Os balanços são necessários. Esses recordam-nos que talvez exista no mecanismo da história (tanto aquela só nossa como a história do mundo) uma margem para aquilo que um pensamento aprofundado sobre a vida colhe sob a forma de ensinamento. Apesar de tantas vezes a história nos parecer blindada, predefinida e indiferente ao que possamos fazer, é decisivo pensar que não é assim. Vale a pena interrogarmo-nos sobre os caminhos percorridos. Vale a pena avaliar o tempo, o que fazemos dele e o que ele faz de nós. Não é o mesmo atravessar a vida sem realizarmos um verdadeiro confronto com a sua realidade ou, ao contrário, termos a audácia de manter os olhos abertos, disponíveis para interpretar a história não já como automatismo mas como construção.
Na mensagem para a jornada mundial da paz de 2023, o Papa Francisco propõe um balanço da crise da pandemia e recomenda que paremos para interrogarmo-nos. O Papa é muito claro: “Dos momentos de crise, nunca saímos iguais: sai-se melhor ou pior.” Por isso, são inexcusáveis as perguntas que nos guiam numa análise deste momento da história: que aprendemos nós com a emergência pandémica? Que caminhos novos sentimo-nos chamados a percorrer para ultrapassar a situação que nos conduziu até aqui? Sentimo-nos ou não capazes de ousar uma cultura capaz de pôr a pessoa humana no centro e de suscitar modelos de desenvolvimento mais respeitosos em relação ao planeta e às outras criaturas? Como podemos tornar melhor o nosso mundo?
Uma série de coisas tornaram-se mais claras. A primeira de todas é a compreensão reforçada de que as variadas crises que estamos a viver (sanitária, ecológica, económica, social...) estão no fundo interligadas e que somos chamados a um exercício de corresponsabilidade. A segunda é a consciência de que precisamos todos uns dos outros, que ninguém se pode salvar sozinho e que o nosso mais precioso recurso é a fraternidade. Nesse sentido, a medida mais urgente seria colocar no centro da arquitetura da existência a palavra “juntos”. A terceira é que precisamos de reaprender uma humildade fundamental no que respeita ao futuro. As expectativas que colocámos no progresso, na tecnologia e nas possibilidades da globalização revelaram-se desadequadas. O futuro pede-nos um artesanato humilde para refazermos a esperança num mundo melhor.
No seu discurso de aceitação do Prémio Nobel da Literatura, no ano de 2015, a jornalista e escritora bielorrussa Svjatlana Aleksievič contou várias histórias. De facto, quem já contactou com as suas obras não as esquece devido ao impacto que as histórias que relata têm em nós. Ela própria explica a sua missão como a de recoletora das histórias aparentemente minúsculas da gente comum. “Que faço eu? Recolho a vida do meu tempo. O quotidiano da alma. Aquilo que a grande história normalmente descura, aquilo a que não dá atenção suficiente. Eu ocupo-me da história descurada.” Ora uma das histórias acontece num hospital de Cabul, durante a guerra no Afeganistão. Uma comitiva de jornalistas visitava os civis feridos e levava presentes para as crianças. O hospital era uma enorme tenda. Os doentes estavam deitados por terra, cobertos apenas por uma manta. A escritora passou por uma mãe com um filho pequeno ao lado. Deixou ao miúdo um pequeno urso de peluche, mas achou estranho que ele tivesse recebido o presente agarrando-o com os dentes. Interrogou, por isso, a mãe: “Porque se comporta ele assim?” A jovem afegã baixou a coberta que tapava o corpo do seu filho. E então alguém teve de amparar nesse momento Svjatlana Aleksievič, porque ela desmaiou: não estava preparada para o que acabava de ver. Uma bomba roubara àquele menino os seus braços.
Dom José Tolentino Mendonça
31.12.22
In: imissio.net