Seguramente, uma das passagens filosóficas mais conhecidas é a Alegoria da Caverna de Platão. Tal texto se encontra em seu não menos famoso A República. Nesta passagem, a coisa se dá mais ou menos da seguinte forma: havia um grupo de homens que foram criados no interior de uma caverna, acorrentados de costas para a entrada, de modo que tudo o que conseguiam ver do mundo exterior eram as sombras, refletidas no fundo da caverna, das pessoas e dos objetos que passavam em sua entrada. Certo dia, alguém entra nessa caverna, liberta um dos prisioneiros que lá se encontrava, e o força a sair. Após relutar muito e não conseguir se opor à pessoa que o arrastava de lá, o prisioneiro finalmente chega ao lado de fora. No começo, tem grande dificuldade de conseguir enxergar as coisas. Por fim, seus olhos se acostumam à claridade, e ele passa a ver as coisas como elas são. Nisso, ele se dá conta de que o mundo real, verdadeiro, era o que estava fora da caverna, que lhe era, até então, desconhecido e contra cujo conhecimento lutara o tanto quanto pôde. Na visão de mundo de Platão, tal coisa, o conhecimento da verdade, significaria automaticamente a virtude (no campo do agir ético) e a plena realização possível da existência humana.
O dado do sentido da vida não era propriamente uma questão para os gregos. O foco, na Alegoria de Platão, é sobretudo o conhecimento da verdade em si, da ordem subjacente às coisas, da sua essência. Do modo como temos hoje, a busca pelo sentido da vida, que se processa em uma vertente muito mais individual, já que é o sujeito sozinho que busca o sentido para a sua própria existência (ainda que esse sentido possa também ser partilhado, em algum nível, com outras pessoas), é uma invenção recente: no ocidente europeizado, desponta mais fortemente na segunda metade do século XIX.
Se pudéssemos usar uma imagem, pegando emprestado o exemplo da Alegoria, é como se, posto para fora da caverna, o ser humano tivesse sucumbido da contemplação da verdade, do bem e do belo, em Platão, para o desabrigo e o desalento, em nosso tempo. Não foi a essência das coisas aquilo a que acabamos chegando, mas ao aparente vazio de sentido da existência. A impressão que se pode ter é que, para além da caverna que nos protege, mas que, como preço para isso, mantém-nos infantilizados, vedando-nos o acesso à realidade, o que nos resta é o descampado vazio, estéril, infeliz. Usando uma imagem judaico-cristã, parece, muitas vezes, que estamos diante de dois extremos irreconciliáveis: o Éden da plenitude, do sentido, da vida – do qual fomos expulsos (e que talvez também por isso, por ser lugar interditado à nossa presença, afigura-se-nos tão atraente e vivificante) – e o mundo da contingência, do trabalho, da caminhada ao qual fomos lançados, mas que, na concepção de muitos, emerge como um desterro, o lugar da provação e da purificação, espaço da não-vida, antessala expiadora da redenção, lugar da culpa por alguma razão desde sempre merecida e que deve ser purgada, posto que se a felicidade é para alguma criatura, definitivamente não deveria ser para seres precários e imperfeitos como nós.
Não deixa de ser curioso que, ao dar um passo efetivamente difícil, o de abandonar um útero de seguranças e sentidos, o ser humano se ressente da possibilidade de crescer e amadurecer, praguejando contra sua situação de desalento, sonhando com as cebolas do Egito. Nisso, acabamos por nos comportar como aquela criança birrenta, que, ao ser contrariada em algum de seus caprichos, passa a empenhar-se em fazer-se infeliz e aos demais à sua volta, não querendo tolerar o bem possível, enraivecida que está com a interdição ao bem absoluto que desejava.
O fato de sermos expulsos do útero divino (se pudéssemos ler dessa forma a simbologia do Éden), do mesmo modo como o fomos do materno, talvez não seja punição, mas condição de possibilidade para que possamos existir enquanto pessoas, enquanto seres humanos. Contudo, diante do frio e da necessidade imperiosa de passarmos a existir a partir do exercício, consciente ou não, de nossa liberdade, muitas vezes nos portamos como a tal criança birrenta.
A opção ao sentido absoluto, à verdade última não precisa ser necessariamente o niilismo, o não-sentido. Na verdade, nunca é, por mais que tentemos acreditar no contrário. Não é que optemos por algum sentido para a vida; existir, de um modo ou de outro, cria necessariamente um, pressupõe, ainda que inconscientemente, um. Podemos, é bem verdade, dizer-nos que tal sentido não é bom, que deveria haver um melhor, etc. Podemos também, ao nos darmos conta de que algo como uma verdade última, como um novo grande útero seguro e imobilizador não existe, dizer que nenhum outro sentido existe.
No entanto, ao meu ver, ao fazermos isso, não é que estaríamos desvelando a face da realidade em si; realidade supostamente vazia de sentido. Estaríamos, talvez mais propriamente, reagindo à precariedade de qualquer significação e de qualquer realização possível, que são, inevitavelmente, parciais e limitadas no tempo. É essa a realidade mais dura no que concerne à questão do sentido e da realização de nossas vidas: jamais estaremos saciados, jamais chegaremos a um ponto a respeito do qual poderemos dizer “meu caro, você possui um bom estoque, uma reserva para muitos anos; descanse, coma e beba, alegre-se” (Lc 12, 19b). A condição humana de nossa existência tem, associada a si, o insuperável da nossa incompletude e do nosso desejo de sempre mais.
O trágico nisso tudo é que, tão aferrados a nos fazermos infelizes, ante a frustração de não termos o absoluto sonhado e desejado, não nos damos conta do belo que é a fome que nos impele a seguir sempre buscando mais vida. Algo como o trecho daquele belo refrão cristão: “(...) só nossa sede nos guia”. É porque o nosso corpo está vivo, que temos fome, e é porque queremos mantê-lo assim, que comemos. Por que será, entretanto, que ao lidarmos com a fome do espírito, fome de sentido e de realização, e sua insuperável não saciedade, não conseguimos suportar tal ordem de coisas, preferindo apequenar nossa existência, abstendo-nos de caminhar?
Ante o sonho da perfeição e a realidade da vida possível, acabamos muitas vezes por abortar esta, por não conseguirmos nos libertar da ilusão onírica. E porque padecemos a realização apenas contingente do desejado e o conhecimento apenas transitório de um sentido último, preferimos minar ainda mais as condições de possibilidade de nossa vida humana, negando-nos este sentido que já temos, mas que menosprezamos, no afincado exercício imaturo de nos fazermos infelizes.
Cristiano C. Cruz
01.05.2012