Guimarães Rosa, no Grande Sertão, escreveu que “se não tem Deus, então, a gente não tem licença de coisa nenhuma”. Já Dostoievski, nos Irmãos Karamazov, disse que “se Deus não existe, tudo é permitido”. Disseram a mesma coisa? Ou não?
Começando por Guimarães Rosa: não existindo Deus, talvez isso queira dizer que não vale a pena dar início a nada e que, ao invés de inventar a vida e o mundo, deveríamos, isso sim, aderir a um mormaço paralisante que a tudo banalizaria. Dostoievski parece dizer o contrário: Deus não existindo, estaríamos desobrigados de tudo, nada nos coagiria e tudo passaria a estar ao nosso alcance.
Sem licença num caso e sem restrições no outro. Então, só nos resta atestar a oposição. Mas é isso mesmo? Não há uma aproximação possível entre os dois autores? É possível. Se Guimarães insiste que não teríamos licença para coisa nenhuma não é porque, inexistindo Deus, o chão nos faltaria, tudo estando, então, fadado à insignificância? E, com Dostoievski, sendo tudo permitido, isso não quer dizer que tudo se equivaleria, tanto fazendo ir ou vir, criar ou desistir, norte ou sul, alto ou baixo?
Um e outro talvez estejam dizendo que a autocriação da humanidade depende do acolhimento de uma transcendência. Do acolhimento de Deus, no caso dos nossos autores. Há quem diga que, aceitando Deus, é dos humanos que retiramos alguma coisa e há quem diga, contrariamente, que o afastamento de Deus é, ao mesmo tempo, um apagamento da experiência humana. Não custa pensar um pouco sobre isso. Ou talvez, cara leitora, caro leitor, você prefira ver uma divergência onde sugeri uma aproximação entre Guimarães Rosa e Dostoievski. Também sobre isso vale pensar.
Ricardo Fenati
Equipe do Centro Loyola
19.11.2013