Prometi, na coluna passada, tratar de uma pergunta que, vejo agora, excede de muito o que posso fazer. O padecimento nos humaniza? Era essa a pergunta, a dúvida sobre o que nos humaniza. E o que está em jogo não é simples.
Há os que acham que nos humanizamos por nós mesmos, autoartífices completos que podemos ser. A recusa, aqui presente, de uma transcendência que venha, de alguma forma, a se sobrepor à cena humana é uma temática antiga, celebrada nos mitos muito antes de ser objeto da reflexão na modernidade. Voltados sobre nós mesmos e cortados os laços com qualquer alteridade, seríamos capazes, enfim, de estabelecer o melhor mundo possível, ou, para alguns, o melhor dos mundos. Obtida a transparência plena, não caberia falar de padecimento, de uma zona que permanecesse velada. Mesmo que difuso ou inconfessado, esse mote está presente na contemporaneidade.
Há os que acham, e esse é outro lado, que somos, pensando nas questões mais radicais, os que escutam, não os que fabricam. A existência não chega até nós como uma tela branca, à espera da nossa digitação. Chega ao modo de um rumor de fundo, propondo perguntas que, como marcos, delimitam, de forma obscura ou sombreada, o terreno a que pertencemos, a morada que recebemos, o padecimento a que estamos circunscritos. E, nesse caso, cabe a nós o ofício da atenção, a convivência com a interrogação e com o esforço continuado da resposta. O rio corre, é certo, mas a fonte permanece oculta. Disso brotam os mitos, as artes, a religião e a filosofia, saberes inseparáveis da incerteza e da ambigüidade.
Se aceitarmos a pergunta lá de cima, resta saber a qual dos dois caminhos, que não precisam ser pensados a todo tempo como mutuamente excludentes, cabe a prioridade
Ricardo Fenati
Equipe do Centro Loyola