Orações são uma  busca de intimidade com o Sagrado. Há as que  constam das liturgias conhecidas, mas nem por isso outras, ainda desconhecidas, deixam de aparecer em lugares os mais insuspeitos. Toda intimidade é conquistada à custa de levantarmos o véu de nossos hábitos, que escondem a estranheza inseparável da realidade e sua sempre renovada face, às vezes tornada visível num poema, num romance, num rosto inesquecível, numa música que nos invade e desnorteia. Outras vezes a intimidade irrompe em meio ao silêncio da noite avançada ou numa simples manhã, inesperadamente.

Kafka é um desses lugares onde, em meio aos seus aforismos, encontramos pequenos bilhetes orantes. Com um deles aprendemos que somos marinheiros (“Esta sensação: não vou ancorar aqui -e logo sentir à sua volta a corrente ondulante que nos leva!), noutro somos lembrados de “Duas possibilidades: fazer-se infinitamente pequeno, ou sê-lo. A segunda é perfeição, logo inação, a primeira é começo, logo ação.” Cada um dos bilhetes aponta para a espiritualidade naquilo que ela tem de essencial, ou seja, a lembrança de que, em meio à vida, permanecemos habitados por algo que nos ultrapassa e a que, paradoxalmente, também pertencemos.  Kafka, ainda uma vez: “ Existem dois pecados mortais do Homem, de onde derivam todos os outros: a impaciência e a indolência. Foi por causa da impaciência que foram expulsos do Paraíso, é por causa da indolência que não voltam para lá. Mas talvez exista apenas um pecado mortal: a impaciência. Por causa da impaciência foram expulsos, por causa da impaciência não voltam para lá.”

Ricardo Fenati

17.11.21

imagem: pexels.com