Na coluna anterior, lembrando nosso pertencimento ao Ocidente enquanto aventura espiritual, vimos que a experiência da fé exige de nós o acolhimento de uma inquietação que, ao invés de estreitar o espaço humano, o amplia. Mas como a razão também é parte deste legado espiritual, é preciso ver o que se passa no seu âmbito. Se nós pensarmos no momento em que essa relação se pôs de forma mais evidente, a era medieval, não custa lembrar que data daí a fundação da Universidade, instituição que brotou do reconhecimento de um espaço próprio da razão.
Entretanto, há os que opõem fé e razão. Se a fé nos deixa insatisfeitos, dada a incerteza que a envolve, não podemos esperar que a razão nos brinde com a certeza? O constante avanço das ciências, a sua chegada nas áreas as mais diversas, a proliferação tecnológica delas decorrente, com os inegáveis benefícios que envolve, tudo isso não basta para dar razão aos que consideram dever a razão ocupar a totalidade do espaço? E não nos enganemos: as ciências incluem as ciências humanas, mesmo porque é nelas que a febre de certeza parece, hoje, ainda mais aguda. Não é assim que as pessoas citam os chamados mestres da suspeita?
Mas a ciência é, de fato, esse paraíso da certeza? Não é verdade, e esse reconhecimento vem dos estudos contemporâneos sobre a ciência, que as grandes teorias científicas, não obstante a sua fecundidade, ultrapassam em muito o que é dado na experiência? As pressuposições básicas que abrem o campo das ciências, como a pressuposição de um mundo ordenado, não se assemelham mais a uma aposta do que a uma certeza? A própria história das ciências não nos ensina o caráter progressivo e inacabado do conhecimento? As grandes teorias não são, senão mortais, pelo menos sempre sujeitos a revisões pronunciadas?
Parece não ser razoável a atitude dos que defendendo a certeza imaginam receber apoio das ciências. A ciência, ao contrário, se acha melhor hospedada nos espaços abertos dos enigmas a serem decifrados, no desvendamento permanente dos problemas sempre renovados, na contínua reforma de nossas ilusões, como dizia Bachelard.
Se assim é, não podemos aproximar os dois fundamentalismos, o que vem da fé e o que vem da ciência, já que ambos imaginam, cada um a seu modo, que é possível a nós, os humanos, uma palavra final?
Para pensar na quinzena:
Em geral, durmo melhor ninado pelo mistério do que pelas certezas (Contardo Calligaris)
Ricardo Fenati
Equipe do Centro Loyola
01.03.2013