Frequentemente, o deserto é cenário de histórias profundamente humanas. Talvez porque nos evoque travessias bíblicas ou se revele como lugar de provação e superação. É onde se dá a tentação e a vitória sobre ela. No deserto, a alma humana se despe de vestimentas fúteis, de ornamentos desnecessários. É lugar de jogar fora os excessos, de assumir apenas o essencial. Lugar de purificação. 

 

Há alguns dias revisitei um desses filmes que se passam no deserto, a fim de atualizar as belas impressões que havia me causado há algum tempo: Bagdá Café, dirigido pelo alemão Percy Adlon. 

 

A história é aparentemente simples: uma estrangeira chega a um lugar inóspito e traz nova vida aos moradores e ao ambiente. Contudo, o desenrolar da trama, que acontece no ritmo lento dos desertos, vai envolvendo o espectador no verdadeiro e profundo “eu” de cada personagem. O filme trata de encontros: das pessoas umas com as outras; das pessoas com elas mesmas. 

 

Todo o filme se passa em um lugarejo chamado “Bagdá”, perdido às margens de uma rodovia que corta o Deserto de Mojave, na Califórnia. Bagdá reúne um café, um hotel e um posto de gasolina, administrados por Brenda (CCH Pounder), uma mulher masculinizada pela dureza da vida. A esse lugar chega uma forasteira enigmática, Jasmin Muenchstettner (Marianne Sagebrecht), uma alemã aparentemente solitária e reservada. A história circula em torno das duas mulheres que, se num primeiro e superficial olhar se revelam opostas, aos poucos se encontram em pontos de interseção que as aproxima no profundo de suas subjetividades. 

 

Bagdá é o lugar dos encontros e desencontros entre os sete personagens que ali vivem permanente ou provisoramente: Brenda com seus dois filhos e o neto; um pintor de cenários hollywoodianos aposentado (interpretado por Jack Palance), uma mulher que faz tatuagens, um jovem que acampa no local e vive lançando bumerangues, e Jasmin. 

 

É interessante observar que a aridez do deserto e o cenário descuidado não impedem que a beleza da arte esteja presente, lutando por assegurar seu espaço. Assim, o filho de Brenda toca piano apesar dos gestos recriminatórios da mãe e o pintor, simbolicamente, desnuda com sua pintura a feminilidade e sensualidade ocultas de Jasmin. Também o lançamento de bumerangues é uma arte, uma metáfora das coisas que vão e voltam. 

 

O filme caminha e, delicadamente, é como se fossem brotando flores no árido chão do deserto. Com seu olhar atencioso e sua alma solidária, Jasmin percebe e valoriza o que há de melhor em cada um. É como mágica, e com um toque amoroso, ela reescreve o destino das pessoas e do lugar. 

 

No final – sem querer revelar o encanto e a surpresa para aqueles que ainda verão o filme -, fica a certeza de que a vida precisa de afeto e de cuidado. Precisa da arte e da magia do encontro entre as pessoas, nas interseções que a vida nos oferece. 

 

Graziela Cruz

Mestre em Cinema pela UFMG e professora de Teoria da Comunicação na Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE)