganhar a vida eterna? – Jesus percebe que há uma busca inicial, um desejo incipiente, e abre para ele um caminho que, a partir do reconhecimento de todo o bem que há nele, adentra-o em novas veredas. Assim deixa transparecer o seu olhar: “olhou-o com amor”.
O homem conhece bem a Torá e viveu segundo seus preceitos. Jesus não diminui o valor de sua experiência, mas vai mais fundo, convencido de que tudo o que acontece está grávido de sinais da presença d’Aquele que sempre busca o ser humano. Encontra os pontos de apoio nos quais o homem pode se apoiar para dar um salto de crescimento no amor. Viver os mandamentos não é o suficiente, mas é um bom ponto de partida, através do qual Jesus irá conduzindo-o para dentro, ajudando-o a conectar-se consigo mesmo, a escutar o chamado de vida que pulsa em seu coração e “dar à luz” o sonho de Deus nele.
O que faz a grande diferença no relato deste domingo é a maneira de olhar. E o olhar de Jesus é um elemento essencial nos relatos de encontros com as pessoas nas estradas da vida; através de seu olhar inspirador, Jesus as mobiliza, desperta nelas seus melhores recursos, vincula-as a um projeto de serviço, abre para elas um futuro esperançador e transforma radicalmente a existência delas.
O encontro com o homem rico é também um chamado, um convite ao discipulado, mas que não será acolhido. Neste encontro, Jesus “fixou nele seu olhar e movido pelo amor a ele”, o convidou a segui-lo. O olhar intenso de Jesus se expressa nos dois verbos principais, “amou” e “disse”. Não é um olhar qualquer, mas um olhar atravessado pelo amor e estreitamente vinculado a um projeto de futuro.
Jesus fixa seus olhos e, portanto, sua atenção neste homem concreto, o toma em consideração, pensa nele. Não é um olhar de passagem, mas um olhar sustentado, capaz de penetrar até o profundo, discernidor. Mostra para o homem uma solicitude singular que indica uma “preferência-eleição” por ele.
No encontro com o homem rico, o intenso olhar de Jesus tem tal qualidade que Ele captou toda a realidade do outro desde o primeiro momento. Ao fixar seu olhar no interior daquele homem, Jesus lhe propõe deixar seu modo habitual de viver, e o convida a adentrar-se em outra maneira original de viver, que irá aumentando ao ritmo do amor recebido e oferecido.
O olhar nasce e se nutre do amor. E Jesus olha sempre com olhos claros e limpos, com olhos de ternura e de acolhida. O homem rico encontrou graça aos olhos de Jesus, ou seja, reconheceu-se como filho amado do Pai. Não é necessário que este filho seja a máxima expressão de beleza, bondade ou inteligência, para descobrir a “marca do amor” impressa em seu ser, aquela que lhe revela imagem e semelhança de Deus, aquela que lhe confirma ser o filho chamado à plenitude.
O relato de Marcos realça a qualidade do olhar de Jesus: olhos que comunicam proximidade, que se inclinam e abaixam para amar; olhos que transmitem doçura e amor, capazes de aquecer, cuidar e alentar a vida; olhos que abrem um espaço de humanização e reconhecimento. Olhos que se nutriram infinitas vezes nas entranhas misericordiosas de Deus: “O Pai me ama” (Jo 10,17).
Contudo, no relato do evangelho, assistimos ao bloqueio do desejo daquele que primeiramente se ajoelhou aos pés de Jesus chamando-lhe “Bom Mestre”. Ele parecia ter tanta sede sincera de encontro com Jesus e vinha cumprindo os mandamentos desde a sua juventude. Contudo, na hora decisiva, ele preferiu a segurança e a proteção dos seus bens e não a aventura aberta de um viver na confiança, com a disponibilidade que uma tal relação espera de todos nós.
Ao confrontar-se com a proposta ousada de Jesus, o homem rico vai embora entristecido e desolado. É incapaz de confiar em Deus da forma como Jesus lhe sugere. Aproximou-se de Jesus com alegria, mas as riquezas “afogaram as palavras”. Queria de verdade dar resposta ao desejo que levava dentro, “ganhar a vida eterna”, mas, para isso Jesus lhe convidou a dar um salto. O homem, no entanto, frente à ousadia da proposta que Jesus lhe faz, decide não se lançar. Sua decisão lhe impossibilita alcançar o que tanto deseja; preferiu as seguranças que já tinha. Está preso ao seu estilo de vida, aposta por ser prudente e não correr o risco do desconhecido. O medo de perder, a insegurança que experimenta, o levam a agarrar-se, com todas as suas forças, às suas riquezas. Salta em primeiro plano sua "insaciável cobiça”, fruto de sua angústia, seu medo e sua insegurança.
Pode soar chocante ouvir de Jesus que “um rico dificilmente entrará no Reino dos Céus”. Ele que foi sempre tão misericordioso, teria preconceito contra os ricos? Por que, então, fecha-lhes as portas do Reino? Rico, no pensar de Jesus, é aquele que, incapaz de compartilhar, transforma os bens deste mundo em autênticos ídolos e fecha seu coração para Deus e para os irmãos; é aquele que ama suas propriedades sobre todas as coisas, e, para protegê-las e fazê-las multiplicar, não hesita em lançar mão de qualquer artifício, mesmo injusto, desonesto, ilegal. A penúria do irmão necessitado não chega a sensibilizá-lo. Só pensa em si mesmo, em suas necessidades e em seus prazeres. Por conseguinte, não existe espaço para a graça atuar em seu coração. Nesta situação, torna-se impossível Deus chegar a ser, de algum modo, senhor de sua vida. Nele, o Reino de Deus não pode acontecer. Seu coração está bloqueado.
Não é Deus quem fecha as portas do Céu para o rico. É este quem se recusa a entrar na dinâmica Reino e revestir-se do modo de ser e viver de Jesus. Os apelos de Deus tornam-se inúteis e ineficazes.
Embora Jesus desejasse que o rico abrisse mão de seu projeto de vida egoísta e acolhesse o Reino, ele persiste em sua idolatria. O amor de Deus não chega a tocá-lo. É por esta razão que “é mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no Reino de Deus!”
Texto bíblico: Mc 10,17-30
Na oração: Dois caminhos se abrem diante de nós, os mesmos daquele homem rico: apegar-nos ao que temos e somos ou entregar a Ele a bússola e o mapa de nossa vida; continuar na insegurança ou confiar que as perdas podem ser ocasião de ganhos, mesmo que não cheguemos a entender nem por que nem como.
Quem sabe, preferimos investir nas ações do “eu” e seus poderios, que prometem falsos benefícios, mas, com o passar dos anos, essas ações se desvalorizaram e descobrimos que suas promessas eram falsas.
- “Estamos abertos às surpresas de Deus? Ou nos fechamos, com medo, à novidade do Espírito Santo? Estamos decididos a percorrer os caminhos novos que a novidade de Deus nos apresenta ou nos entrincheiramos em estruturas caducas, que perderam a capacidade de resposta”? (Papa Francisco)
Pe. Adroaldo Palaoro sj
08.10.21
“Desde o princípio da criação Deus os fez homem e mulher” (Mc 10,6)
O evangelho deste domingo (27º Domingo do Tempo Comum) continua nos situando no contexto da subida de Jesus a Jerusalém e da instrução dada aos discípulos. A pergunta inesperada e capciosa dos fariseus sobre a licitude do homem despedir sua mulher tinha intenção de colocar Jesus numa situação constrangedora. Mas, como bom mestre, Jesus aproveita também desta circunstância para resituar a todos no “princípio da criação” e recuperar a essência do matrimônio.
Na realidade, a atitude de Jesus é coerente com toda sua trajetória. Se algo fica claro, no relato evangélico, é seu posicionamento decidido a favor dos “últimos”, dos “pequenos”, das “crianças”, das mulheres... Por tudo isso, não parece casual que, depois do relato no qual defende a igualdade da mulher com relação ao homem, apareça a cena de Jesus abraçando as crianças.
Seja qual for o motivo da pergunta feita pelos fariseus, a resposta de Jesus vai se centrar neste ponto: a “intuição primeira” (e, portanto, também o “horizonte”) para a qual tende a relação amorosa entre homem e mulher é esta - “o que Deus uniu o homem não separe!”. Mas Deus não une pelas leis canônicas e sim pelo amor cuja intenção é a plena comunhão entre duas pessoas. Uma coisa é a indissolubilidade canônica e outra é a fidelidade que o casal deve atualizar cada dia e em cada instante de sua convivência.
A palavra “matrimônio” significa, etimologicamente, “múnus” ou tarefa de mãe a serviço da gestação e educação dos filhos. Mas, segundo o evangelho de Jesus, o matrimônio é uma realidade anterior: é a “matriz” ou fonte comum de vida onde duas pessoas “vivem com-vivendo e existem co-existindo”.
Significativamente, ao referir-se ao matrimônio, Jesus destacou a fidelidade ou comunhão de duas pessoas centrada na convivência mútua e não na lei de poder de um sobre outro (neste caso, do marido).
O evangelho realça a graça original do matrimônio rejeitando a pergunta de poder, segundo a lei, do fariseu: “Pode o homem despedir a mulher?” Esta é uma pergunta patriarcal que se coloca a partir do poder do homem sobre a mulher, poder que Jesus rejeita com palavras da mesma tradição israelita (Gen 1,27; 2,24-45). Jesus busca redescobrir e potenciar o princípio superior de vida em comunhão, na linha da fidelidade pessoal e de igualdade na nobre missão de ambos, marido e mulher, se tornarem mais humanos, a partir do amor que os une e os abre à vida.
O mais interessante do Evangelho de hoje é que Jesus vai mais além de toda lei. Busca desvelar a raiz antropológica do matrimônio (o projeto de Deus) para não anular nunca o que é verdadeiramente humano. Ao fazer referência “ao princípio” Jesus vai diretamente à essência do problema, tratando de descobrir as exigências mais profundas do ser humano (vontade de Deus).
O homem e a mulher são um lugar privilegiado de revelação e de experiência do Amor de Deus. Eles são a encarnação e a visibilização desse Amor Ágape que tem sua fonte no próprio Deus. Cada pessoa jamais deixa de ter suas raízes plantadas no coração do Criador.
A palavra de Deus não se encarnou só em Jesus, mas em todo matrimônio, que é “palavra de Deus”, sendo palavra de dois, um homem e uma mulher, duas pessoas que descobrem, um no outro e com o outro, o sentido mais profundo de suas vidas, e decidem compartilhá-lo, em comunhão de amor, acima de toda lei particular, como aliança permanente. “Matrimônio”: lugar da manifestação do amor oblativo do Criador.
O caminho que mulher e homem iniciam como cônjuges (conjuntamente), não é algo estático, mas é mudança, é abertura ao novo, é movimento em direção a um amor maior. Nesse sentido, o matrimônio é o sacramento que faz mulher e homem entrarem no dinamismo expansivo do Amor de Deus. Na sua essência, o amor é oblativo, aberto, gratuito...; o amor não se fecha a dois: abre-se, amplia-se, envolve outros...; amor expansivo e que se expressa na compreensão, no perdão, no apoio, na paciência, no companheirismo...
No matrimônio, cada um é chamado a ajudar o outro a ser mais humano, mais gente, mais pessoa, mais santo(a)...; cada um tem a nobre missão de facilitar que o outro cresça e desenvolva suas capacidades, riquezas...; cada um deve ser para o outro uma presença instigante, inspiradora... À luz do Amor primeiro, ativar e despertar mutuamente os dons originais, os recursos e capacidades mobilizadores...
É querer bem, respeitar, valorizar, sentir a falta do outro, conceder espaço, querer que o outro cresça, alegrar-se com as vitórias do outro, compadecer-se com os seus fracassos...
É ajudar a manter sempre acesa a “faísca de Javé” (Cant. 8,6), a chama do amor eterno. Amor que encontra expressões diferentes de acordo com as circunstâncias e as fases da vida.
É preciso ser criativo na maneira de expressar o Amor Ágape e não deixar que a “faísca do amor divino” se atrofie pela rotina, cansaço, desencanto...
Em sentido profundo, na união conjugal, ninguém perde e nem se anula, mas os dois ganham, apresentando-se, de maneira complementária como iguais, e iniciando um processo de amor ou fidelidade pessoal sem domínio de um sobre o outro, amparados pelo mesmo Deus que se revela como Aliança de amor.
Deus garante assim o processo de fidelidade, que faz do matrimônio um contínuo recomeço e um processo de comunhão que respeita a diversidade de cada pessoa.
Por isso, na tradição judeu-cristã, a relação de um casal se expressa com as palavras: “serão os dois uma só carne”. Trata-se de uma expressão vigorosa e de uma imagem esplêndida, que destaca a unidade-na-diferença.
Sabemos que o maior inimigo do matrimônio é o egoísmo. A ânsia de buscar em tudo o benefício próprio e pessoal arruína toda possibilidade de viver relações verdadeiramente humanas. Esta busca do outro para satisfazer as necessidades do próprio ego, anula toda possibilidade de uma relação profunda de um casal. A partir da perspectiva hedonista, o casal estará fundamentado no que o outro traz de benefício, nunca no que cada um pode partilhar mutuamente. A consequência é nefasta para ambos.
Ao envelhecer juntos, meta desafiante, consuma-se o matrimônio. Assim é que se realiza a vida com-junta-mente, fazendo-se companhia digna, ajudando-se mutuamente a se tornarem mais humanos; uma companhia experimentada como dom, com alegrias e sombras, querendo-se muito e também sendo mútuo suporte, mesmo no outono da vida.
Por isso, ao falar de “indissolubilidade matrimonial”, é preciso assumir com lucidez e serenidade o caráter processual da relação de “duas pessoas unindo-se” em “comunhão de vida e amor”.
Os trâmites legais que certificam o consentimento conjugal se firmam em um momento. Mas a união de duas pessoas em “comunhão de vida e amor” não é momento, mas processo; não tem efeito instantâneo a partir de uma declaração legal, nem de uma fusão biológica, nem de um artifício mágico, nem sequer de uma benção religiosa; não é uma foto estática e morta, mas um processo dinâmico e vivo.
A expressão “sim, eu quero”, não é uma fórmula mágica que produz automaticamente um vínculo indissolúvel. Para o casamento, basta meia hora. Para a consumação do matrimônio “de maneira humana”, é preciso uma vida inteira.
Texto bíblico: Mc 10,2-16
Na oração: Que a “faísca do Amor de Deus”, presente nos corações de todos, se transforme numa labareda, iluminando e aquecendo o cotidiano de suas vidas, inspirando e apontando caminhos para todos aqueles que, em meio às sombras, vivem tateando um sentido para suas existências.
- O Amor de Deus encontra espaço no seu interior, iluminando e dando sentido ao seu ritmo de vida?
- Quê gestos e atitudes de sua vida são transparência do Amor de Deus?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
29.09.2021
“Se tua mão, teu pé, teu olho... te levam a pecar, arranca-os”
Com sua presença e ternura, Jesus, no Evangelho deste 26º Domingo do Tempo Comum, quebra as atitudes preconceituosas que delimitam friamente os espaços e alimentam proibições que impedem a manifestação da vida. Para Ele, toda pessoa que favorece a vida, em qualquer situação, é uma “aliada”, está “a nosso favor”. Ou seja, do Reino não se exclui ninguém; todos estão convidados. Todo aquele que sinceramente busca o bem e se compromete com a vida está a favor do Reino.
Jesus reprime a postura sectária, preconceituosa e excludente de seus discípulos, e adota uma atitude aberta e inclusiva, onde o mais importante é libertar o ser humano de tudo o que lhe oprime.
O estreitamento de mentalidade do discípulo João colide com a abertura do coração de Jesus.
Para o Mestre, o que conta é o bem que se faz. Jamais uma simples pertença grupal, uma simples afinidade ou mesmo proximidades culturais e cultuais, podem substituir o bem que se deve praticar. Conta o bem que só pode ser feito em nome de Deus; só Ele é a fonte única do bem. Deus só está presente onde se pratica o bem. O bem que se faz não é, em hipótese alguma, contradição a Deus. A força do bem é a condição única para alargar o horizonte e superar toda atitude preconceituosa estreita.
E o bem se torna valor absoluto, definindo a condição do verdadeiro discipulado.
Ser discípulo de Jesus, portanto, é compreender a vida como altar de ofertas para o bem.
O Mestre da Galileia revela o simples e, aparentemente, tão insignificante ato de oferta de um copo d’água como remédio que cura a rigidez do preconceito e vence a incapacidade de perceber a ternura acolhedora em cada gesto oblativo e sua importância na construção da vida e na recriação da dignidade humana.
Vale um copo d’água que se dá. Vale pela importância sempre primeira do outro, não importa quem quer que seja, fazendo valer o princípio norteador do coração amoroso de Deus.
Jesus rompe toda tentação sectária em seus seguidores. Ele não constituiu seu grupo para controlar sua salvação messiânica. Ele não é rabino de uma escola fechada, mas Profeta de uma salvação aberta a todos. Jesus não é monopólio de ninguém. Todo aquele que está a favor do ser humano está com Jesus. Todo aquele que trabalha pela justiça, pela paz, pela liberdade... está em profunda sintonia com Ele. Há uma infinidade de pessoas de boa vontade que trabalham por uma humanidade mais digna, mais justa e livre. Nelas está atuando o Espírito de Jesus. Devemos senti-los como amigos e aliados, nunca como adversários.
O(a) seguidor(a) de Jesus deve ser sempre fermento de unidade e nunca causa de discórdia e exclusão.
Jesus, como bom Mestre, aproveita da ocasião para denunciar o veneno que mata toda possibilidade para a vivência do bem, do amor, da verdade: é a presença do “escândalo”, tanto no nível pessoal quanto comunitário. De fato, como no tempo de Jesus, também vivemos em uma sociedade de escândalos, que utiliza e destrói os pequenos. Há escândalos de gastos militares, de mentiras políticas generalizadas, de riqueza ostentosa fruto da exploração dos mais frágeis, de corrupção e violência, de poder despótico...
Assim, o evangelho deste domingo situa o grande pecado que consiste em “escandalizar” os pequenos (utilizar, fazer cair, perverter, abusar) no plano social, religioso, econômico, sexual... Trata-se do domínio de vidas e consciências. Nesse contexto Jesus introduz a referência simbólica da mão, do pé e do olho que escandaliza ou destrói os outros, acrescentando que o seu seguidor é capaz de “cortar” a mão ou o pé ou de arrancar o olho, a fim de conservar-se “inteiro” para o Reino (não destruir os outros).
É preciso, portanto, redescobrir a espiritualidade do corpo e de todos os seus membros e órgãos, para sermos presenças compassivas, construtivas e amorosas.
A resposta de Jesus é clara: “Corta tua mão, corta teu pé, arranca teu olho..., renuncia-te a ser o centro para que o outro possa viver e crescer!”.
O corpo é mediação de comunhão, de encontro..., e todos os seus membros devem ser “cristificados”, ou seja, devem inspirar-se na corporalidade de Jesus.
O ser humano é aqui pés, mãos e olhos, em visão ternária que se revela muito significativa. É evidente que o texto poderia ter acrescentado outros exemplos de membros vitais: língua, ouvidos... Mas, os três aqui citados condensam a totalidade humana no plano do fazer, decidir, desejar e são exemplo de um modo de proceder “cristificado” para toda a comunidade cristã.
Em primeiro lugar, “conhecemos Jesus pelos pés”; como peregrino, Ele sempre rompeu distâncias e fronteiras, fazendo-se próximo de todos para curar, animar, elevar, colocar o outro de pé.
Jesus revela que cada passo deve ser uma oração e cada caminhar é um rosário de contas que marcam os caminhos da vida com a fé do caminhante.
Na última Ceia, quando Jesus se coloca aos pés dos seus discípulos, não se trata apenas de um gesto de humildade, mas sobretudo, de um gesto de cura e de amor. Porque não se pode amar alguém e olhá-lo de cima. E também não se trata de olhá-lo de baixo para cima, sendo-lhe submisso.
É preciso colocar-se a seus pés para ajudá-lo a reerguer-se.
Igualmente decisivas sãos as mãos; elas adquirem uma infinidade de formas (mãos estendidas, enérgicas, punho fechado, mãos abertas...). Quando estendemos os braços e tocamos o outro espontaneamente descobrimos a compaixão e a riqueza que existe em todos nós.
Jesus não ama à distância; Jesus demonstra seu amor abraçando, abençoando, tocando...
Tocar ou nos sentir tocados é, em determinadas circunstâncias, a linguagem mais inteligível do amor.
A religiosidade popular está repleta de atitudes que testemunham o fato de que, para quem tem o coração à flor da pele, “orar e tocar” são uma só e mesma coisa.
Orar tocando é como reeditar as palavras de S. João:
“Aquele que nossas mãos tocaram, disso damos testemunho” (1Jo. 1,1).
Por fim, o olhar é o recurso não verbal mais expressivo e sincero que possuímos: com um simples olhar podemos transmitir desde o ódio até uma declaração de amor ou de amizade.
Os olhos são o “reflexo da alma”; muitas coisas que estão acontecendo no nosso interior vão se expressar na maneira como olhamos.
“Cristificar” o olhar é entrar no fluxo do olhar compassivo de Jesus; com seu olhar intenso e penetrante Ele conseguia despertar a dimensão mais nobre e original em cada pessoa. Seus olhares falavam por sí sós, pois transmitiam sentimentos, desejos e afetos, sem necessidade de usar nenhuma palavra.
A revelação bíblica nos diz que Deus vem ao nosso encontro pelo mais cotidiano, mais banal e próximo dos portais: os cinco sentidos, os membros e os órgãos de nosso corpo. Eles são grandes entradas e saídas da nossa humanidade vivida. É preciso aprender a reconhecê-los como “lugares teológicos”, isto é, como território privilegiado não apenas da manifestação de Deus, mas como possibilidade de relação com Ele.
A vida é o imenso laboratório para a atenção, a sensibilidade e o espanto que nos permite reconhecer em cada instante os passos do próprio Deus em nossa direção, suas mãos providentes e cuidadosas que nos sustentam, seu olhar compassivo que nos acolhe. O corpo que somos é uma gramática de Deus: nele aprendemos a andar como Deus, a tocar como Deus, a olhar como Deus...
Texto bíblico: Mc 9,38-48
Na oração: este é um momento para examinar minhas mãos, meus pés e meus olhos: eles são mediação para o encontro ou para o escândalo na relação com os outros?
- Que tenho de arrancar-me, que devo “perder” para não escandalizar, ou seja, para que os outros possam viver?
- Que deve a Igreja arrancar de si mesma para não servir de escândalo aos pequenos?
- E nossa sociedade em geral, nossa política e economia neo-liberal... quê terá de arrancar e cortar para que os pobres possam viver com mais dignidade?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
23.09.2021
“Chamou uma criança, colocou-a no meio deles, e abraçando-a...” (Mc 9,36)
O relato evangélico deste domingo nos situa no começo do caminho que levará Jesus a Jerusalém. Neste momento de sua vida, ele tem consciência que as forças que se opõem à sua proposta de vida são muito fortes e não vão desistir em seu objetivo de esvaziar tal iniciativa. Jesus sente que sua vida começa a estar em perigo, mas não vai ceder em seu empenho por revelar e oferecer o amor e a justiça bondosa de Deus aos pequenos desta terra.
Jesus se tornou um sinal de contradição porque permaneceu absolutamente fiel a uma mensagem, a um modo de agir e a uma missão que havia recebido do Pai e que devia realizar com critérios e opções coerentes com o conteúdo do seu Evangelho.
Ele se deu conta de que avançar em seu projeto lhe custaria a vida. Em sua instrução ao grupo de seguidores, antecipa que o poder condená-lo-á à morte. Revela, portanto, o fato de “perder a vida” como conseqüência inevitável por viver a coerência evangélica até o extremo. As circunstâncias mostravam, com evidência, que a hostilidade do poder para com Jesus se intensificava. Por isso, começa a prevenir seus seguidores de que sua prática em favor da justiça implicava um enorme risco.
Os evangelistas sinóticos expressam esta consciência de Jesus através dos anúncios da paixão. Eles revelam que Jesus é realista ao explicitar as consequências de suas opões. Esta consciência o leva a dedicar-se com mais intensidade na formação de sua comunidade de seguidores para fortalecer suas certezas e opções e, no caso de que Ele morra, possa seguir adiante, comprometidos com a causa do Reino.
Marcos expressa com claridade que os discípulos não captam a força das palavras de Jesus e tem medo de que todas as suas expectativas venham abaixo e se obscureça o horizonte que os tinha seduzido pelos caminhos da Galiléia. Eles estão longe de compreender os critérios do Reino e continuam apegados a seus ideais de êxito e poder.
Ao chegar em casa, em Cafarnaum, Jesus reúne os doze para questionar suas pretensões de poder e honra. Mais uma vez, o profeta da Galiléia quebra as expectativas de seus discípulos e lhes propõe como critério de grandeza o serviço, e como critério de honra o cuidado dos pequenos e frágeis. Sua nova comunidade não pode se pautar pela busca do prestígio, do poder, da imposição, do mando...
Deste modo, Jesus coloca o serviço e a gratuidade em um lugar central nas relações dentro da nova comunidade. Com sua típica linguagem provocadora, Ele nos ensina a imaginar um mundo diferente. A partir de sua original experiência de Deus, situa tudo em outro horizonte, descobre novas possibilidades e introduz uma lógica alternativa, a da gratuidade, do esvaziamento do próprio interesse e de um deslocamento em direção aos últimos e mais frágeis.
Há algo na identidade de Jesus que chama a atenção de todos nós: sua liberdade diante de toda expressão de poder, seja no campo religioso, social e nas relações entre as pessoas. Ele tem consciência que a busca de “poder” é o pecado de morte, pois onde impera o poder ali se visibilizam toda manifestação de violência, competição, ruptura das relações, desmandos... Para o Mestre de Nazaré, nenhum poder, muito menos o religioso, pode ser mediação de salvação e de libertação do ser humano.
Jesus compreendeu perfeitamente que a opressão mais forte, sofrida por seu povo, não era só a opressão política e econômica de Roma, mas a opressão religiosa dos dirigentes e líderes de Israel. Estes estavam dispostos a tudo para continuar exercendo um poder ao qual não desejavam renunciar.
De fato, havia uma estrutura social, política, econômica, ideológica, religiosa... resistente e fechada a qualquer plano que colocasse em perigo sua continuidade. Tal sistema respondia com hostilidade porque detectava o perigo que Jesus e sua proposta de vida representavam para ele.
Constata-se, então, o "escândalo" que a palavra e o modo de agir de Jesus provocavam em torno dele; tal escândalo procedia da sua extraordinária "autoridade". Esta expressão, presente nos evangelhos, não é fácil de ser traduzida em português. A palavra grega é "exousia" que, literalmente, refere-se ao que "provém do ser" que se é. Não se trata de algo exterior ou forçado, mas de uma atitude que emana de dentro e que se impõe por si só. “Ousia” designa o que se é ou se tem. “Ex” indica procedência, “de”. A exousia é a autoridade que sai de dentro. Por isso a autoridade de Jesus não tem nada a ver com o poder que se impõe ou a liderança que arrasta. Jesus esvazia-se de todo poder; Ele tem autoridade: “ensinava-lhes com autoridade e não como os escribas”.
A autoridade de Jesus é uma autoridade sem poder coercitivo. Trata-se de uma autoridade moral. É a autoridade da verdade, da autenticidade, da exemplaridade. Em suas palavras e ações, Jesus deixa transparecer uma profunda experiência de Deus e isto lhe confere uma grande liberdade e explica sua autoridade. Por isso, não se pode explicar Jesus, sua vida e sua forma de agir, sem recorrer à sua experiência de intimidade com o Pai.
Sabemos que o poder foi a grande tentação dos discípulos de Jesus e dos seus seguidores ao longo da história da Igreja. Jesus, com seu “ensinamento” e seus gestos, quebra a estrutura da centralidade do poder narcisista; sua atitude é humanizadora e propõe o caminho da “descida compassiva” como a marca distintiva dos seus seguidores; Ele parte da realidade humana mais frágil e excluída, e ensina o segredo para se construir uma comunidade diferenciada: a acolhida e o serviço mútuo em lugar de e em vez de “hierarquias” rígidas e distantes que envenenam as relações interpessoais. Para Jesus, não é o poder que deve ocupar o centro, mas a criança, despojada de todo poder.
Por isso, para quebrar a pretensão de poder e prestígio do seu grupo de seguidores, Jesus realiza um gesto de forte impacto: coloca uma criança no centro do grupo e a abraça. Os discípulos discutiam sobre esse “centro”, mas agora descobrem que ele está ocupado por uma criança a quem Jesus coloca de pé: esta é a nova “cátedra” a partir da qual ela ensina os(as) seguidores(as) d’Ele.
Na nova comunidade, fundada por Jesus, há uma “inversão pedagógica”: são as crianças que nos ensinam e nos conduzem, e, com um olhar assombrado, nos fazem arregalar os olhos e “ver” coisas que nunca vimos. São elas que nos fazem ver a “eterna novidade do mundo” (Fernando Pessoa).
O profeta Isaías, numa curta e maravilhosa frase, resumiu essa situação: “... e uma criança pequena os guiará” (Is. 11,6). Os grandes aprendendo dos pequenos; os adultos sendo ensinados pelas crianças.
Agora Jesus nos revela que é a criança que vai mostrando o caminho. Aquilo que os adultos esqueceram e que a sabedoria busca, as crianças sabem.
Os sábios sabem que existe uma progressiva cegueira das coisas à medida que o seu conhecimento cresce.
Recuperar a “sapientia” é preparar o caminho para a volta da criança, abafada em nosso interior.
Os adultos, para se salvar, deveriam rezar diariamente a reza mais sábia de todas:
“Meu Deus, me dá cinco anos, me dá a mão, me cura de ser grande...” (Adélia Prado).
Texto bíblico: Mc 9,30-37
Na oração: O exercício do poder se expressa nas atitudes de dominar, manipular, subjugar e definir tudo segundo os próprios critérios. A perversidade do coração humano encontra no exercício do poder o campo mais propício para a revelação de suas mazelas, violências e vaidades. E isso no campo político, religioso, nas relações entre as pessoas...
- Faça uma leitura orante de seu cotidiano e verifique se, sorrateiramente, o “veneno do poder” encontra modos de expressar “disfarçados”, petrificando seu coração, impedindo a vida de desabrochar e a criatividade de se expandir.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
16.09.21
“...quem perder sua vida por causa de mim e do Evangelho, salva-la-á” (Mc 8,35)
O relato deste domingo (24o domingo do Tempo comum) ocupa um lugar central e decisivo no evangelho de Marcos. Jesus sempre teve uma presença original e instigante no contexto social e religioso de seu tempo; sua atuação provocava diferentes reações e ninguém podia ficar “indiferente” diante do seu modo de ser e viver.
D’Ele se diziam muitas coisas contraditórias: que estava “fora de si” (Mc 3,21), que era um endemoninhado (Mc 3,22), que era um “comilão e beberrão” (Lc 7,34), “amigo dos pecadores” (Mt 11,19) e “blasfemo” (Mc 2,7), um impostor (Mt 27,62), o profeta esperado, o mestre que ensinava doutrinas que poderiam provocar uma rebelião (Lc 23,1), que era o “filho do Deus vivo”...
Até que um dia, longe do seu ambiente, longe do lago e de Jerusalém, em Cesaréia de Filipe, Jesus fez aos discípulos perguntas decisivas, que são aquelas do “meio do caminho”, perguntas adultas.
Os discípulos já levavam um bom tempo convivendo com Jesus; não estavam mais no entusiasmo inicial: viram e viveram o suficiente para dar uma resposta que não dependia daquilo que os outros diziam a respeito da identidade de Jesus. “E vós quem dizeis que eu sou?”
Chegou o momento em que eles deverão se situar diante da pergunta decisiva e que exige de todos uma tomada de posição, um ato de fé. Perceberam que a pergunta do “meio do caminho” impele-os a ir mais longe, a sondar o mistério profundo, não só da identidade de Jesus, mas da identidade de cada um. Sentiram que a resposta a ser dada a esta altura do seguimento devia iluminar o que lhes faltava percorrer, devia marcar a vida com o selo da entrega: a quem estão seguindo? Que é o que descobrem em Jesus? Que impactos causam em suas vidas a mensagem e o projeto do Mestre da Galiléia?
Desde o momento em que se deixaram impactar pelo primeiro chamado, os discípulos vivem interrogando-se sobre a identidade de Jesus. O que mais lhes surpreende é a autoridade com que fala, a força com que cura os enfermos, o amor com que oferece o perdão de Deus aos pecadores, a liberdade diante da religião e da tradição do seu povo... Quem é este homem tão diferente e tão original?
Os Evangelhos anunciam que o modo de Jesus viver – suas atitudes, seus gestos, suas palavras – revelava uma nova visão das coisas, um novo ponto de partida, uma nova ordem, um novo projeto. Jesus era livre e essa liberdade nos fascina até hoje.
Jesus encarnou-se num mundo fechado, dividido, conflituoso... Fez-se presente no mundo da dor: enfermos, pobres, pecadores... e a partir daí propôs um novo movimento de humanização.
Jesus vivia a partir de um sonho primordial: o Reino. A riqueza original desse sonho primordial não se “encaixava” nos esquemas dos fariseus ou saduceus, essênios ou zelotes, nem se deixava instrumentalizar pela instituição do Templo ou sinagoga.
Diante do seu modo original de viver, Jesus quer verificar a real motivação dos seus discípulos. “E vós, quem dizeis que eu sou?” Não basta que entre eles haja opiniões diferentes mais ou menos acertadas. É fundamental que aqueles que se comprometeram com sua causa, reconheçam o “mistério” que se revela na vida d’Ele. Se não for assim, quem manterá viva sua mensagem? Que será de seu projeto do Reino de Deus? Em que terminará aquele grupo que se associou a um movimento de vida, desencadeado pelo mesmo Jesus?
O horizonte de todo ser humano é precisamente a vida e a plenitude. Isso é o que todos, sabendo ou não, buscamos. E o buscamos em tudo o que fazemos e em tudo o que deixamos de fazer. Como acertar?
Jesus oferece uma resposta carregada de sabedoria, na linha daquela que foi dada por todos os mestres e mestras espirituais: para caminhar na direção da vida, é necessário “desapegar-se” do ego.
“Renunciar a si mesmo”: não se trata de negar o que somos, mas o que pretendemos ser e não somos.
Este esvaziamento não significa nossa anulação enquanto “pessoas”, mas nossa potenciação. Na medida em que os aspectos que nos limitam diminuem, aumenta o que há em nós de plenitude. Só há seguimento de Jesus quando se dá um processo permanente de esvaziamento do ego para viver a entrega aos outros.
Só uma pessoa esvaziada de seu ego pode transformar-se e transformar a realidade.
“Renunciar a si mesmo” supõe renunciar toda ambição pessoal. O individualismo, o egoísmo, não tem lugar na vida de Jesus e daquele(a) que busca segui-lo.
“Carregar a cruz” também não significa buscar a dor e nem negar a vida. As palavras de Jesus não são uma exaltação do sofrimento, mas expressam uma grande sabedoria: buscam “despertar” seus seguidores diante das consequências frente ao compromisso com a vida. “Cruz”, no seu sentido original significa “prontidão, estar de pé, preparado, mobilizado, ser fiel até o fim...”. Essa é a Cruz assumida por Jesus e essa também deve ser a cruz de quem entra no Caminho de Vida. Só essa Cruz é salvífica.
Como evitar que o nosso ego nos domine e determine nossa vida? O primeiro passo será desvela-lo e desmascará-lo com todas as suas maquinações e dubiedades.
Nós, seres humanos, somos uma realidade contraditória: experimentamos em nosso interior como que uma “dupla identidade”: por um lado, a identidade individual (o ego) e por outro a identidade profunda (transpessoal), que constitui nosso verdadeiro ser.
Na realidade, o ego não é o meu verdadeiro eu, não sou eu. É uma falsa imagem de mim. É a ilusão de que eu sou um indivíduo separado, independente, isolado e autônomo. Essa ilusão me distancia da comunhão com os outros e com a Criação, nega que faço efetivamente parte de um universo imenso, em que tudo é interdependente e está intimamente ligado entre si. O ego exacerbado quer controlar o seu mundo: pessoas, acontecimentos e natureza. Daí a obsessão pelo poder e pelo domínio.
Sabemos que todas as divisões, conflitos e rivalidades entres os seres humanos provém da ilusão do ego que quer se impor sobre os outros.
Só na identificação com Jesus vamos afastando as cinzas e reacendendo nosso verdadeiro eu, oblativo, aberto, expansivo... No encontro com a identidade de Jesus descobrimos nossa verdadeira identidade. Quando descobrimos a “boa notícia” (=evangelho) de quem somos, seremos capazes de esvaziar a identificação com o ego e deixar-nos de viver para ele. O anúncio do evangelho (boa-notícia) começa pelo nosso interior, levando luz para estabelecer o “cosmos” em meio ao caos dos conflitos ali presentes.
O nosso verdadeiro eu está enterrado por baixo do nosso ego ou falso eu. Segundo a afirmação de Jesus, a pessoa cresce e se enriquece na entrega e na desapropriação. Podemos parafrasear as palavras de Jesus deste modo: “aquele que quer salvar seu ego, perde a vida; mas aquele que deixa de se identificar com seu ego, vive em plenitude”.
O Evangelho nos convida, mais uma vez, a alargar o círculo de nossa interioridade, a olhar para fora, a descentrar-nos para encontrar o outro, a Deus, e, provavelmente, por esse caminho, também o olhar mais autêntico e completo sobre a nossa própria vida.
O modo mais simples de traduzir isso parece ser este: “deixa de viver para teu eu estreito”, “não gira em torno ao teu ego, porque esse modo de vida te aprisionará cada vez mais, e tua vida será vazia e estéril”.
Trata-se de um apelo a ir mais além do ego e descobrir nossa verdadeira identidade, aquela “identidade compartilhada”, na qual o próprio Jesus se encontrava.
Texto bíblico: Mc 8,27-35
Na oração: Como a Lua, todos nós também temos nosso “lado oculto”: há sempre dimensões da vida que procuramos mantê-las escondidas dos outros: feridas, fragilidades, sentimentos dissimulados, desejos camuflados, limitações disfarçadas, pobrezas mascaradas...
Deus também conhece este lado oculto e o olha com compaixão. A oração é a ocasião privilegiada para revisitar, a partir de Deus, esse lado oculto, desvelá-lo e integrá-lo, para que nossa verdadeira identidade se manifeste.
- Dê nomes ao seu “lado oculto”: como você reage diante dele? Como torná-lo companheiro de estrada?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
09.09.2021
Imagem: pexels.com
“Ephathá! Imediatamente seus ouvidos se abriram e sua língua se soltou...” (Mc 7,35)
Diz um proverbio chinês que “quando os olhos são liberados, começa-se a ver; quando os ouvidos são liberados, começa-se a ouvir; quando a boca é liberada, começa-se a saborear, e quando a mente é liberada, alcança-se a sabedoria e a felicidade”.
Para nos livrar da auto-referência é preciso “cristificar” nossos sentidos, tornando-os oblativos e expansivos. Talvez, a pior enfermidade que padecemos é a atrofia e petrificação dos sentidos; com isso, perdemos a capacidade de assombro e de agradecimento, a capacidade de abertura ao outro, aos outros e ao Outro.
Segundo o livro do Gênesis, o estado original dos sentidos e da mente é a contemplação e a admiração, e não o instinto possessivo ou a suspeita; através deles transitamos pelo mundo numa atitude receptiva.
Assim, “pensar” a realidade é acolhê-la com gratidão e veneração. Com os sentidos oblativos, a inteligência é chamada a “sentir” o mundo como Tabernáculo de uma Presença, que tudo dignifica e torna sagrado.
A filosofia antiga dizia: “Não há nada no entendimento que antes não tenha estado nos sentidos”.
Todo o corpo humano é expressão: gesto, atitude, palavra...; tudo isto revela interioridade, sentimento, espiritualidade; e os sentidos do outro, se estão atentos, podem captar o que foi expresso.
Cessado o pensamento nós nos transformamos num ser só de sentidos, do jeito mesmo como nascemos.
Nós somos olho, ouvido, nariz, boca, pele. Olhamos, escutamos, saboreamos, cheiramos, tocamos... Só assim entramos em interação com a realidade e com os outros. Os sentidos nos humanizam.
O evangelho deste domingo condensa vários aspectos que se oferecem a nós como luz para desvelar o lugar e a importância dos nossos sentidos. Neste relato encontramos Jesus peregrino, fora de seu país, atravessando terra estrangeira, um espaço habitado por “pagãos”, por aqueles que não professam a fé no Deus de Israel. Jesus, com todos os seus sentidos ativos, quebra distâncias e se faz próximo do diferente, daquele que é rejeitado por não ter as mesmas ideias, a mesma religião, a mesma cultura...
O relato ajuda a nos fixar na corporeidade de Jesus, pois nos fala de suas mãos, de seus dedos, saliva, olhos, respiração..., todo o seu ser a serviço do bem. Jesus mobiliza todos os seus sentidos para “destravar” os sentidos bloqueados do enfermo que é levado até Ele.
Jesus se revela como presença inspiradora e nos apresenta uma maneira original de viver o encontro, a acolhida, o diálogo e a cura. Ele rompe as fronteiras e os pré-juízos, se aproxima e permite que os outros se aproximem dele, oferecendo, na relação, o melhor de si mesmo e despertando o melhor que há na outra pessoa. Assim, para uma relação sadia e compassiva é preciso mobilizar todos os sentidos corporais.
Jesus, com seus sentidos abertos e acolhedores, destrava os sentidos do pobre homem excluído e o capacita a integrar-se na convivência social; com os sentidos abertos, agora ele pode expressar a riqueza de sua interioridade. Uma vez libertado da atrofia dos sentidos, o homem se emancipa, recupera sua autonomia e pode manifestar-se sem bloqueios; nada mais o limita.
No encontro com o enfermo que lhe é apresentado, Jesus começa por usar uma linguagem não-verbal; é a linguagem mais primitiva, anterior à palavra: através dos gestos, o surdo-mudo vai sendo reconstruído em sua humanidade.
Jesus, no início da cura, “o conduz à parte, longe da multidão”; uma ação personalizadora, um afastamento da multidão, para longe da massificação.
E lá, na intimidade do contato, o doente é cuidado na individualidade das suas dores.
- “Colocou os dedos nos seus ouvidos”: literalmente, “pôs o dedo na ferida”.
A mão é fonte de contato, é canal de passagem da energia curativa.
- “Com a saliva tocou a língua dele”: força terapêutica da saliva.
- “Olhando para o céu..”: Jesus olha para o alto, em direção ao Pai. Com o olhar para o alto, encaminha-o para além de si. É preciso remetê-lo ao Pai, origem de toda vida.
- “Jesus suspirou”: com o sopro, prolonga o gesto do Criador no 6º. dia da Criação; recorda como Deus “fez tudo bem” no início. Traz à memória o sopro do Espírito, que transforma o “caos” existencial do surdo-mudo em “cosmos”, ou seja, a presença do sopro que passará pelas cordas vocais e pela língua, para ser transformado em palavras.
- “E disse-lhe: ‘Effatha’ (que quer dizer: ‘abre-te’)”: palavra dirigida ao coração do surdo-mudo. É como se dissesse: “abre-te à tua identidade! destrava teu interior!”
Depois de tantos gestos não-verbais e primitivos, vem a palavra. E o surdo-mudo desata sua língua e começa a falar. Insere-se nos devotos que ouvem a Deus e proclamam que Ele é o único, com todos os órgãos e sentidos do seu corpo.
A sociedade na qual estamos inseridos requer de todos nós uma nova sensibilidade para facilitar a convivência, a transformação social e acolher a nova visão da existência humana. No entanto, a convivência social se revela cada vez mais conflituosa; uma das grandes dificuldades é a ausência de saber escutar, olhar, sentir...
Vivemos tempos de reclusão, petrificação, ódios e intolerâncias... que são o contrário do “ephatá-abre-te”.
É preciso “ressuscitar os sentidos” para que encontrem seu lugar insubstituível na experiência da relação com os outros e na expressão de nossa fé. E só podemos descobrir o “lugar e o sentido” dos sentidos através do confronto com a “sensibilidade de Jesus”.
Nesse sentido, a conversão evangélica precisa chegar a alcançar a sensibilidade para ser efetiva. Os senti-dos se fazem “espirituais”, isto é, tornam-se sentidos transfigurados, habitados, animados pelo Espírito de Deus porque o ser humano é o “templo do Espírito” (S. Paulo).
Assim, uma sensibilidade cristificada revela-se como uma graça que nos permite viver o seguimento de Jesus de um modo sempre original e aberto.
O agir cristão depende da sensibilidade e enquanto esta não for evangelizada não podemos ter certeza de reagir evangelicamente na vida.
Escutar, sentir, perceber as próprias sensações físicas, as emoções primárias, as reações psíquicas...: o corpo é criativo nas suas expressões e na arte da comunicação. A corporalidade, tanto pode ser escutada como sentida. Tendo aprendido a auto-escutar, pode-se olhar, escutar ou sentir as reações vocais, corporais e sentimentais do outro que padece, que sorri, que precisa falar.
Enfim, somos convidados a nos identificar com Jesus Cristo ativando, assídua e amorosamente, os olhos e ouvidos, o tato, paladar e olfato, com a esperança de que fiquem tão banhados e afetados pela sensibilidade d’Ele que, quando mais tarde entrarem em contato com a vida real, possam reagir diante dela com uma sensibilidade nova, diferente, transformada, convertida. Só assim nossa presença será mais evangélica.
Texto bíblico: Mc 7,31-37
Na oração: O surdo-mudo precisava abrir os ouvidos e soltar a língua, mas todos nós precisamos abrir alguma dimensão de nossa pessoa que está travada, ou talvez alguma capacidade adormecida ou bloqueada. É preciso transitar com Jesus pelos “territórios pagãos” da nossa própria interioridade, onde dimensões da vida estão travadas, palavras estão silenciadas, dinamismos estão atrofiados...
- Deixe ressoar em seu coração: “Ephathá! Abre-te!” - “Abre-te” a outros modos de pensar, a outras visões e culturas, viver aberto(a) à história e à desafiante realidade.
- O que é preciso “desbloquear” em seu interior? Capacidades adormecidas? (amor, ternura, alegria, generosidade, solidariedade, liberdade...); defesas protetoras que se converteram em armadura oxidada? (medos, retraimento, imagem idealizada...); “manias” nas quais se instala, costumes e rotinas que o(a) mantém fechado(a) em uma jaula de um falso conforto...?
- O que parece claro é que a abertura a espaços interiores vem sempre acompanhada da abertura aos outros e a toda a realidade. Esse parece ser o caminho que conduz à descoberta de que todos somos uno com a Fonte.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
01.09.2021
“Este povo me honra com os lábios, mas seu coração está longe de mim” (Mc 7,6)
O evangelho deste domingo (22o Domingo do Tempo Comum) seleciona só alguns versículos do cap. 7 de Marcos, carta magna da liberdade cristã, no plano da refeição e do amor (relações humanas). Que todos tenham direito à alimentação e se amem, com todo o coração. Trata-se, pois, de educar e sanar o coração, não através de mais leis, mas através de mais liberdade e verdade de amor.
Neste sentido, o relato de hoje nos situa no centro da dinâmica cristã, no lugar onde o(a) seguidor(a) de Jesus, muitas vezes centrado(a) na lei, a partir de seu interior se abre (por impulso da memória de Jesus) à grande liberdade cristã na refeição e no amor.
De fato, para muitos, sua relação com Deus se reduz ao cumprimento de algumas práticas religiosas, à participação em alguns ritos e festas, segundo as normas e tradições estabelecidas por sua própria religião. O ensinamento de Jesus liberta de muitas obrigações e orienta ao culto verdadeiro.
É uma mensagem que nos livra de tantas ataduras e ritualismos, da repetição mecânica de tradições e normas do passado, e orienta à novidade de um culto verdadeiro, a partir do coração.
Marcos ressalta que os fariseus e alguns mestres da lei “se reuniram em torno de Jesus”. Não são pessoas interessadas em conhecê-lo. Como fiéis cumpridores da lei, já haviam percebido o perigo que Jesus representava por suas transgressões em relação ao sistema religioso. Vieram de Jerusalém, o centro do poder religioso, para investigar a conduta do Mestre de Nazaré. Tinham reconhecido as coisas extraordinárias que Ele fazia, e tinham tentado desacreditá-lo frente ao povo, atribuindo seus poderes ao “chefe dos demônios”. Querem criar ao redor de Jesus um cerco de suspeitas e rejeição.
Agora, escribas e fariseus unidos encontram outra transgressão da lei nos discípulos de Jesus: eles comem sem lavar as mãos. Convivendo com Jesus, eles tinham assimilado sua liberdade. Na multiplicação dos pães (relato anterior), Jesus ofereceu pão para a vida de todos, sem exigir purificações prévias, porque a pureza e a cura vem d’Ele. Mas, para a comissão investigadora vinda de Jerusalém, comer sem lavar as mãos não era uma falta menor. Estava em jogo todo um sistema de separação entre o que é puro e o que é impuro.
Há alimentos puros que todos podem comer, e outros impuros, que são proibidos. E as pessoas precisam se purificar antes de comer. Assim ensinaram os antepassados e assim manda a lei. Segundo os encarregados da religião, não se pode relativizar a autoridade sagrada da tradição.
A reação de Jesus é muito dura, e põe em evidência que a relação com Deus não passa através do uso de alimentos puros ou ritos de purificação, de culto formal e vazio. Os escribas e fariseus são a encarnação dos destinatários da denúncia profética de Isaías: “este povo me honra com os lábios, mas seu coração está longe de mim”. Os responsáveis da instituição criaram, em nome de Deus, um sistema de poder, com ritos que os privilegiavam, obrigações que discriminavam e separavam, e um controle social intolerável. Os pobres não podiam cumprir com todas as normas, e por isso eram considerados “povo maldito”.
Uma consequência muito clara que aparece aqui consiste em que, com muita frequência, na conduta de muitas pessoas há uma enorme distância entre a observância dos ritos sagrados, por uma parte, e a fidelidade à honestidade, à bondade, à justiça... por outra parte.
E aqui nos deparamos com tantas pessoas que são fielmente observantes das leis e ritos religiosos, mas, ao mesmo tempo, são pessoas que são profundamente desumanas na relação com os outros; deixam muito a desejar em sua conduta ética.
Segundo os relatos evangélicos, é visível que Jesus não teve enfrentamentos nem com os romanos, nem com os pecadores, os samaritanos, os estrangeiros, etc... Os conflitos de Jesus surgiram precisamente com os mais fiéis cumpridores da religião: sacerdotes, mestres da lei e fariseus.
Jesus não rejeitou o culto religioso. O que Jesus fez foi deslocar o centro da religião e esse centro não está nem no templo e nem nas suas cerimônias, nem no sagrado e nem em seus rituais.
O centro da experiência religiosa, para Jesus, está em fazer o que fez o mesmo Deus, que sempre “desce” e se aproxima de todos os seus filhos e filhas. Deus está presente em cada ser humano, seja quem for, pense como pense, viva como viva. Só reconhecendo esta realidade surpreendente e vivendo-a, como viveu o próprio Jesus, estaremos no caminho que nos leva ao centro do verdadeiro culto a Deus.
Os líderes religiosos apresentam “mãos limpas” porque não as usam para o serviço aos outros; são “mãos assépticas” porque não se “contaminam” no contato com as pessoas. Eles se mostram incapazes de ver as mãos como mediação para uma nova humanização, reduzindo-as e atrofiando-as devido a seus esquemas religiosos e morais. Suas mãos carregam censuras, traficam destruição, encarnam a falsidade... Suas mãos são temidas porque fecham o futuro, excluem e espalham o medo, pesam porque julgam...
Aqui, no embate com Jesus, eles não fazem nenhuma referência ao anterior evento da “multiplicação dos pães” e nada dizem sobre a refeição de Jesus com a multidão; eles não se preocupam com aqueles que não comem, mas observam a compostura daqueles que comem. Sua visão míope foge do essencial para permanecer no periférico. Desviam a atenção para o terreno de seus domínios, uma moral superficial, descompromissada. Assim, pois, centram sua atenção em alguns dos discípulos para captar uma irregularidade em sua forma de comer, pois eles comem com “mãos impuras”.
Jesus nos coloca a todos diante deste dilema: o que vem em primeiro lugar, os ritos religiosos ou o compromisso com a vida dos mais vulneráveis e excluídos? O mais importante é o ritual religioso ou a experiência humana de encontro, convivência, serviço...?
Para Jesus, o culto verdadeiro a Deus não passa pelas cerimônias pomposas, centradas na exterioridade e aparência, mas pelo coração e pela vida. É uma mensagem que Marcos envia também à sua comunidade.
Jesus insiste, com uma indicação que quer ser universal: “Escutai todos e compreendei”. Todas as coisas são puras. A impureza, o que separa de Deus e dos outros, não vem dos alimentos que são comidos, daquilo que vem de fora e vai ao estômago.
A impureza pode sair só de dentro, do centro da pessoa, do coração do ser humano. Isso impede a relação sadia com Deus, ferindo as relações humanas. O coração do ser humano é capaz do melhor (compaixão, solidariedade, bondade, serviço, amor...) mas, quando petrificado e fechado, é capaz do pior (más intenções, imoralidades, roubos, assassínios, adultérios, devassidão, inveja, calúnia, orgulho...). São os chamados “pecados de raiz”, ou seja, endurecimentos, fechamentos e fixações... que impedem a energia vital, a misericórdia de Deus, fluir livremente. São bloqueios e empecilhos colocados por nós mesmos e que interceptam a relação com Deus, com os outros e com as criaturas, portanto, com a plenitude da vida, e cortam nossas próprias potencialidades de vida.
Quando falamos de “pecados de raiz” queremos destacar a necessidade de uma conversão radical.
Texto bíblico: Mc 7,1-8.14-15.21-23
Na oração: - Deixe-se conduzir pelo Espírito; graças à sua presença, o caos interior se transformará em cosmos (beleza e harmonia) que se expressará em compaixão, perdão, tolerância, acolhida...
- Seus pensamentos são poluídos? Suas palavras são ácidas? Seus gestos são agressivos? Os entulhos – ódios, julgamentos, inveja, intolerância... se amontoam em seu interior?
- Permita que o Espírito transite livremente pelos espaços mais sombrios do seu eu profundo, realizando uma verdadeira “ecologia interior”.
- Recolha-se no mais íntimo de si mesmo, mergulhe em seu oceano de mistério e descubra, lá no mais profundo, o Ser Vivo que fundamenta a sua identidade e seu ser verdadeiro.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
27.08.2021
Imagem: pexels.com
“As palavras que vos falei são espírito e vida” (Jo 6,63)
Segundo o evangelista João, Jesus resume assim a crise que vai se estabelecendo em seu grupo: “As palavras que vos falei são espírito e vida”. Jesus desperta um “espírito novo” naqueles que o seguem; suas palavras tem um peso e ativam vida; são palavras inspiradoras porque brotam do mais profundo do seu coração; são palavras provocativas, que colocam em questão o verdadeiro motivo daqueles que o seguem.
Por isso, elas despertam uma ressonância no interior dos ouvintes e desencadeiam um movimento de ruptura com o antigo, movendo-os a um distanciamento das “palavras domesticadas” pela tradição e pela religião. As palavras de vida pronunciadas por Jesus podem gerar um movimento capaz de orientar o mundo para uma vida mais digna e plena.
Um dos maiores dramas de nossa atual cultura é que temos esvaziado as palavras de sentido, e, com frequência, as utilizamos para expressar coisas totalmente diferentes e até opostas ao seu significado original. Chamamos liberdade o que na realidade é arbitrariedade e imposição; felicidade passou a significar consumo e vaidade; a qualidade de vida está ligada à quantidade de coisas; negócio passou a ser grosseira especulação e roubo; ordem estabelecida à dominação e à injustiça; diplomacia ao engano e à mentira; sinceridade à falta de respeito; amor à atração física, ou ao desejo de posse... Uma gravíssima desvalorização da palavra acaba se expressando na desvalorização da ética, da política, da vida.
Há palavras que, de repente, se põem de moda entre nós, expressões felizes que por força da repetição acabam se esvaziando.
Os “comerciantes da morte” mataram as palavras, arrancaram dela o coração e as transformaram em meras máscaras ocas, em sons sem alma, com os quais pretendem nos seduzir, nos enganar e nos manipular. Não há pior escravidão que a mentira; ela oprime, tortura, impede sair de si mesmo para viver uma comunicação sadia com quem pensa, sente e ama diferente. Não há nada mais desprezível que a eloquência de uma pessoa que não diz a verdade. É preciso libertar a consciência dizendo sempre a verdade. É preferível perturbar com a verdade que agradar com adulações.
Vivemos hoje uma “crise gramatical”, ou seja, temos cada vez menos palavras. O leque de palavras carregadas de sentido é muito limitado. Daí a dificuldade de encontrar palavras para nomear a experiência de Deus, para expressar as grandes questões da vida, para dar sentido a uma busca existencial.
Vivemos tempos de “fratura da palavra” e, portanto, “fratura de sentido”. E a raiz disso tudo está na carência de uma interioridade, lugar da gestão das palavras de sabedoria que inspiram nossa vida. Vivemos cercados de “palavras vãs”, condenados a uma civilização que teme o silêncio (há demasiado ruído em nós e em torno a nós). Fala-se muito para dizer bem pouco.
Jornais, revistas, tevê, outdoors, celular, watsapp, internet, correio eletrônico... há demasiado palavrório. Carecemos de profundidade. Se, segundo o Gênesis, Deus fala e com sua Palavra cria, as palavras nos fazem sentir como “deuses”: com elas podemos fortalecer a vida ou asfixiá-la, expressar amor ou ódio, elevar o outro ou afundá-lo...
Há palavras que são golpes, bofetadas; e palavras que são carícias, estímulos, abraços. Com as palavras podemos criar ou destruir, dar vida ou matar. A palavra pode se converter em insulto e condenação, mas também em canção ou poema que cultiva a sensibilidade e nos abre à beleza.
“Tomem cuidado contra a murmuração inútil, e da maledicência preservai a língua. Não há palavra oculta que caia no vazio e a boca mentirosa mata a alma” (Sab 1,11).
No momento final do discurso no cap. 6, de João, Jesus busca aclarar as condições de pertença à sua nova comunidade : adesão a Ele e revestir-se de sua proposta de vida; deixar que Sua Palavra desperte palavras mobilizadoras em nosso íntimo, palavras abertas, oblativas e que apontem para o sentido de nossa própria existência.
Mas, não basta estar em seu grupo para garantir a adesão ao modo livre de ser e viver de Jesus; há aqueles que resistem aceitar seu espírito e sua vida. Sua presença em torno a Jesus é fictícia, seu seguimento se restringe a um ritualismo vazio. A verdadeira crise no interior do cristianismo sempre é esta: cremos ou não cremos em Jesus? Somos seguidores(as) de uma Pessoa ou meros cumpridores de alguns ritos, normas, doutrinas… que nos fazem estéreis e esvaziam todo compromisso com os outros?
São muitos os que resistem aceitar o “espírito e vida” de Jesus. O narrador do Evangelho deste domingo nos diz que “muitos discípulos o abandonaram e não mais andavam com Ele”. É na crise que se revela quem de fato são os verdadeiros seguidores de Jesus. A opção decisiva é sempre esta: quem volta para trás e quem permanece com Ele, identificados com seu espírito e sua vida? Quem está a favor e quem está contra Seu projeto em favor da vida?
Para os despreparados (imediatistas) a crise representa estresse e colapso. Para os atentos (contemplativos), significa um trampolim para o aprendizado e para o novo.
A crise provoca uma decisão que abre um novo caminho de crescimento e rasga um horizonte de possibilidades que vão moldando um novo estilo de vida. Não havendo decisão, protela-se a crise, e as forças positivas nela contidas nunca chegam a se manifestar.
Crise é o momento crítico da decisão, onde algo é deixado para trás e se abre um patamar superior que possibilita uma nova forma de vida.
Nos momentos de crise vive-se com especial intensidade o “kairós” (momento de graça), onde o essencial surge com mais clarividência. Tudo o que é acidental, periférico, perde sua consistência e validade. É chance de vida nova num outro nível e dentro de um horizonte mais aberto.
Se compreendermos que a crise é o lugar generoso onde se prepara o amanhã, então teremos a oportunidade de amadurecer e de dar um salto para dentro de um horizonte mais rico de vida, humana e divina. Nesse sentido, a crise é oportunidade para despertar nossa humanidade; ela nos humaniza.
O grupo que seguia Jesus começa a diminuir, mas Ele não teme o fracasso, não se irrita e não pronuncia nenhum julgamento contra ninguém. Só faz uma pergunta aos que permanecem junto a Ele: “Vós também quereis ir embora?”
Seguimento é questão de decisão pessoal, é exercício da liberdade.
Esta é a pergunta que ressoa no interior de cada um de nós: Quê queremos? Por quê permanecemos? É para seguir a Jesus, acolhendo seu espírito e vivendo seu estilo? É para trabalhar em seu projeto? A resposta de Pedro é exemplar: “Senhor, a quem iremos nós? Tu tens palavras de vida eterna”. Os que permanecem o farão por Jesus. Só por Ele; comprometem-se com Ele. O único motivo para permanecer em seu grupo é Ele. Ninguém mais.
O messianismo triunfal fica definitivamente excluído. Jesus não busca glória humana ou divina, nem a promete aos que o seguem. Segui-lo significa renunciar toda ambição, e aceitar a entrega total de si mesmo em benefício dos outros.
Texto bíblico: Jo. 6,60-69
Na oração: fazer memória das crises na vida pessoal: elas foram ocasião para uma mudança ou acomodação, movimento em direção do novo ou retraimento? Medo ou ousadia? Criatividade ou “normose”?
- Que implicações tem para sua vida o fato de ser seguidor(a) de Jesus? Faz diferença?...
Pe. Adroaldo Palaoro sj
18.08.2021
Imagem: pexels.com
Página 9 de 37