“Deus só conta até um” é uma dessas expressões que atravessa a Idade Média, época sempre voltada para a dinâmica da aproximação entre Deus e os humanos. Refere-se, simultaneamente, a Deus e a nós e indica uma alteridade, condição de toda relação. Longe de insistir em qualquer individualismo, a expressão diz respeito, de início, ao reconhecimento da responsabilidade e do cuidado que cabe a cada um de nós, singulares que somos todos. Responsabilidade no sentido de que não nos é possível ocultar-nos em alguma instância alegadamente acima de nossas forças, que desencadearia ou impediria nossas ações. E cuidado no sentido de nos dedicarmos ao aprendizado de quem somos, essa tarefa que é, ao mesmo tempo, uma descoberta e uma construção.
Para além da responsabilidade e do cuidado, que é o que nos cabe, a expressão, na sua aparente simplicidade, assinala o que faz parte da espessura mesma do cristianismo, a realidade, para usar um termo da filosofia, ontológica da criatura, a sua indissolubilidade. Uma vez criados, emergindo do amor de Deus, permaneceremos. Existindo em meio à história, singularizados, abertos ao momento em que nos foi dado viver, trazemos todos essa dupla constituição, a imersão num tempo, num lugar, e a presença fiel da transcendência que, igualmente, habitamos.
Ricardo Fenati
Equipe do Centro Loyola
04.03.2021
Imagem: pexels.com