Ao invés de nos contentarmos apenas com o que vem das ciências humanas, ou de qualquer ciência, ganharíamos todos se nos ocupássemos mais da literatura. Literatura como conhecimento. Esbarro numa passagem de Dostoievski, retirada d’ Os Irmãos Karamázov, um livro, essa é a definição de um clássico, que não tem como ser esgotado. A obra é conhecida, foi publicada nas décadas finais do século XIX e apresenta, com maestria literária apaixonada, uma discussão que, vinda de mais longe, atravessa a história espiritual do Ocidente. O desejo da suficiência humana. Diz o texto: “O homem alcançará sua grandeza imbuindo-se do espírito de uma divina e titânica altivez, e surgirá o homem-deus. Vencendo, a cada hora, com sua vontade e ciência, uma natureza já sem limites, o homem sentirá assim e a cada hora um gozo tão elevado que este lhe substituirá todas as antigas esperanças no gozo celestial.” Se o cerne da modernidade é esse desejo de um domínio absoluto, o que a Ivan Karamázov parece evidente, não é menos verdade que o nosso personagem é atormentado pela percepção de que esse projeto talvez venha a se apresentar com uma face inversa à esperada. Estamos diante de um drama histórico, com forte significado na Rússia de então, e de um problema com largo e permanente alcance metafísico.
O projeto assinalado na citação acima se torna dia a dia mais real e as esperanças depositadas nas tecnologias de alto impacto social e humano são crescentes. O sonho de um homem-deus, para usar a expressão do autor, é uma utopia bem desejada, uma esperança acalentada no silêncio dos laboratórios. Entretanto o nosso receio diante desse cenário não é menos real. Não é de modo algum evidente que os benefícios esperados do incremento de nosso poder não tragam conseqüências capazes de relativizar, e muito, a esperança depositada no desenvolvimento tecnológico. Assim, não é difícil nos reconhecermos na temática do texto e basta um pouco de atenção ao que se passa à nossa volta para aceitar que, como é costume dizer hoje, somos – ou deveríamos ser - todos Ivan Karamázov.
Tratar o problema na vivacidade e na polifonia do texto literário dá margem a uma densidade que ultrapassa de muito a limitação e a assepsia própria de textos mais próximos das normas que imperam nas ciências. Vale a pena conferir.
Ricardo Fenati
Equipe do Centro Loyola