Wadjda, uma menina de dez anos de idade, vive num subúrbio de Riade, capital da Arábia Saudita. Não obstante o conservadorismo da sua família, que preza o recato da mulher desde o nascimento, Wadjda é uma criança extrovertida, afoita e decidida, a quem é difícil impor limites na sua condição feminina e visão infantil. É o caso das brincadeiras com alguns amigos, como Abdullah, de que, mesmo mal vistas pela família e vizinhança, Wadjda não prescinde.
Precisamente na sequência de uma discussão com Abdullah, Wadjda aposta que é capaz de andar tão bem de bicicleta quanto ele. Uma prática olhada como desvirtuosa para as raparigas, transforma-se num sonho a conquistar. Wadjda está decidida a consegui-lo, mas convencer a família e a comunidade de que uma brincadeira de rapazes não põe em causa nem a sua feminilidade nem a sua virtude não vai ser fácil.
Aberto um concurso de memorização e recitação do Corão na escola, Wadjda encontra a oportunidade de conciliar o seu desejo com as expetativas que sobre si recaem…
Primeiro filme realizado por uma mulher na história do cinema da Arábia Saudita, “O Sonho de Wadjda” é uma proposta atraente para um Ocidente com vasta criação cinematográfica no feminino. Haifaa Al-Mansour, oitava filha do poeta Abdul Rahman Mansour, cresceu com a sétima arte graças à visão do seu pai e a um circuito maioritariamente clandestino de vídeo, num reino, o segundo maior estado do mundo árabe, onde não existem salas de cinema.
Formada em Literatura pela Universidade Americana do Cairo, prosseguiu o mestrado em Estudos Cinematográficos e Realização na Austrália, tendo apresentado esta sua primeira longa metragem no festival de Veneza, em 2012, com aclamação do público, da crítica e de diversos júris, arrecadando três prémios. A estes, outros se têm somado à passagem do filme por países tão diversos como o Canadá, Noruega, Estónia, Estados Unidos, Suécia, Omã e África do Sul.
Inevitavelmente, a história de Wadjda tem algo de biográfico, não obstante a rara sorte da realizadora em ter um pai e uma mãe atentos aos sonhos das filhas, os primeiros a encorajá-las a estudar e a perseguir a sua vontade, sem ceder à pressão do meio cultural em que cresceram, o que lhes custaria algum isolamento.
Precisamente por ter experimentado a constrição humana da condição feminina no seu país, ditada por um rígido normativo cultural, mas também a possibilidade de dilatação, a personagem criada por Haifaa, igual a tantas meninas cheias de potencial que sabe existirem, pelo menos, na sua cidade natal, surge como porta de esperança, consistentemente aberta, para uma Arábia Saudita mais justa e igualitária. E para um mundo, desperto pelo cinema, mais atento a esta realidade.
Bom mote para o diálogo inter-religioso, “O Sonho de Wadjda” ganha pelo sentido positivo que prevalece no tratamento de uma realidade certamente trágica para as mulheres que ousem desafiar o código moral sob o qual nasceram, pela integridade da protagonista e pela justa combinação de vigor e elegância na construção narrativa.
Margarida Ataíde
Grupo de Cinema do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura de Portugal
(in: SNPC 23/04/14)