"Onde foi que eu morri? Onde me transformei?

       Onde perdi a aparência? Será que eu mesmo me

      abandonei por lá, será que por acaso me esqueci?

       Pois esse aí possui toda a feição que havia sido

                                                       minha até agora."

                                                            Plauto, III a.C.

 

Tendo eu sido indagado sobre as razões pelas quais teria eu tanto gostado deste filme, “A Substância”, compartilho alguns improvisados comentários que tenho recentemente lançado em conversas com meus próximos. Alguns destes, chocados, odiaram o filme. Daí sua para mim bem-vinda curiosidade. Indico então algumas temáticas abordadas, essenciais, no filme apresentadas de maneira simbólica e contundente, abordadas com aparentes excessos e horrores que em absoluto não me incomodaram, pois não me pareceram arbitrários e “culinários” em sua violência, pelo fato de serem adequados à atmosfera onírica, do pesadelo na personagem principal, Elisabeth Sparkle. O nome dela já é significativo, pois sparkle em inglês denota o que brilha, reluz, boa imagem de sparkle é o glitter que cintila colado à flor da pele em festas, performances, shows, ou também o aparente brilho produzido na face de uma pessoa que se altera após a ingestão de uma primeira taça de champanhe, esta mesma “borbulhante”.  

1 – o filme traz uma excelente atualização do clássico tema do “duplo”. O chamado “duplo” a princípio representa este outro em mim que estranho, que me é estrangeiro, e que, ao mesmo tempo, me é perigosamente próximo, um outro que renego e que, entretanto, me habita, persegue, assombra, que me busca em terrores noturnos, que, mesmo à luz do dia, me abisma em repentinos pânicos, e que, por isso mesmo, em comportamento autodestrutivo e suicida, posso desejar aniquilar, eliminar, se não mais o ignorar consigo. O duplo é este de quem em mim nada gosto. Desconhecido e ameaçador. Parece me possuir. Parece me desejar. E que de mim projeto nos outros para tentar me safar. Pois muitas vezes parece mais forte que eu mesmo. E que dali, desde fora, infalivelmente, retorna a mim, para tomar conta. Funda a maioria das patologias e paranoias, motor de tantos surtos psicóticos, fanatismos, fundamentalismos, teorias da conspiração. Representa o amálgama de tudo que em mim e no outro tento negar. Negação da morte na ilusão de um controle impossível.

Daí o alter ego, latim para o outro eu, the double em inglês, le double em francês, Doppelgänger em alemão, Dvoinik em russo, presente no folclore de todos povos e etnias, apresentados por exemplo como Dybbuk e Golem na tradição judaica, eventualmente presente na interação entre pares bíblicos tais como Jacó e Esaú, simbolizados como diabo e capeta entre os cristãos, muitas vezes em rituais religiosos assistidos como entidades ou demônios a serem exorcizados, expulsos dos corpos daqueles por eles possuídos. Há diversas outras designações para ele, tais como espelho, fantasma, vampiro, gêmeos, bonecos, bonecas, sósias, clones!

Para citar alguns exemplos, a figura do duplo encontra-se presente em muito da grande literatura, em Dostoievsky (O Duplo), E.T.A. Hoffmann (Homem de Areia), Guy de Maupassant (Horla), Oscar Wilde (O Retrato de Dorian Gray), Robert Louis Stevenson (O Médico e o Monstro), Daniel Defoe (Robinson Crusoé), Yoram Kaniuk (A Ressureição de Adam Stein), Romain Gary (A Dança de Gengis Cohen), Aldous Huxley (Os Demônios de Loudun), Arthur Schnitzler (Traumnovelle Novela de Um Sonho), Heinrich Heine (poema Der Doppelgänger), Jorge Luís Borges (em seus contos  e poemas), Edgar Allan Poe (em diversos contos além de seu William Wilson), Guimarães Rosa (Grande Sertão: Veredas; O espelho), Samuel Beckett (Ossos de Eco; “Film"), Stefan Heym (Ahasver), Isaac Bashevis Singer (em contos e novelas, além de seu Golem), recorrente nos best-sellers de Stephen King, eu diria que é sempre matéria substancial nas grandes tragicomédias gregas e romanas, e, last but not least, por último, mas não menos importante, não deixemos de citar o Gilgámesh, Ele que o abismo viu, poema épico da Mesopotâmia, que é o mais antigo registro literário que conhecemos, de mais de quatro mil anos atrás.

Não podemos deixar de mencionar a forte presença implícita e explícita dos temas do duplo também na grande música de todos tempos, em Schubert, Tchaikovsky, Mahler, Schoenberg, Berg, Schumann, para citar alguns poucos dentre muitos outros.  

No bom cinema o duplo é tratado, entre tantos outros, em filmes tais como O estudante de Praga de Hans Heinz Ewers (1913), O Gabinete do Dr. Caligari de Robert Wiene (1920), O Inquilino de Roman Polanski (1976), de Polanski também seu Repulsa Ao Sexo (1965), O Iluminado de Stanley Kubrik (1980), Youth Without Youth, Velha Juventude, de Francis Ford Coppola (2007), A Hora do Lobo de Ingmar Bergman (1968), The Man in the Glass Booth, O Homem na Jaula de Vidro, de Arthur Hiller (1975), A Ilha do Medo de Martin Scorsese (2010), Fragmentado de Night Shyamalan (2016), Cisne Negro de Darren Aronofsky (2010), Man Friday de Jack Gold (1975), Náufrago de Robert Zemeckis (2000), After the Fox, O Fino da Vigarice, de Neil Simon e Vittorio de  Sica (1966), O Pequeno Diabo (1988), Johnny Stecchino (1991), O monstro (1994), três títulos de Roberto Benigni, O Professor Aloprado (versão comédia de O Médico e o Monstro realizada por Jerry Lewis em 1963); acrescentemos a esta pequena lista o recente Barbie, de Greta Gerwig e Noah Baumbach (2023). Além disso, o duplo, o lado monstro-outro que hospedo, principalmente quando da ordem do estranho e do maligno, sua representação está inevitavelmente presente em quase tudo o que a cultura popular nos ofereceu e oferece. Citemos de passagem O Alien de James Cameron (1986), nele o duplo (alien significa o estranho, o estrangeiro, daí o termo alienígena, daí o conceito de alienação) parece vir do espaço sideral para nos invadir e devorar por dentro, visceralmente, para em seguida nos explodir de dentro para fora. Interessante e muito revelador ainda o célebre clássico de terror de 1956, Body Snatchers, de Don Siegel, Vampiros das Almas. Inclusive esta película passou por quatro bem justificados remakes ao longo das décadas seguintes.

Do vasto universo das revistas em quadrinhos, lembremo-nos da indispensável vida dupla de nossos super-heróis, com seus superpoderes, do Super-Homem ao Homem Aranha, passando por Hulk e Batman, portadores estes últimos de tons mais ambíguos e sinistros. Levados quase todos às telas de cinema. Não posso aqui deixar de lembrar o delicioso e inesquecível Lucky Luke, sempre acompanhado de seu alter ego, desenhado como um inteligente e zombeteiro cavalo branco, Jolly Jumper.    

Já que concerne a tudo que nos é inconsciente, ao que nomeamos como Inconsciente, esta figura é investigada e interpretada a fundo pela Psicologia e principalmente na Psicanálise, em Sigmund Freud ao longo de sua obra, já anteriormente problematizada por Otto Rank em 1914 como a experiência do duplo especular em psicoses (1). Muito explicitada na psiquiatria psicanalítica de Ronald Laing, por exemplo em seu The Self and the Others, O Si-Mesmo e os Outros.  Em Gustav Jung a questão é nomeada como nosso lado sombra. A profunda investigação realizada por estes geniais detetives dos mistérios da alma humana tem demonstrado a associação do tema do duplo ao narcisismo (2). A figura do duplo pode tanto adquirir uma função protetora (como mecanismo defensivo) quanto assumir um caráter persecutório no que se chama de retorno do recalcado. Duplos podem passar, portanto, de amistosos guardiões (por exemplo, o amigo imaginário, o interlocutor interno), a implacáveis perseguidores do sujeito (em manias e obsessões, surtos e paranoias). Segundo Jacques Lacan, teria sido Plauto (citado no cabeçalho acima) o primeiro a nomear o duplo, o sósia, em sua comédia O Anfitrião na metade do século III a.C..

Onde não estaria presente esta temática já que se trata do homem/mulher às voltas com a essencial constituição de seu Eu, com o reconhecimento de seu verdadeiro Self, nesta desafiadora tarefa de vida que Nietzsche declarou como "werden was man ist", “tornar-se o que se é”? Sugere-nos também o poeta Novalis, no final do século XVIII: “Pois nenhuma pessoa se conhece enquanto só for ela mesma e não simultaneamente também uma outra”. 

Belo dia, me diz uma aluna: “Professor, descobri que sou uma, apesar de ser muitas!”. Maravilhosa percepção. Elisabeth, a personagem, sempre foi uma só, mesmo tendo se desdobrado em duas, em muitas. A integração dos muitos aspectos que nos compõem e nos quais devemos nos re-conhecer é este autoconhecimento ao qual Nietzsche e Novalis se referem acima. Por implicar em corajoso confronto consigo mesmo, em autêntica batalha interna, pode ser processo por vezes extremamente doloroso, mas do qual brota o milagre da verdadeira satisfação, da genuína alegria na superação das incansáveis dissociações que usualmente cultivamos.

2- A duplicação de Elisabeth é produzida pela aplicação da injeção da “substância”, parto a partir de suas costas, de sua medula, no que poderíamos chamar de parto artificial. Este não o parto natural que faz nascer, que nos faz renascer, da primordial separação biológica que nos permite reiniciarmos a vida sob outro prisma, com o consentimento em abandonarmos e “morrermos” um estado anterior, mas um parto artificial que serve à dissociação, à esquizo-ruptura, à fragmentação, à alienação de si para com si-outro. Ao longo da vida, devemos passar por vários partos. Senão, morremos, mesmo que “vivos”. No real parto, na bela partida, partimos para nos associarmos melhor, para nos dirigirmos à vida, enquanto o pseudo-parto reparte em dois a ‘matriz’, a mãe original, dificultando o reencontro, a reintegração, o autoconhecimento, estimulando à destrutividade, à intolerância, à violência contra si e contra o próximo. No filme, estando em andamento a fragmentadora dissociação, um lado vampiriza o outro, o que deixaria conde Drácula morrendo de inveja, pois com o dente-agulha, um “morde”, isto é, pica e injeta noutro substância artificial, com eficiência, para às ocultas de seu inerte duplo sugar o que ainda sobra de energia vital. Como simulacro das trocas, como fake de autênticas trocas e intercâmbios, este procedimento “médico” semanal jamais poderia dar certo. A publicidade da substância “milagrosa” mente, ela é propaganda enganosa, por isso o autor do anúncio, sem fabricante declarado, nem se apresenta, não se identifica, não se responsabiliza. Com este traiçoeiro “remédio”, ou melhor, com a astuta picada da “droga”, da promessa de serpente do vício, mais dia menos dia, do cliente um lado caçará e apagará o outro. Necessariamente. Apesar da prescrição, munida de bula aparentemente cuidadosa, os lados aniquilam-se mutuamente. Euforia, mania, depressão, auto-rejeição, perseguição, tentativas de supressão, infelicidades se alternam. Aqui os aspectos não convivem entre si, não aprendem um com o outro, vivem em regime de mutual destruição, em medo e terror crescente.

O duplo de Elisabeth atende pelo nome de Sue, em inglês to sue significa processar, indiciar, levar à justiça. Portanto, Sue processa Elisabeth, ao mesmo tempo Elisabeth processa Sue. Em processo, a atuação das duas que são uma se faz autuação ritual, judicial, exposição pública. Na apoteose final, no colapso de si, ápice da dissociação, com o fracasso reparatório, as duas-uma se dão a conhecer como Elisasue, em autêntico clima de tragicomédia grega ofertam-se ao público em um ritual de sacrifício que se encena show televisivo. Expõe-se o que de si negou e não admitiu: sentir-se monstro por dentro.

Negado, o “monstro” não tarda a aparecer. Desde sempre Elisabeth se esforçara em fazer-se bela pela inquietante sensação de uma anomalia e de uma insuficiência interna que a levava a se auto desprezar. A deformação da autoimagem inconsciente de Elisabeth já está presente anteriormente, inclusive no auge de seu “sucesso”, na alienação de si. No momento da catástrofe, surpresa, a plateia oscila entre choque e riso, o espectador assustado, presa de seu desejo mimético, não sabe se deve rir ou não. A verdade é de-monstrada. O público se vê no espelho. Não é o público responsável por seus monstros?

Elisasue se apresenta ali como um amontoado de pedaços de si, retalhos e deslocamentos sobrepostos não se integram em uma figura unificada, coerente. Pois corpo nenhum pode ser soma de parcialidades (3).

O tênue vestido e a fina película da fotografia, da imagem, da simulada aparência, não bastam mais para disfarçar, cobrir, “vestir” o que Elisabeth sente deste seu frágil e assombrado lado obscuro, que agora de si para fora aflora. Descoberto o monstro enfim. É por este motivo mesmo que, açulada pelos produtores, tanto pelejou e “malhou” ao longo das décadas, em frente às câmeras, tentando ser a mais bela e a mais bem sucedida de todas, afim de de-monstrar o monstro, provar-se assim aceita e amada por todos. Contudo, totalmente a sós em meio à multidão invisível, sua solidão é abissal, atroz, dolorosa. Ela não se ama.

Aliás, ela não se ama já há muito, inda que se auto-engane, na verdade não se sente nada amada, por ninguém, pois a audiência não a ama para além da oferta, em imagem, de seus apetitosos, promíscuos pedaços de corpo. Elisabeth sempre suspeitou que um dia terminaria sendo levada ao altar para um sacrifício celebrado por seus fiéis adoradores, em carnificina. Oficina da carne. A quem poderia ela assim amar?

Onde se encontra o parceiro de Elisabeth, onde está seu marido, seu namorado, seu amor, sua amada fera? Não deve existir porque ela é a “namoradinha” ideal (e virtual) de todos ao mesmo tempo. Ela, como um (a) Narciso(a) ferido (a), ao reencontrar na rua o simpático ex-colega de escola que tímida- e sinceramente a vê e preza tal como ela é, desde sempre e também agora, oferecendo-se a chance de encontro, não se encoraja a se aproximar daquilo que desponta em um horizonte real. Seu duplo Sue da mesma forma não pode consentir na “paquera” do vizinho extasiado com a “perfeição” que ela sabe mentira. Não pode revelar o monstro que (se) esconde. Ali uma face esconde a outra. No sentimento de feiura e monstruosidade, de autodepreciação, na inconsciente deformação de sua autoimagem, se vê refém da câmera global, da aprovação estatística da audiência, dos tiranos likes. Seu pior pesadelo íntimo corre assim o risco de um dia se expor aos olhos e bocas de um público voraz, cruel, glutão, impiedoso. Ela sabe disso. Um inferno o paraíso produzido.

O que de fato leva inexoravelmente à feroz batalha final dos duplos entre si, da qual só resta a fotografia e o vestido pendurados na colagem do “monstro” resultante, Elisasue, portando vagas películas a cobrirem caóticas e involuntárias deformações de si, a queda dos dentes, o corpo retalhado, fragmentado, repartido, desenganado. Elisasue insiste em prosseguir, mesmo assim e até o fim, arrastando-se ao palco para, em prol do sucesso definitivo, ser consumida, aliás, “devorada” pelo público investidor que a tem como objeto de desejo (culinário) e fonte de lucro (libidinal e monetário). O auditório se faz cego à realidade de sua vítima, não se dá conta do horror que ocasiona. Nenhuma piedade. Um coletivo pode tantas vezes se mostrar déspota cruel e sanguinário, não muito diferente da ávida assistência popular em linchamentos e execuções em praça pública, nos shows da Inquisição medieval, para dar um breve exemplo (4).

Estraçalhada e depenada, quem irá depois velar por sua perdida alma? Onde será enterrada? Quem terá compaixão pelo monstro que se revela na de-monstração de seus eus sobrepostos, descosturados, caóticos, dissociados? Por certo não este público (somos todos nós) que antes a admirou e consumiu, que devorou suas partes, público que se perpetrou ele mesmo, por sua vez, dominador duplo de Elisabeth, de Sue. Elisabeth-Sue, ídolo de dupla face, como objeto de vinculações narcisistas, é, por sua vez, assim precisamos dizer, duplo dos espectadores que em espelho nela se refletem. E assim, repentinamente, passou de ídolo adorado a anjo exterminador. Na parte final, no terceiro ato, na catástrofe, como em um fogo devorador, os indiscriminados esguichos de sangue lançados sobre a audiência pintam a vingança de Elisasue sobre o coletivo, retaliação sobre este mundo anônimo que a deforma e depreda, que dela se deleita e abusa em rito sacrificial. A vítima diz não! ao impune sacrifício da primavera (5).  

Em palavras mais rudes e grosseiras:  a merda que produzimos, mais dia menos dia, volta sobre nossas cabeças.

3 - Eis antiga anedota do repertório iídiche, levemente ajustada por mim ao assunto em pauta: uma simpática moça deseja confeccionar um belo vestido para participar de um casamento para a qual foi convidada. Depois de comprar glamouroso tecido em vermelho, vai procurar uma costureira super recomendada por suas amigas. Esta lhe tira então todas as medidas necessárias para aprontar o modelo do vestido e depois confeccioná-lo.

Depois de muitas semanas de espera, finalmente pronto, de retorno na costureira, vai finalmente poder experimentar o belíssimo vestido, em seu atraente e sedutor vermelho. Muito ansiosa e orgulhosa, veste-o, porém, nota um aperto e um grande desconforto no ombro direito, causado pelo vestido, e reclama com a Sra. Costureira. Esta lhe responde que isto não é problema algum, é de fácil solução, basta encolher o ombro e levantá-lo em direção à orelha. Mantenha assim. Viu como ficou bom o caimento? Mas, minha Sra., agora meu pescoço: ficou deslocado! Nenhum problema, basta torcê-lo e entortá-lo para a esquerda, incline bem o queixo para a direita, feche o olho esquerdo. Mantenha a posição. Excelente o caimento, belo vestido. Mas, minha Sra., meu peito comprimiu-se, as costelas estão doendo, minhas costas sofrem! Nenhum problema, basta afundá-lo para dentro mais um pouco, estreite as costas, e, mais simples ainda, procure não respirar, assim o vestido não estoura. Mas, minha Sra., minha barriga dói, minha pelve e quadris involuntariamente se contraem e desviam! Nenhum problema, estufe o ventre, empurre para frente e da direita para a esquerda a região sacrolombar! Fique aí. Lindo vestido. Mas, minha Sra., não consigo mais mover a perna direita! Nenhum problema, só ande dando saltinhos com a perna esquerda. Aliás, seus saltos altos combinaram muito bem com o vermelho. É isso aí. Excelente caimento.

Enfim, ansiosa em estrear o vestido em vermelho, ensaiando a dama em vermelho com a qual desde sempre sonhou, sai pelas ruas com ele.

Entretanto, depois de se arrastar por muitos quarteirões devido às impostas posturas de adaptação exigida, muito ofegante, a saltitar toda torcida, contorcida, retorcida, passa a não mais aguentar o esforço, não mais suporta o sofrimento causado pelo novo traje. Insuportável a dor e o cansaço. Ultrajante. Cresce nela o asco de si, cresce nela a repulsa à acomodação, à sujeição, retroativamente enoja-se de sua servil obediência aos vesgos padrões de medida da grande “Costureira”.

Sente-se monstro, começa a odiar o lindo vestido que tão bem lhe cai sobre um agora falso e deformado corpo-si. Então ouve um “psiu, psiu”, vindo do outro lado da rua. Um apelo, um chamado. O som provém de uma moça que, muito excitada, correndo atravessa a rua para falar com ela. Exclama, com muita admiração:

– “Mas que lindo vestido! Onde comprou?”.

– “Não comprei, mandei fazer.”

- “Onde? Com quem? Pode me passar o contato da costureira?”

- “Não quero lhe passar. Ela é a pior costureira do mundo!”

- “Mas como poderia ser ela a pior costureira? Se conseguiu vestir um monstro como você, com este lindo vestido que tão perfeito lhe cai, então esta costureira só pode ser um gênio!”         

4 - Fiquei agradavelmente surpreso ao ver o filme abordar uma das mais populares falácias da cultura narcisista atual: “seja sua melhor versão”. Tenho conversado e refletido sobre esta desde que a vi pela primeira vez, há alguns poucos anos, soletrada na fachada de conhecida clínica, encabeçando diversas ofertas de tratamento. Obviamente derivado do marketing em torno da saúde e da beleza promocional, o dito costuma ser citado e estimado até mesmo por indivíduos mais esclarecidos, sem que passe por devida e necessária reflexão. Confesso que na ocasião não pude deixar de gargalhar, ali mesmo, na rua, ao ler esta convocação para uma “mudança” de um mim atual, que considero indesejável, para um mim supostamente melhor, que eu sonho mais desejável. Mudança que se sugere equivaler a uma simples permuta de “versão”, de personagem, de roupa, de vestido. Trocar de “vestido” seria então um investimento substancial, lucrativo.

Mas como poderia você ser outro (a) que não fosse, ao mesmo tempo, você mesmo (a)? Seria o Self, isto é, teu Si-mesmo (yourself) em inglês, das Selbst em alemão, Le Moi em francês, Atzmi em hebraico, o mistério deste Mesmo em nós mesmos, seria este então pura ilusão, produto derivado de prévia “versão”? Duplicata de outra duplicata? Quem então se definiria “duplo” de quem? Nesta estória, quem seria o “bom” e quem seria este “mau” em mim? Posso eu de fato performar a mim mesmo? Quem é este outro ali? Quem é aquele ali que performa e produz o acting out de um pretenso e teatral mim mesmo?

Quantos narcisos meus existem por aí, espalhados, desorientados, perdidos em incontáveis telas e ambientes hostis que se dizem amigáveis? Algum dentre eles poderia se jurar eu original? Não somos nós todos estes ao mesmo tempo, entremeados por este Mesmo que nos habita? Como, com todos os diabos, poderia eu querer buscar uma “melhor versão” de mim mesmo ao me reconhecer já sendo quem sou, que já fui, que ainda serei?

“Versão”, aqui entre nós: produção e desdobramento artificial de um ainda incógnito Self.

Trocando de “roupa” regularmente, investindo na aparência e na minha melhor (des) aparição, qual a garantia de que serei ainda amado(a)? Garanto fama e adoração por quanto tempo a mais? Permanece-me a dúvida atroz: terei sido eu anteriormente amado (a) pelo que realmente sou, ou amado (a) pelo que pretendia, fingia ser?

Não poderia ocorrer então não mais me sentir à altura da versão que a hodierna moda reiteradamente me dita como ideal? Lembremo-nos da anedota acima: não fazendo jus à “beleza” do vestido ao qual procuro me incorporar, adaptar, acho que não o mereço, sou “monstro” sem ele. Uma aberração. Faço-me então não uno, mas “duplo” do vestido que disfarça a anomalia, a inadaptação aos padrões e estereótipos vigentes, eis minha feiura. Mereço o sofrimento. Entretanto, a singular e verdadeira beleza é esta diferença que me define, que me proporciona identidade, única e inigualável, mas que, considerada imprópria aos artifícios vigentes, ao padrão-patrão em vigor, ao chefe em exercício, pode ser insinuada e até mesmo declarada monstruosidade, abnormidade,  à qual, como alternativa, só restaria a alternativa de abortá-la e investir em uma “versão melhor”. A simpática (certamente bela) moça de nossa piada acima simplesmente deixou de dizer um sonoro e resistente não! às infundidas regras e medidas da (ela mesma também já deformada) Costureira imperial (6). Por que será que não disse? Por que não resistiu? A pessoa já acreditava provavelmente na própria condição de monstro, por isso mesmo acatou as autoritárias imposições da versão imperatriz.

5 - Da subserviência a esta ordem de imposições não assimilamos posturas, e sim mimetizamos imposturas

O duplo de Elisabeth é Sue, mais jovem e bonita, desejável, em seguida, Sue se vê duplo de Elisabeth, mais feia e velha, decrépita. Irrompe daí a barbárie da constrangedora guerra entre as duas que são uma, em uma avalanche de reatividades desencadeadas. Autêntica orgia de autodestruição mútua. Em segredo, na mesma pessoa. E com os outros. Ao invés de amigável coalizão, colisão total.

Mas, em meio à solidão, ao isolamento, as supostas “versões” se angustiam e calam a pergunta: onde procurar e como encontrar a matriz, a mãe de todas as versões, eu-versões, invenções? Onde minha fada madrinha? Na era das reproduções artificiais, Matriz é Má atriz. Também Matrix. Agência central de controle. Porém, na busca de Si, na busca por um Autor, a persona se depara com uma indecisa e insegura, autodestrutiva mãe sem Mãe.

No brilhante roteiro do filme o sempre anônimo fabricante da substância, da droga, do vício, este mesmo alerta: “vocês duas são a mesma pessoa!”. Sue não só é sósia, irmã, gêmea, clone, réplica-boneca de Elisabeth, mas também a “filha” que com a agulha vem injetar-se e mamar da “mãe” em coma, semimorta em vida. E vice-versa. No quarto escuro, em alternância periódica semanal, amarradas em viciada dependência, a filha precisa esconder a mãe enquanto a mãe esconde esta filha que é ela mesma. Sue, a figura filial que no filme se desdobra da medula matriz como duplo mais desejável, sua “versão melhor”, a partir da injeção da substância que a tornaria mais jovem e bela, ela representa a ilusória pós-imagem de um falso self deficitário que se coloca a serviço de uma cruel indústria de entretenimento, mais uma vez entregue às invisíveis engrenagens da Sociedade do Espetáculo (segundo a designação de Guy Debord em 1967), sociedade em que tudo se quer mercadoria, produto para consumo, sociedade em que todo produto se quer espetáculo.

6 - Não é órfão de pai e mãe o sujeito contemporâneo, não é também órfão de si próprio, de seu indivisível, único e irreproduzível self, órfão de sua potencial individualidade? Asilado, isolado, exilado, vive na penúria espiritual.

Não seria o próprio Si-mesmo, o verdadeiro self enfim temido e estranhado como insondável Outro? Um dos grandes títulos do século XX é o romance Der Mann ohne Eigenschaften, de Robert Musil, publicado entre 1930 e 1943, título que pode ser traduzido como O Homem Sem Propriedades ou O Homem Sem Qualidades. Extraordinária descrição do homem/mulher superficial, sem dimensões, sem horizontes, perdido (a) de si mesmo e do outro. Sem si: insensível; sem outro: alterado.

Para tantos influentes autores da modernidade tardia, filósofos, psicanalistas, sociólogos, neurologistas,  neurocientistas, o Eu não existe, é considerado só construção e mecanismo, por isso tratado como ilusão, ficção, versão. A estes o filósofo Jacob Rogozinski, em Le moi et la Chair, O Eu-mesmo e a Carne, deu a alcunha de “egocidas”, homicidas do Eu.

7 - Note que o vestido é uma das principais metáforas do filme em questão. Vestir, ou seja, in-vestir-se em uma fabricada “versão” de si, isto corresponde, em termos mais antigos, ao ato de fingir, pretender, mascarar, maquiar, simular, dissimular, esconder, assimilar-se, procurar semelhança cobrindo-se de uma película, quer dizer, de uma pequena pele, fina e frágil, sujeita às intempéries e aos caprichos do tempo. Em outras palavras, efêmeras “versões” de si, assim como peles, cascas, casulos, couraças, armaduras, roupagens diversas, elas cuidam da mimese do humano em seu ambiente, ditada no tempo de Cronos. O investido se ilude protegido da morte incurável.

O próprio filme é também película na projeção de fotos e imagens que nos fazem sonhar. Por outro lado, como brutal e devorador patrão, deus Cronos projeta e comanda a moda, ou seja, o padrão do momento, e estabelece que o prazo entre a nova “versão” e a “versão” original seja limitado. Só pode durar um determinado período cada versão, cada roupa, cada disfarce, cada máscara, cada sucesso em cartaz. Versões se compram e vendem em série, à maneira da mais nova versão do carro, do iPhone, da vestimenta preferida. Obedeça à cronologia para não “se foder”, “se ferrar”. Senão o “tempo” promete “castrar”, eliminar teu belo e desejado corpo, castigá-lo com doenças crônicas, adiantar a decrepitude. Ultrapassado o prazo que lhe cabe, teu corpo deixará de ser desejado e amado. Torna-se obsoleto. Indesejável.    

No pain, no gain: "corpo" é (mal) tratado como “vestido”, e o “vestido” como “corpo”, no duelo entre aparência e aparência, entre versão e versão, no duelo com os duplos de si e dos duplos entre si, o corpo-vestido-corpo é investido-fingido como objeto fálico, fabricado, “malhado”, endurecido, “sarado”, sofrido, a simular potência, a dissimular impotência, a encobrir a precariedade e a insegurança de uma alma eclipsada, que se experimenta ela mesma película vulnerável, despida de afeto e conexão, desprezada, frágil, esquecida, perdida na solidão do exílio, na ausência de si, na dor da falta de real Outro.

Adeus ao corpo: a última versão de corpo, simulacro de corpo, performance de corpo, corpo artificial, este se submete a ser rejeitado e descartado, arbitrariamente, a qualquer momento, e, para consolar (!!!), comercializam-se drogas, aditivos, vícios, substâncias lícitas e ilícitas que mascaram a falta de Substância em uma ilusão de vida produzida e simulada. No fake de si, na falta de matéria, nos excessos desta falta, nada alivia as dores do vácuo, do esvaziamento de conteúdo e sentido, do buraco dentro de si.

Demanda esforço inumano tentar manter o figurino de um ilusório prumo, de uma ereção simulada, mas não adianta, a verdade sempre (dis) torce a pretensão, de-monstrada é a verdade que se esconde, inevitavelmente, ela vem à tona, pode até parecer tardar, mas vem a nós finalmente.

Nos ruidosos afãs da academia da moda, o “corpo” (ausente) deve ser montado/fabricado como uma peça de roupa suficientemente forte, encouraçada e convincente, para com segurança poder exercer seu esforço mimético em prol da versão que se planeja. Eis uma desonra. Uma desonra à concretude de um real, à potencialidade de um corpo possível.

Leia-se o rótulo: tendo o corpo se tornado produto, mercadoria, sonho de consumo, possui prazo de validade, após a data final, favor descartar, jogar no lixo. Elisabeth perdeu validade, ultrapassado o prazo, declarada velha e menos bela, obsoleta, despenca seu valor de mercado, os investidores precisam de “carne” nova e mais fresca para aumentarem a margem de lucro. Elisabeth, despedida, sente-se “um lixo”, odeia-se, deprime-se, só deseja morrer. Consumida, sugada de si, nada mais é. Descartada. Abandonada. Cancelada. Bloqueada. Excluída. Calada. Monstro.

8 – Demitida, despedida, se vê despida. Despedida do sucesso capital, da fama, se vê de repente despida frente à vida, despida da luz de si mesma, se vê obscura e sem brilho, não vê a luz original que nela brilha. Despida de si, deprime-se. Já não pode sparkle, brilhar nas câmeras e purpurinas do espetáculo. 

Em frente ao espelho, em desespero, Elisabeth, em uma das cenas mais fortes e marcantes do filme: após ter decidido ligar para o ex-colega de escola (este se espanta, ele por instantes fica mudo ao telefone), que, aliás, parece enxergar nela sua verdadeira luz, ela, na perspectiva de um encontro real, na possibilidade de ser amada pelo que real- e originalmente é, não consegue finalizar seu make-up, debate-se no insolúvel, agride-se, quer destruir e desmanchar o que (não) vê de si. Não reencontra seu brilho, sua nudez original.

Em suplício, poderia passar horas, uma eternidade, em frente ao espelho caseiro, sem encontrar solução satisfatória. No espelho sempre o insuficiente, o insatisfatório. Está à procura de um símile inexistente, despida-despedida, não reencontra um corpo-pele capaz de ser revestido, retocado, sente-se expulsa e repulsiva, entra em cruel confronto com uma deformada autoimagem inconsciente que não mais parece se deixar conformar, reformar, maquiar, esconder, e, como hoje se diz, “personalizar”.

Não vai ao encontro do rapaz, não consegue escapar da ilusão especular. Vai em seguida se empanturrar com comida, no vício da comilança compensar a ressentida ausência de Si real, tentar preencher este aparente nada de si. Não consegue tampar o buraco e o desprezo. A violência aumenta.

Despida, exposta ao temível monstro interno, entretanto e em paradoxo, não está ciente, não recorda a nudez original, debate-se porque, enquanto da contenda das “versões” em conflito, o vestido parece “trair” o corpo, o corpo parece “trair” o vestido. Em hebraico, a palavra “vestimenta” (בגד, begued), pode ser lida também como “traidor” (בוגד, bogued). Como vestir, maquiar, retocar o que não mais consegue ficar nu, isto é, reconhecer-se e suportar-se em estado de nudez? Seria possível consciência da própria nudez sem presença real, isto é, presença frente a si mesmo (a) e a um real Outro?

Portanto, não basta tirar a roupa para estar nu. Tratado como “vestido”, um corpo que se despe não mais se depara com nudez. Conhecemos uma nudez simulada que é a da pornografia, do show, do reality, por exemplo. Quando compulsória, a intimidade exposta dissimula o verdadeiro íntimo. Da mesma forma, não basta confessar para se dizer a verdade, quase nada do corpo e da alma voluntariamente se revela em confessionário público ou privado (7).

Tão invadido e abusado, o corpo humano não mais parece ser capaz de abrigar o que nos é íntimo e inexpugnável. Talvez daí também a explicação para se desejar encapá-lo, grampeá-lo, adorná-lo com incansáveis tatuagens, piercings, simuladas algemas e películas, modernas e auto-infringidas marcas de Caim, já que a roupa não mais veste nudez verossímil. Nenhuma pessoa parece poder estar realmente nua debaixo de suas vestes e aparições.

No mundo do espetáculo explicitado em “Substância”, nobody (“ninguém” em inglês: no body, nenhum corpo) está nu de verdade, nele o corpo performático se in-veste de nudez adulterada. Este corpo vira “carne” exposta, crua, portanto, sem nudez. Carne e não corpo. Crua e não nua. Pendurada em um açougue, não faria sentido dizer que a carne a ser consumida estaria “nua”.

As imagens do espetáculo, do show, da performance, do moderno culto, não exatamente sexualizam corpos, ao contrário, de maneira eficiente seduzem-nos à dessexualização gradual e efetiva de “corpos” ofertados como objetos parcializados, fragmentados, retalhados, expostos, crus, adulterados, violentados.

Lembre-se do chefe de Elisabeth, à maneira de um deus de Goya (8), em close-up de boca e vítima, ao devorar seu crustáceo enquanto a demite (ela mesma sempre foi seu “crustáceo” também, abocanhada crua, assim toda sua clientela, o chefe ele mesmo é “cru-crustáceo” de seus superiores), vide a infame empresa da “substância”: aqui “consumo” equivale a devoração, autofágica inclusive, como o filme-película tão bem mostra e demonstra. Não só devorar, mas aceitar ser devorado (a) em parcelas cruas. Com a “substância” artificial, substância para a falta de substância, através da injeção milagrosa, do parto artificial, Elisabeth “matriz” coloca sua “versão melhor”, sua réplica mais jovem, pelo duplo que dela se desdobra, mais uma vez à mercê do público voyeur. A assistência “devora” sua imagem-Sue, reeditada e reprocessada. O público é devorador de imagens, mas passa fome, pois imagem sozinha não nutre, só vicia. E um dia paga-se o preço embutido. Esta espécie de imagem pode ser definida aqui como uma promiscuidade sem riscos, com o crédito de uma falsa distância do outro e de si mesmo.

No palco-altar, a bela (o belo) se auto-consome no empenho mimético em prol de obscuro e voraz desejo alheio, isto é, aliena-se na alienação do outro.

9 - Recuemos um pouco para avançarmos nossas (atrevidas) hipóteses. Adão e Eva, que eram Dois, foram criados a partir de Um Só que foi Adão Original. O Adam Kadmon, este era originalmente  Dois em Um, andrógino (?), homem-mulher, mulher-homem, solitário e sem Outro, ainda sem se conhecer, coitado, ainda sem as dores e angústias do parto e do casamento. Deus-Elohim se deu conta de que alguma coisa devia estar errada ao presenciar a solidão de seu criado Adão, viu espelhada nele, quem sabe, Sua própria solidão, decidiu então seguir outras estratégias criativas. Formou então Dois deste Um, chamados de Adão e Eva, nossos primevos pais. Primeiro parto. Mais tarde, conforme narrado no Gênesis (de 2:22 a 3:20), encontrando-se no Jardim do Éden, persuadidos pela ardilosa serpente (original), comem da árvore do conhecimento, transgredindo a proibição de jamais dela desfrutar. Só então tomam conhecimento de que estavam nus, não sabiam disso antes, envergonham-se, e logo se cobrem com folhas confeccionadas à pressa. Depois de repreendidos pelo ato, vieram em seguida as “peles”, concedidas por Adonai-Elohim. Foram vestidos por Ele, bom observar. Terá sido Ele o primeiro grande Costureiro?

Essencial notar que Adão e Eva, antes da transgressão, se encontravam vestidos de luz (אור, Or), após o sublime ato de desobediência, foram revestidos de pele (עור, Or). Luz e pele se pronunciam de maneira idêntica em hebraico. Ademais, “nu” ( ערום, arum) e o “ardil” (ערמומי, armumi) da serpente original, são palavras correlatas em suas raízes, nelas se encontram a palavra “pele” (עור, Or) (9).

O que teria sido a nudez destas primeiras criaturas das quais descendemos? Teriam sido, a princípio, seres incorpóreos e luminosos que, após a bem arquitetada desobediência mediada pela serpente, ganhando peles e túnicas, se incorporaram ao mundo para que possam finalmente vir a crescer e amadurecer, se multiplicar inclusive, tornarem-se assim dignos mortais? Ao adquirirem conhecimento do bem e do mal, consciência de si próprios talvez, rumo à maturidade, teriam então transitado de infantil inocência a uma vergonha legítima? 

Penso que, claro, sob a condição de mínima presença de Self, a chamada vergonha não derivaria puramente de embaraçoso desnudamento físico, e sim, sobretudo, de uma original nudez d’alma, sentida por exemplo quando da mentira e do desvio de si. Haveria sentimento de vergonha sem a possibilidade de fragilidade, de autêntica e reconhecida vulnerabilidade? Honestos e autênticos facilmente se envergonham (10). Note que um enlouquecido, fora de si, porém, tão mais adorável que um falso honesto, isto é, um honesto simulado, um canalha dissimulado, frequentemente deambula sem roupa pelos corredores de um hospício, de uma clínica psiquiátrica, sem se dar conta de sua nudez corporal. Sobretudo se devastadoramente medicado.

Não temos andado por aí meio que sem-vergonha, sem qualquer vestígio de pudor e constrangimento? Aferrados à versão do momento, não perderíamos toda vergonha ao abandonarmos a conexão com nosso próprio e verdadeiro Eu? O que, aliás, em absoluto, não parece ser o caso de Elisabeth, pois ela realmente ainda se envergonha em frente ao espelho, embora dali não consiga se desvencilhar e se achar. Ela sofre. Está em processo. Sua ilusão está prestes a desmoronar. Dolorosamente. Definitivamente.

Hipótese a ser debatida: há eventual sentimento de vergonha onde há ameaça de verdade frente a um Outro, frente à consciência de um Si que não mais se esconde, que não mais se esconder consegue.

Hoje em dia, tornou-se fato extremamente raro vermos bochechas ruborizadas, coradas, no caso de um indivíduo ser flagrado em franco delito, em mentira deslavada, em desonestidade escancarada, em ato corrupto, em rede social. Poderíamos dizer que, atualmente, a mentira tornou-se fardagem oficial da ausência de nudez em indivíduos completamente despidos-despedidos de si. Mesmo que em julgamento, a mentira, o engano, o fake, a calúnia, a falsidade, o descaramento, tentam encobrir/vestir comportamento alienado, antissocial, seguidor de modelo psicopata admirado e difundido. Um tirano, um perverso, um pobre onipotente não irá espontaneamente sair de sua armadura, da couraça de suas mentiras, para não correr o risco de se envergonhar, de demonstrar a podridão que nele passou a morar. Caso possa isso vir a acontecer, preferirá seguramente a ameaça de se matar, e, para adiar o homicídio de si, irá talvez antes mais uma vez tentar encenar uma nova versão, um outro personagem, surfar em um delírio conseguinte, reiterar sua psicose preferida.  

10 - Em outras palavras, em aparente paradoxo, precisamos sim de véus, roupagens, cascas, peles, isto é, de boas e conscientes contenções d’alma para nos revelarmos em verdadeira nudez original. Para nos reconhecermos. Precisamos de roupa para nos comunicarmos e expressarmos. O véu revela melhor. A revelação é sempre velada. Biblicamente falando, a boa vergonha se revela onde pela verdade se vela.

Dito da maneira mais “pagã” e singela possível, fornecendo exemplo: o biquíni, mesmo que sumário, deixa mais nu e belo o corpo da beldade de Ipanema (11), deixa mais íntimo o que não deve deixar de ser íntimo. O que podemos vestir e depois despir, e vice-versa, parece nos atrair e encantar mais. Instintivamente confiamos mais no que se mostra capaz de se velar, de se resguardar, de se proteger. Deve ser por isso que uma praia de nudismo não faz tanto sucesso assim. Ali a transgressão parece perder todo seu charme, a beleza todo seu encanto e lembrança.

Lembremo-nos também que mesmo ao corpo de um (a) falecido (a), de um querido ente que parte, que nos deixa, é mantida a maior  decência e dignidade possível ao vesti-lo (a) com uma mortalha ou com suas antigas roupas. Por respeito à sua alma. Para que com segurança possa retornar à sua luz original.

11 - Onde está enterrada Elisabeth? Enterrada na calçada da fama, sua mortalha é mármore. Passeio público sua tumba. Embora a fama tenha sido, a cada vez, só de uma, as duas estão enterradas ali. Domesticada pelo calçadão, a formosa famosa é aterrada, pisoteada, sujada, enlameada, esquecida. Difamada. Passarela sua memória. Sobre a qual se despeja lixo.  A ser removido ou não.

Seu post-mortem se fez infâmia, golpe de misericórdia desferido no monstro que ela nunca foi. Elisabeth até parece ainda sorrir, agradecida pelo golpe final. Entretanto, ali de sua agonia não sobreveio redenção.

Se houvesse lápide no aterro final, nela teria se inscrito: “Aqui jaz a passageira glória”. Tumba a fama que o sucesso já retumbava.

Comentando Franz Kafka, em suas Anotações sobre Kafka (12), Theodor W. Adorno argutamente observa que a falsa fama é a variante fatal do esquecimento. Mais que nunca, fama e esquecimento se apresentam como duas faces da mesma moeda. De uma fama eterna enquanto dura, a bela (o belo) migra para o esquecimento soterrado. No aguardo de uma arqueologia futura?

Quanto tempo “dura” a fama em uma rede social, a publicidade dos reels (13), nos rolamentos e carretéis de um instagram que se posta, nos (as) piados (as) de um twitter (14)? Quanto “dura” a fala do Sr. Presidente, de um político que nos difama? Não se tratam hoje mais daqueles “quinze minutos de fama”, de “felicidade” e “realização” que ainda há pouco pareciam alimentar a ilusão de glória e reconhecimento perante todos, isto é, de um engano que se pretendeu público, à espera de patrocínio e lucro lucrativo. Basta um instante só, um grama de instante só. O instante desde já se autocondena ao esquecimento imediato. Pesa agora menos que uma grama, graminha igual a uma tonelada de esquecimento. Assim a instantânea satisfação se deprime no indigesto. Da fama fácil, a infâmia impune. Do lucro, a perda. Com as resultantes fibrilações da infalível e depressiva ansiedade, o suposto prazer consome e extenua o sujeito em vício.

Desta forma, à margem da vida, desprovido de contato real, afeto, amor, conexão, trabalho, relação, de um tempo desfrutado junto a outro, junto aos outros, inexiste no indivíduo corpo e memória, alegria e satisfação inesquecível. Verdadeiro prazer.  

12 – Este não o prazer do vício. No filme, a substância que se injeta é a imagem da droga que agencia o paulatino aborto de si, que logra como “prazer” a autofagia, o suicídio em conta-gotas, a fuga de si, a psicose produzida. Com sua propaganda enganosa, perversa, seja em versão líquida ou gasosa, álcool, fumaça, pó, injeção, aspiração, ácido, seja considerada lícita ou ilícita, a “substância” do vício parte em dois o sujeito ao lhe prometer uma outra vida, uma versão melhor, devorando-o por dentro, expondo-o a ilusões e delírios de um outro em si que, mais dia menos dia, como duplo, o esmagará sem piedade, arruinará sua vida.

Vício não sacia, não satisfaz, satura e impacienta, aumenta os excessos da falta, engrossa com lixo e sucata o buraco de si. O consumidor passa fome insaciável, porque vício nenhum nutre. Aliás, rouba enquanto oferta. Vampiriza. Facilita a cisão, o parto artificial. Reforça o tipo de dissociação que a figura do duplo bem representa. Daí a dependência letal. Daí a crença na sua eficácia.

Em inglês, “lixo” é junk. Carente de verdadeiro afeto e atenção, sentindo-se lixo, monstro rejeitado, um indivíduo pode passar a absorver e engolir lixo para se alimentar, até se ver junkie, ele mesmo depósito de lixo enfim. Junkie é a palavra que se diz, em inglês, para o dependente de drogas, para o viciado sem aparente retorno, sufocado no próprio vômito, aniquilado pelo duplo em overdose.

“Nada prova que o prazer seja prazeroso”, troça o escritor francês Georges Perros (15). Entre tantas outras, uma das mais difundidas falácias é a de que o vício “dá prazer”. Entretanto, o prazer escravo do vício, daquele que se fez escravo do (pseudo) prazer, é o de uma tortura auto-infringida, de uma negatividade recompensada, que se ilude no domínio de uma morte posta sob controle. Este “prazer”, este, mais uma vez, mais uma vez se traumatiza como a repetição de um trauma que se quer esquecer. Mas, atente bem, se você é você mesmo, está a salvo do vício fatal. Coragem pois. Está a salvo quem se aproxima de si, quem se trabalha. A verdadeira auto-realização, a saúde e a vitalidade, a superação do evento traumático não se condicionam a nenhum vício em particular.

“Dê lírios”, assim se lê o grafite de um artista, de um poeta de rua que a boa alternativa compreendeu, inscrito no muro da praça, cidadão que imagino curado do desespero de solitários delírios. Graças a Deus. Recuperados de delirantes dissociações, podemos nos voltar de novo para os verdadeiros sonhos que nutrem e nos reintegram à vida a ser honrada. Sem subterfúgios, dê tempo aos sonhos, à música e à poesia, doe trabalho e dedicação à memória que se cria e preserva junto ao outro.

13 – No início da película, precisa e certeira a imagem da injeção da “substância” a induzir a clonagem artificial das células. O que logo nos faz lembrar a inoculação das atuais fórmulas e “soluções” milagrosas, de substâncias químicas injetáveis, usadas em procedimentos médicos legais, em cirurgias plásticas com propósitos estéticos, através de enxertos, próteses, silicones em seios e glúteos, botox, liftings, peelings, ácido hialurônico para dar volume aos lábios, arrebitar o nariz, rinoplastia para diminuir o nariz, aumentar o queixo, e Deus sabe lá mais o quê. São tecnologias a serviço da “harmonização facial”, do rejuvenescimento do corpo, da vontade de voltar à aparência de antes, na tentação de procurar mascarar rugas e marcas do “tempo”. Porém, este tipo de “tempo” só é arremedo de um deus-Cronos cujo preferido prato principal parece querer se compor preferencialmente dos medos e das ilusões de seus crentes, de seus clientes crônicos.

Chegamos com isso ao surgimento de uma inquietante padronização das faces, isto é, a múltiplas versões de faces que parecem clonagens de uma mesma face-padrão. E se o cobiçado procedimento cirúrgico resultar em fiasco, deparamo-nos com uma bela mumificada que mal se distingue de uma múmia retocada. Desastre (16). Elisasue. Monstro?

Entretanto, indesejáveis rugas deveriam ser vistas não como as marcas de um tempo no qual se fracassou, mas como os troféus de um tempo vivido e vencido, tempo no qual se amadurece. Só é crônico o que não amadurece, o que adoece.

14 – Alguns expectadores do filme “A Substância” o viram como que quase só tratando da temática do envelhecimento, especialmente da mulher. O envelhecimento, que é uma questão com o tempo, tantas vezes a sentimos infelizmente como Saturno a nos devorar (crus), Cronos a nos desejar a morte (cruel).

Mas quem amadurece, quem se dispõe a se conhecer, a se relacionar com o próximo, a se confrontar com seus duplos, parece não ter grandes problemas com o envelhecimento, não dá tanta bola a rugas, entende que são sinais de uma vida bem vivida, de um tempo justificado. E do que não se amadurece, dali parecem vir mais rápido rugas e rusgas, e não há Botox que bote ordem em tempo que não se viveu. E, aliás, não temos ultimamente sido “velhos” precoces, isto é, “veios”, sem passar direito por infância e juventude devida?

Envelhecer bem talvez seja vencer Cronos para se encontrar no verdadeiro Tempo. E com isso saber acolher a morte não como resultado de um infeliz descarte da linha de produção, mas como a possibilidade de uma passagem que se enfrenta como tarefa.

15 - Penso que o filme deva tocar profundamente todos aqueles que se percebam tratados como objetos de desejo, objetos do desejo alheio, mimético, abusivo, espetacularizado, normatizado, violento, sejam eles mulheres, homens, homoafetivos, crianças, adolescentes (17).

Para evitar tanto abuso e inútil sofrimento, por que não colocarmos, de uma vez, à frente das câmeras do show, do reality, nas tribunas do palco global, robôs que desempenhem com perfeição seus designados papéis? Não seria hoje uma mulher-robô, por exemplo, muito mais linda e desejável, dócil, exemplarmente submissa e obediente, provocando o esperado gozo do público, entretanto, causando menos consternação ao ser sacrificado (a), destruído (a), desmontado (a) em tempo real  (18)? Não seria um avanço?

Duplo ideal: eis o robô. Mas não nos enganemos, o feitiço sempre se volta contra o feiticeiro (19), e, conforme anteriormente previsto e descrito pela lenda do Golem, por Frankenstein, pelo R.U.R. de Karel Çapek (1919), por grande parte da ficção cientifica, devido aos nossos próprios vícios neles instalados, replicados, certamente um dia nossos duplos - robôs nos atacarão também, para acabarem com a derradeira humanidade. Estaremos sendo “fodidos” por nossas próprias criações. A não ser que as mimetizemos desde já, que tão bem as copiemos, tão despojados e esquecidos de Self, que não nos reconheçam como diferença e assim não nos arrasem mais ainda.  

16 – Em síntese, penso que há duas leituras aceitáveis do filme:

a) é a descrição de um pesadelo, à maneira de um terror noturnal, ou de um surto psicótico na personagem principal.

b) a estória de um dramático processo de liberação e autoconhecimento ocorrido em Elisabeth.

Uma leitura não exclui a outra, elas devem se complementar.

Dedico estas reflexões aos meus filhos, e também a todos meus amigos (as) e alunos (as), eternos queridos de corpo, coração e alma.

 

Ilan Grabe

Belo Horizonte, 18 de dezembro de 2024

 

Notas:

(1) Tema também presente, por exemplo, na Antropologia de Claude Lévi-Strauss, René Girard, Margaret Mead, Roger Caillois, na Sociologia de Jean Baudrillard e Zygmunt Bauman, além de tantos outros que merecem ser lembrados.

(2) Em especial a partir de mestre Freud, leitor sensível não só da filosofia essencial (Kant, Hume, Schopenhauer, Nietzsche), mas das obras-primas da literatura universal (Sófocles, Hoffmann, Schnitzler), ouvinte primoroso dos mitos que desvelam nossos mais profundos e incômodos segredos. O mito de Narciso tornou-se modelo norteador da relação de uma persona com sua aparição especular.    

(3) Na adoração do corpo, parcialidades, tais como traseiro, seio, boca, pênis, vagina, ânus, umbigo, pé, olhos, etc., são erotizadas e cortejadas. Na linguagem psicanalítica são teorizadas como “objetos de pulsões parciais” (Triebe), cada um destes objetos correspondendo à fixação da libido em uma não superada fase do desenvolvimento intrapsíquico. A fixação pode virar impasse, transtorno, bloqueio no horizonte de uma vida futura mais adulta e amadurecida.

(4) Vi recentemente um outdoor anunciando um “Show da Fé”.

(5) Referência aqui à “Sagração da Primavera”, Le Sacre du Printemps, de Igor Stravinsky (1913).

(6) Neste contexto vale recomendar “Princesa Brambilla”, surpreendente e maravilhoso delírio operístico de E.T.A. Hoffmann, com ilustrações fantásticas de Callot, obra de 1820.

(7) Ali, em confissão, o sujeito pode se habituar a admitir pequenos pecados para não ser flagrado em seus verdadeiros crimes.

(8) Veja de Francisco de Goya seu quadro “Saturno devorando seu filho”.

(9) Interessante observar que o “Éden” é frequentemente traduzido como “prazer”. No jardim Éden, no paraíso, antes da saída obrigatória para uma vida mais responsável, prazeres ainda pareciam ser de Graça, gratuitos. É importante sair a tempo da casa materna-paterna, para nos tornarmos adultos.

(10) A ponto de se sentirem responsáveis, até mesmo culpados pelo que, em vias de fato, não fizeram.

(11) Refiro-me aqui à “Garota de Ipanema” de Antônio Carlos Jobim e Vinicius de Moraes, nossa célebre canção de 1962.

(12) Em sua obra Prismen, Kulturkritik und Gesellschaft (Prismas, Crítica da Cultura e Sociedade), de 1955.

(13) Reels em inglês significa bobinas, carretéis, rolos. 

(14) Twitter, em inglês, para quem não sabe, denota o piar, o gorjear, o chilrear do passarinho.

(15) Apud Aaron Schuster, em seu ensaio The Trouble With Pleasure.

(16) Parece existir até mesmo um programa de TV (E!) exclusivamente dedicado aos “desastres do bisturi” (Botched).

(17) Em mãos uma curiosidade que comprova o que comentamos: Margareth Qualley, atriz que interpreta Sue, teve ela mesma que passar por diversos procedimentos estéticos, aplicar-se substâncias e enxertos para a sua performance cinematográfica. Isto demonstra que há dentro do filme outro filme, outra pele, outra película, portanto, em looping a onipresente figura do duplo.

(18) Aliás, isto já foi antecipado por E.T.A. Hoffmann em seu conto de !815, O Homem de Areia, Der Sandmann, primeiro conto da obra Peças Noturnas, Nachtstücke, musicado para piano por Robert Schumann em 1839.    

(19) Lembrando aqui do célebre poema de Goethe de 1797, O Aprendiz do Feiticeiro, Der Zauberlehrling, animado por Disney em 1940, em seu filme Fantasia, e musicado para grande orquestra por Paul Dukas, L’apprenti sorcier, peça de 1897.