Aproveitando a publicação no Brasil do Diário de Etty Hillesum (Uma vida interrompida, ed. Âyiné, 2019), vou, nesta e nas próximas colunas, procurar transcrever e, aqui e ali, comentar trechos do Diário que possam levar os que se interessam pelo campo da mística a se debruçar sobre a sua obra, testemunha, no século XX  e em meio a circunstâncias mais do que dolorosas,  do vigor da experiência mística. 

O diário de Etty Hillesum tem início em 9 de Março de 1941. Ela, nascida em 1914, holandesa, tem então 27 anos. "Este é um momento doloroso e quase intransponível para mim: confiar meu coração inibido a um tolo pedaço de papel pautado".Os pensamentos são claros, os sentimentos são profundos, mas é mesmo possível ordená-los por escrito? E Etty se apresenta: "É como na relação sexual, o último grito de satisfação fica sempre apertado no peito. Em termos eróticos, sou refinada e diria quase experiente o bastante para pertencer à categoria das boas amantes, e o amor então parece perfeito, mas continua a ser uma brincadeira que desvia do essencial, lá dentro algo continua preso em mim." Um pouco adiante ela continua: "... bem lá no fundo, há um novelo emaranhado, algo que me trava e de vez em quando não passo de uma pobre coitada cheia de medo, apesar da lucidez de meu pensamento".


Daí parte o que mais tarde seria percebido, em meio à barbárie nazista, como uma aventura espiritual, marcada por uma série de encontros. José Tolentino de Mendonça, que prefacia a edição portuguesa do Diário, fala desses encontros: "... o primeiro tem o nome de uma pessoa, o segundo tem o nome de um lugar; o terceiro não tem nome: é o encontro com o próprio Inominável."

Ricardo Fenati

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