Quando alguém não quer mais viver, acendem-se em mim luzes de alerta sobre o tamanho a que pode chegar a dor humana. E sinto que é preciso parar e olhar. Parar, olhar e compreender. Sem nenhuma pressa. Sem recorrer a compreensões já feitas. Sem procurar receitas de remédio ou de atitudes. Apenas com o desmedido espanto que inevitavelmente surgirá se conseguirmos a parada necessária.

Mas parar e olhar parece ser a coisa mais difícil a ser feita. Peço ajuda ao poeta Manoel de Barros e ao seu Livro das Ignorãças. Logo de saída aprendo que “desaprender oito horas por dia ensina os princípios”. É esse então o roteiro, desaprender para ver. Quando parar e olhar, preciso não saber para ver. Se eu souber, já não vejo. Se não souber, posso ver.

O poeta das pequenezas ensina a olhar e ver. Insiste que a ignorância é melhor do que a sapiência. Brinca com as coisas e com as palavras. Tira das coisas sua utilidade, fazendo de um pente, por exemplo, uma begônia. Inventa palavras que ainda não têm idioma. Repete uma palavra até que ela mude de sentido ou fique sem sentido algum.

Essa vontade de parar que me tomou pode ser o que ele chama de “entrar em estado de árvore”:

Para entrar em estado de árvore é preciso partir de

um torpor animal de lagarto às três horas da tarde, no

mês de agosto.

Em dois anos a inércia e o mato vão crescer em

nossa boca.

Sofreremos alguma decomposição lírica até o mato

sair na voz.

 

O torpor do lagarto às três horas da tarde em agosto pode ser como um corpo se sente ao não querer absolutamente nada, nem viver. Mas se pudéssemos entrar no torpor do lagarto, sentiríamos o calor do sol em toda a pele e o contato da pedra sob a barriga. Viver seria parar e não mais contaminar a pedra com nossa dor, como Rodin:

Adoecer de nós a Natureza:

— Botar aflição nas pedras

(Como fez Rodin).

 

A poesia de Manoel de Barros faz ver um vai e vem entre nós e a natureza. Como um movimento místico que faz com que o que sou se vire no que o lagarto é e volte de novo ao que sou. Botar aflição nas pedras é adoecer a natureza. Fazemos isso para que possamos ver a nossa aflição. Manoel nos pede o contrário: curar em nós a aflição pela natureza. Serenar a barriga sobre a pedra sob o sol. Ouvir o barulho de gorjeio que não para. Pisar na terra e ter os dedos misturados com os bichinhos do chão. Desaprender oito horas por dia. Repetir. Desusar.

Desusar o que sou até entrar em estado de árvore e sentir o mato sair pela voz, depois de longa inércia. Estado do que vive, até não viver mais. Quieta como árvore, invadida pelo mato que não controlo e sai da minha boca junto com minha voz, alcanço perceber a dor e ela atravessa todo o meu tronco:

Me procurei a vida inteira e não me achei — pelo

que fui salvo.

Descobri que todos os caminhos levam à ignorância.

Não fui para a sarjeta porque herdei uma fazenda de

gado. Os bois me recriam.

Agora eu sou tão ocaso!

Estou na categoria de sofrer do moral, porque só

faço coisas inúteis.

No meu morrer tem uma dor de árvore.

 

O poeta prevê a “dor de árvore” no morrer. Fazedor de coisas inúteis, se vê em inevitável caminho de ignorância. O estado de árvore tem dor ainda. Dor de árvore. A inquietude leva ao descanso do fracasso. Não se encontrar é salvação porque faz aceitar a ignorância que dói com a natureza. A vida humana se (re)encontra na vida da árvore que ainda dói. O trabalho que dá o sustento não é a sustentação da vida. O autorretrato do poeta nos conta que se dedicar às coisas inúteis não o impediu de fazer o útil necessário. A ignorância encontrada parece ser a senha: para viver, há que cuidar da vida e da não vida, do útil e do inútil.

Dou voltas em palavras, tentando seguir o caminho da ignorância de Manoel. Meu escrito quase se perde em volteio vazio. Mas alcancei um tipo de parada. Desaprendida, alcanço o espanto da dor. Tem gente que não quer mais viver e contraria a natureza que é luta permanente pela vida. A dor desmedida não é dor de árvore. É dor que só gente – que sabe o que é a aflição – consegue sentir. Se não afligimos a pedra e nem as letras ou as canções, se não afligimos palavras ou tintas ou versos, se não fazemos da dor alguma arte íntima, ela vem e nos transborda.

Não querer viver parece que é ser afogado pelo mar da própria dor.

 

Marília Murta de Almeida

professora e pesquisadora no departamento de Filosofia da FAJE

In: Palavra e presença (site FAJE)

Imagem: pexels.com