A mortalidade pode estar chapada na nossa vida quando ainda se está nessa mesma vida? O que fomos a vida toda pode deixar de existir? Anthony Hopkins transmite-nos isso mesmo, no filme ‘O Pai’ – que lhe valeu aos 83 anos o Óscar de melhor interpretação, ficando para a história como o ator mais velho a ser premiado pela Academia.
Há obras primas do cinema que não precisariam de diálogos nem tão pouco de legendas. Esta é uma delas. Ao mesmo tempo aflitiva (para o espectador mas não só), a obra do realizador Florian Zeller pega no ponto de vista da personagem de Hopkins, que sofre de demência, e distribui a história com vários desdobramentos apresentados ao longo da narrativa, que são uma surpresa para as próprias personagens em cena e para nós enquanto público. Tudo baseado na relação entre pai e filha, esta bem ciente da degradação do seu pai.
Zeller, que também é o autor da peça de teatro Le Père, que originou o filme, utiliza diversos recursos visuais para moldar um terreno incompreensível e vai introduzindo transformações subtis. Este filme é a prova da passagem impiedosa que o tempo traz à humanidade, em que a velhice ‘mal vivida’ é uma hipótese para muitos de nós, e junta, ao mesmo tempo, temas como a paternidade e os deveres familiares, prestando também uma homenagem aos cuidadores ou potenciais cuidadores destes idosos que se tornam de novo crianças. Uma história em que o ciclo da vida fica exposto de uma forma tão subtil quanto firme, com momentos de cumplicidade e “presença” de Hopkins que rapidamente passam a cenas em que o protagonista se sente perdido e só. A mistura destes momentos é que torna esta peça cinematográfica de um gradual realismo. Podia ser cinema como podia ser teatro. Podia ser cinema como podia ser um livro. E, mais penoso ainda, podia ser vida real. Que é.
“Who exactly am i?” (“quem sou eu, na verdade”?, questiona este pai). A interrogação que todos fazemos à medida que o tempo vai passando mas que, aqui, faz ainda mais sentido, de uma forma cruel. Com uma lucidez que se vai perdendo, o seu eu que vai desaparecendo e tão bem suportado pela paciência ou (ou falta dela para quem assiste). O que faz desta obra uma peça dolorosa, desgastante emocionalmente para quem a vê. Mas esta produção cinematográfica de tão sublime que é acaba por nos trazer – enquanto espectadores e pessoas reais – vários sentimentos que se misturam e nos confundem. E, da forma mais vulnerável possível, relembra-nos de que há uma dolorosa crueza em viver uma vida longa. E onde não faltam (mais um ponto a favor do realismo desta obra) os comportamentos passivo-agressivos na tentativa constante da personagem ade provar que ainda é dono da sua mente. Um alguém sufocado pelo medo de perder as suas memórias e sua própria essência.
Um filme que nos prova que Hopkins, incrivelmente, ainda é capaz de surpreender e aqui nos brinda como um veterano que se apresenta de forma profundamente debilitável e exposta, não tendo medo de explorar um universo totalmente vinculado à sua própria faixa etária e que acaba a hipnotizar os olhos do público. Porque podíamos ser nós, podemos vir a ser nós. E essa é a verdadeira fragilidade da vida humana, mais do que a própria morte.
Filipa Ambrósio de Sousa
In: pontosj.pt em 15.05.2021