Um dos argumentos pró-ateísmo, dos mais antigos, tem a ver com a presença do mal no mundo e a consequente impossibilidade de um Deus bom. Descontando o mal por nós causado, há ainda uma abundância de males que, inexplicável e dolorosamente, caem sobre nós, sem falar nos males decorrentes de fenômenos naturais, naqueles onde não se verifica qualquer atuação humana. Não é um argumento fácil de rebater, sabemos isso desde Jó e da filosofia grega tardia. Assim alguns aconselham uma resposta que assinala nossa ignorância e nossos limites diante da conduta divina. O que a nós parece mal, seria mal do ponto de vista de Deus? Apontar algo como mal não decorre de nossos limites estreitos? Não desconhecemos mais do que conhecemos? O que não compreendemos, o mal, devemos tomar como não sendo possível compreender? O modo como concebemos Deus não interfere na dificuldade do problema? Esse tipo de resposta agrada a poucos, sobretudo se pensarmos nos que se interessam apenas por argumentos racionalmente defensáveis. E não se trata apenas de um problema teórico, mas que é, ao longo da vida, sentido por todos nós. Estamos sempre a mercê da dor, da injustiça, da contingência.
O que nos leva a uma reflexão que talvez nos permita dar um pequeno passo, sem qualquer recusa da gravidade da questão. Se o mal no mundo é incompatível com a existência de Deus, um mundo do qual o mal estivesse ausente ou mesmo bastante minorado seria, do ponto de vista do argumento acima, mais compatível com a existência de Deus. Como sabemos, o avanço do conhecimento tem, em muitos casos contornado a hostilidade da natureza, o que quer dizer que vivemos num mundo, vamos especular, onde, em algumas sociedades, a presença do mal foi, ainda que ligeiramente, afastada. Sociedades nas quais isso se observasse efetivamente tenderiam a ser mais inclinadas a aceitar a presença de Deus, dada a diminuição da presença do mal. Acho que não é isso que observamos ao nosso redor. Ao invés da referência a Deus, o que se pode ver nesses casos é a ênfase no poder humano, o que torna ainda mais remota a admissão da existência de Deus.
Claro, alguém pode alegar que qualquer dose de mal é incompatível com a existência de Deus. Mas não há aqui uma inclinação gnóstica? Apenas num mundo dotado de absoluta perfeição, Deus seria possível? É o caso de perguntar: a questão de fundo, então, mais do que a propósito da existência de Deus, não diz respeito, muitas vezes, à nossa perplexidade com o inevitável desconcerto do mundo e de seus habitantes.
Ricardo Fenati
19.08.2024
imagem: pexels.com