O prometido era continuar a conversa sobre padecimento, mas como esbarrei numa oração da Etty Hillesum, que não do nosso tema, é ela que transcrevo. Data da manhã de um domingo, 12 de Julho de 1942 e está publicada no seu Diário, que cobre o período de 1941 a 1943, ano de sua morte no campo de concentração.

 

 “São tempos temerosos, meu Deus. Esta noite, pela primeira vez, passei-a deitada no escuro de olhos abertos e a arder, e muitas imagens do sofrimento humano desfilavam perante mim. Vou prometer-te uma coisa, Deus, só uma ninharia: não irei sobrecarregar o dia de hoje com igual número de preocupações com relação ao futuro, mas isso custa um certo exercício. Cada dia já tem sua conta. Vou ajudar-te, Deus, a não me abandonares, apesar de eu não poder garantir nada com antecedência. Mas torna-se cada vez mais claro o seguinte: que tu não nos podes ajudar, que nós é que temos de te ajudar, e ajudando-te, ajudamo-nos a nós próprios. E esta é a única coisa que podemos preservar nestes tempos, e também a única que importa: uma parte de ti em nós, Deus. E talvez possamos ajudar a pôr-te a descoberto nos corações atormentados dos outros. Sim, meu Deus, quanto às circunstâncias  pareces não ter lá grande influência sobre elas, é “evidente que fazem parte indissolúvel desta vida”. Também não te chamo à responsabilidade por isso; tu é que podes mais tarde chamar-nos à responsabilidade. E quase a cada batida do coração, torna-se-me isto mais nítido: que tu não nos pode ajudar, que nós devemos ajudar-te e que a morada em nós onde tu resides tem de ser defendida até às últimas.”

 

Ps. O texto está na tradução portuguesa do Diário (Assírio & Alvim, Lisboa, 2009)    

 

Ricardo Fenati

Equipe do Centro Loyola