Palavras, à maneira das ferramentas, são um esforço para lidarmos com o mundo e com os constantes desafios postos a nós. Sem elas, padeceríamos de uma miséria simbólica, danosa como toda miséria. Palavras, entretanto, são porosas à dinâmica da vida. Aparecem, são mantidas e, por vezes, desaparecem ou são esquecidas, incapazes de dar conta das inevitáveis mudanças a que tudo está sujeito. Longe de serem estáticas, de conservarem o significado depositado no dicionário, movimentam-se, alternam-se e não poucas vezes ganham um sentido inverso ao original. Ocorre algo assim com a palavra suficiência. Indica autonomia, suprimento, meta atingida, tudo isso que a faz desejável. Parece se opor à dependência, à submissão e mesmo à transferência de responsabilidade. Nós a usamos assim, e isso é proveitoso.

Mas isso é tudo? Esse desejo de autossuficiência não tem lá suas sombras, não aponta para um individualismo generalizado, não transforma o nosso horizonte num espelho que nos reenvia sempre a nós mesmos? O que torna possível e generosa uma amizade não é a disposição de nos abrirmos, de reconhecermos, junto à companhia do amigo/ amiga, de que há territórios internos inexplorados, que só a amizade amorosa pode desocultar? E se amamos, se somos capazes de amar, não é porque há em nós um inacabamento permanente que nos é revelado pela presença de quem amamos?  Amizade e amor não são dois horizontes justamente abertos pela percepção e aceitação de nossa insuficiência? Daí que possamos, talvez devamos, falar, como uma espécie de paradoxo, de um dever da insuficiência, de modo que venhamos   a acolher essas outras presenças, que chegam até nós pela amizade ou pelo amor, sem as quais somos irremediavelmente tolhidos em nossa humanidade.

Ricardo Fenati

22.04.2021