O ano acabou selado por um belíssimo filme: Ida. Um nome de mulher, a história de duas mulheres, narrada em preto e branco. Uma temática muito conhecida e trilhada, mas filmada com extrema originalidade. Sutil, inteligente, fino e exigente para a mente e o coração do espectador. E de profunda beleza. Saber que ganhou prêmios em importantes festivais dá esperanças em relação ao gosto de nossos contemporâneos. Saber que está cotado para o Oscar de melhor filme estrangeiro nos põe em expectativa quanto à famosa Academia americana.
Ida começa e acaba em um obscuro e humilde convento, em uma cidade do interior da Polônia. A personagem central é Anna, aliás Ida, uma obscura jovem noviça, que se prepara para fazer os votos perpétuos de pobreza, castidade e obediência. Antes disso, porém, deverá, por ordem da superiora, empreender uma misteriosa e longa viagem em busca de sua identidade verdadeira. Pois, embora seja uma freira católica, Anna não se chama Anna e sim Ida e não nasceu católica, mas judia.
A única pessoa que pode revelar-lhe isso é sua tia Wanda, irmã de sua mãe, uma juíza do Partido Comunista, mulher de vida livre, que bebe e fuma muito, e tem uma multiplicidade de amantes que a marcam indelevelmente em seu já muito machucado coração. Após revelar à jovem sua verdadeira origem e nome, essa dupla improvável de mulheres parte para uma jornada em busca dos restos do passado, a fim de descobrir mais profundamente quem são.
Pawel Pawlikowski narra com grande maestria a história de Ida e Wanda em admiráveis interpretações de duas Agatas: Agata Kulesza (Wanda) e Agata Trzebuchhowska (Ida), as duas atrizes que encarnam a noviça e a juíza. Enquanto buscam o fio da narrativa de suas vidas e de seus antepassados, relatam em senso invertido a história da maior tragédia que se abateu sobre o século XX, o holocausto nazista.
Em hebraico bíblico, a palavra “holocausto” significa a oferta que sacrifica algo – normalmente um animal - o qual é inteiramente consumido pelo fogo e assim sobe como fumaça até Deus. Tratava-se de um sacrifício expiatório pelo perdão dos pecados, embora também fosse celebrado em ação de graças e adoração a Deus. O específico do holocausto era o fato de que a vítima devia ser um animal macho, sem defeito e ser inteiramente queimado, dele nada restando a não ser seu sangue, separado da carne e derramado sobre o altar.
No século passado, Holocausto passou a designar outro evento, coletivo, ganhando o nome hebraico moderno de Shoá. Enquanto o holocausto bíblico significava etimologicamente “todo queimado” (holos+kaustos), Shoá é sinônimo de catástrofe, destruição e identifica o genocídio ou assassinato em massa de cerca de seis milhões de judeus durante a Segunda Guerra Mundial, através de um programa sistemático de extermínio étnico praticado pelo Estado nazista e que ocorreu em todos os territórios ocupados pelos alemães durante a guerra.
Dos nove milhões de judeus que residiam na Europa antes do Holocausto, cerca de dois terços foram mortos; mais de um milhão de crianças, dois milhões de mulheres e três milhões de homens judeus morreram durante o período. Enquanto o holocausto bíblico oferecia sacrifícios de animais, o holocausto nazista sacrificava pessoas, famílias inteiras.
Em sua peregrinação, Ida vai em busca do que restou de sua família em meio ao horror dos anos do nazismo. Wanda intui o que se passou, mas nunca foi verificar de perto. A presença de Ida a leva até o lugar tenebroso onde, em cena tão terrível quanto bela, ambas devem devolver ao lugar adequado o que lhes foi roubado pela violência e a crueldade de um regime inumano.
Ambas mulheres e feitas para abrigar e alumbrar a vida, Wanda e Ida reagem a essa tremenda experiência de modos diferentes. Enquanto Wanda não encontra outra maneira de libertar-se do círculo infernal da morte senão pela própria morte, o caminho de Ida é diferente. Havendo testado a vida que nunca viveu e contemplado a morte dos seus que nunca conheceu, a pergunta que lhe resta é: “Por que estou viva e não morta?“
É em busca da plenitude desta vida que seu caminho a levará. Porém, irá de encontro a uma vida que consistirá no holocausto de si mesma, oferecendo-se a Deus e aos outros através da consagração religiosa. A noviça Anna/Ida, que não pronunciara seus votos, volta a seu convento. É no caminho para esta casa que o diretor a deixa, não fornecendo detalhes sobre seu futuro. Cabe a cada espectador escrever seu final.
No ano da vida consagrada, Ida é um filme que questiona profundamente cada um de nós sobre o sentido da vida, sobre a alteridade que convoca a uma doação total de nós mesmos, sobre opções de vidas que não são para todos, mas que certamente são para alguns e algumas. Às Idas de ontem e de hoje, que atravessaram as “Shoás” diversas que se apresentaram; àquelas que tiveram a coragem de responder a um chamado e viver uma vocação por inteiro, como holocausto de amor nos altares da vida cotidiana, minha admiração e meu carinho.
Maria Clara Bingemer