ÓRFÃO DE ORFEU
É minha a ciência dos desertos,
este desejo de devastação.
Deito-me num leito de pedras,
ordeno ao fogo que semeie a treva,
e aguardo as águas
com sua erosão.
Como alguém que mói um trigo antigo,
ou rói, atrás da porta,
um naco de pão,
eu exerço, humildemente,
o meu ofício.
Órfão de Orfeu,
tocador de flauta sem alento,
tangedor de lira desencordoada,
voz que vai afogada no vento,
celebro a vida
e seu olvido.
Marcelo Sandmann
in Não Cicatriza
Kotter Editorial, Curitiba, 2021