Diretor: Lars Von Triers

Dinamarca, Suécia, Alemanha e França - 2011

 

Profunda reflexão sobre como vivemos e como olhamos o que nos rodeia.

É possível recomeçar, mas para isso é necessário terminar...

 

O filme é uma OBRA PRIMA! Se o diretor estava deprimido (como dizem) quando o fez, digamos que foi uma bela, tocante e inspiradora depressão elaborativa.

 

Entre imagens belamente surrealistas e excertos suaves da música de Wagner (a grande ópera “Tristão e Isolda”, que inaugura os tempos modernos dentro da música), Von Triers escreve a história das dramáticas relações familiares, assim como das inúmeras e desesperadas tentativas do mundo interno para “acomodar-se” àquelas relações. Justine e Claire alternam-se, mostrando-nos diferentes modos de alcançar viver a vida em relação. Justine tenta ser “feliz”: busca o amor, sorri nas e das situações, cria arte e expressa sentimentos. Mas a tentativa é embalde! As relações estão deterioradas demais, tanto fora como dentro dela mesma. Já não há “estrelas e astros” que a possam alcançar e “salvar”! Não há mais como resistir aos “ataques silenciosos” (os de Claire: “não faça assim, não seja assim, não conte para Michael”) e muito menos aos “estridentes” (do pai que beira o ridículo e da mãe irredutível em suas falas). Justine está sucumbindo; seu olhar e seu corpo são expressões claras disso. Mas ela luta: vai para o jardim, invoca “astros”, adormece com a pureza da infância (Leo, o sobrinho) e deixa-se estar na água para “lavar-se” do que a consome e contamina. Não há mais jeito! Ela sucumbe! Mas, não sem antes pedir, sem conseguir, a presença do pai e da mãe; e não sem antes desmascarar a figura do “big boss” e, assim o fazendo, desmascarar as hipocrisias e chantagens de um universo que a quer feliz e realizadora, visto que... muito foi gasto com a festa de casamento, e muito lhe é pago para criar slogans.

 

 

Ela “tem” que ser feliz! Mas, tudo o que a rodeia não mais é referência e ponto de confiança. Claire, a despeito de parecer e ser sensata, nega a evidência das relações esgarçadas, e quer “manter a cena” e os rituais familiares, juntamente com o marido John. Mas, para isso Claire “precisa” que a irmã “viva” a festa como todos querem. Justine não pode ser pensada como a desequilibrada da família, ela é a lúcida; o sistema relacional é que é desequilibrado. Ela enxergava o que acontecia à sua volta; não negava sua dor e reagia a ela e às situações... não compactuou com o chefe, nem com o cunhado e nem com o marido, que sonhava com os pés de maçã, mas não a alcançou em sua dor. Esgotada e impotente, senta como que “à sarjeta, à beira de um abismo”, nas cadeiras empilhadas da festa e “entrega os pontos”: mãos desfalecidas ao longo do corpo, e sapatos pendurados nas pontas dos pés... Justine representa o ser humano que “pode ver” Antares, a estrela “dama de vermelho” da constelação de Escorpião, que é a gente “graúda” lá de cima, vista pela gente “miúda” aqui de baixo. Há que ser pequeno frente ao que é grande e nos ultrapassa! Justine pode ser pensada como a protagonista do que não é possível ser alcançado, que é a manutenção de um cena que é vazia em si mesma. Assim, é o desencontro, o risível, o absurdo que perpassa as cenas, a despeito do requinte e da sofisticação do entorno. Debilitada e impotente, Justine deixa que tudo se escoe entre suas mãos e sua vida: família, casamento, trabalho. E fica desnuda e sem vida!

 

No entanto, como poderemos ver na continuidade do filme-vida, é desse desnudar-se e deprimir-se que, pouco a pouco, pode e vai emergir o essencial dela mesma. Justine começa a voltar à vida, a partir dos sentidos, da sensibilidade, numa conexão mais instintiva (que nunca deixou de ter) com tudo aquilo que é o que também somos: a natureza (astros e animais). Vive uma experiência forte com seu amigo-cavalo: ele não atravessava a ponte... ele empacava! Justine o açoita impiedosamente; não o compreende; mas termina por render-se à evidência de que a natureza “sabia” mais que ela. Então, rende-se à sua própria natureza e emerge do “poço fundo” em que se encontrava.

 

Enquanto isso, sua irmã Claire angustia-se frente àquilo que não compreende, que são os fenômenos da natureza, pois seu lado racional é o que está mais acionado. John apóia-se na ciência e nos bens materiais, acreditando-se resguardado do temor do que pode estar além do conhecimento. A morte ronda a pretensa segurança, embora permeada de sensatez e realidade.

 

Justine vai recuperando-se: lembra à irmã que o fiel funcionário da família tem sua própria família e não é um bem “material” da casa; afirma também saber de “coisas” e aponta-as, surpreendendo até a nós mesmos, espectadores das cenas. Claire pensa em morrer, não acreditando ser possível conviver com o que não compreende. De sua parte, John não sobrevive à evidência das falhas dos cálculos científicos. E o universo do conhecido vai ruindo frente ao Inexorável. Apenas quem for “criança, louco e santo” estará salvo quando passar pelo Mal e pelo Choque com o Inevitável... E é assim que de forma protegida, Justine e Leo, “embalados” em sua própria natureza, vivem o momento da passagem, o momento da dança da morte, o momento em que há que acontecer o encontro-choque-interpenetração da Melancolia (a tristeza profunda da não luz) e do Sol (a luz). Claire, autêntica e genuinamente ama sua irmã, seu filho e seu marido. Mas sua sensatez, necessária para equilíbrio e força, é também sua fraqueza. Somente a partir do momento em que ela tira seu “relógio” de pulso (controle das horas?) é que inicia a sua luta “natural”. Amor, sensatez e instinto unem-se e sua força se expressa. Ela transforma-se em uma mulher “de garra”, que se junta à mulher “quebra aço” (como Leo chamava a tia Justine) e ambas criam a proteção frente ao Inexorável.

 

Assim somos nós, muitas e muitas vezes: como Justine desfalecemos e como Claire queremos manter o que não mais é! Ou seja, tudo é um desfalecer; e tudo pode levar ao encontro fatal de dois planetas, duas partes que parecem irreconciliáveis. No entanto, na cena inicial, eu “vi” uma pupila formar-se no lugar em que se deu o encontro e a interpenetração dos dois planetas; é como se eu “visse” um olho de perfil; um OLHO que agora pode vir a olhar diferente, desde a experiência da colisão e da queda. Poder-se-á ver uma colisão fatal e final? Sim... Todavia, pode-se unir a ponta final com a inicial e, como se tudo fosse o início da criação, ver emergir a CONTINUIDADE... E de nós depende que essa continuidade se faça diferente. Para isso é necessário que sejamos Justine e Claire: intuição (natureza) e razão (ciência).

 

E que a beleza da cena final, ao som da música de Beethoven, nos toque e mostre: a luta para alcançar a simplicidade da “tenda”; tenda que protege as mulheres e a criança! E considerar que “proteger” não é evitar o choque da Vida; “proteger” é unir-se tanto em si mesmo como com os demais e com a natureza.

 

Maria Teresa Moreira Rodrigues

01.04.2012