O livro

Publicado inicialmente nos Estados Unidos, “A cabana” se revelou um fenômeno editorial, com milhares de exemplares vendidos em todo o mundo. A obra de William P. Young faz uma abordagem sobre amor, sofrimento, perdão, salvação, e sobre Deus e o ser humano.

 

Transcrevemos abaixo a palestra sobre o Livro A Cabana, realizada no Centro Loyola em 2011, com o Pe. José Fernandes sj e a professora Eliana Yunes, da PUC-Rio. Ambos comentam a obra.

 

Para o jesuíta J. Fernandes, a tragédia vivida por Mac, personagem principal do livro de Willian P. Young, abre uma fenda na sua existência, em especial no seu relacionamento com Deus. A lingüista Eliana Yunes defende que o autor usa a estrutura literária para convencer o leitor de que “não há nada tão terrível na vida que nos possa efetivamente afastar do Seu amor”.

 

 “No fundo, no fundo, o livro almeja convencer o leitor de que Deus nunca nos abandona”. Esta foi uma das principais constatações às quais a lingüista Eliana Yunes levou os participantes da palestra que ela e o padre jesuíta J. Fernandes fizeram sobre o livro “A Cabana”, no Centro Loyola, no dia 10 de fevereiro de 2011.

 

Eliana, que também é escritora, começa a reflexão traçando um cenário sobre as questões em que o padre Fernandes iria fazer diretamente um mergulho. “A primeira dúvida que aparece quando um livro desta natureza ganha as páginas dos jornais e está no ranking dos mais vendidos é se isso é literatura ou auto-ajuda. Que tipo de livro é esse?”, interroga. Ela mesma responde: “quando se trata de ficção, a gente costuma imaginar que diz respeito a coisas falsas, ilusões”. Para a doutora em letras, há um equívoco bastante grande em pensar que o imaginário seja habitado por mentiras. “Nosso próprio discurso sobre o mundo é por si só uma ficção”, provoca.

 

"Nosso discurso sobre o mundo é uma ficção".

 

A professora explicou que fazemos essa distinção, porque trabalhamos com o conceito palpável das coisas acontecidas. “A nossa apreensão do mundo, entretanto, não equivale ao mundo. O mundo é uma coisa. Outra coisa é o que nós dizemos que o mundo é”, afirmou. “Cada um de nós narra um fato com suas emoções, suas percepções, suas memórias anteriores, com aquilo que já habitou o seu coração antes”, indica.

 

De acordo com Yunes, há também uma diferença imensa entre uma língua que está no dicionário e as palavras em situação de uso. A lingüista pondera que, no segundo caso, elas vão ganhar arranjos, tonalidades, sinonímias que no dicionário não aparecem e que têm a ver com a visão de mundo que cada um tem. “Nós não falamos a língua pelo dicionário, nós falamos a língua que vivemos. E é essa língua que desenha o mundo”, observa.

 

A professora acrescenta ainda a diferença que há entre um idioma e outro: “o mundo que eu vejo em inglês não é o mundo que eu vejo em português”.  Como as línguas têm um recorte de mundo diferente, “a nossa língua é”, portanto, “uma ficção sobre o mundo”, deduz. “Nós acessamos um consenso sobre a realidade. Se a gente tivesse acesso à transparência da verdade a gente veria a Deus. E talvez isso fosse insuportável”, ressalta.

 

"Se a gente tivesse acesso à transparência da verdade a gente veria a Deus. E talvez isso fosse insuportável.”

Eliana continua sua explanação explicitando que o real mantém a língua convencional como via de acesso. Mas que existem outras como, por exemplo, “explorar o imaginário”. “Esse nível resulta nos discursos de ficção”, expõe. “Não estou falando só da literatura, mas o primeiro discurso com que os homens tentaram entender e organizar o mundo não foi o da lógica, da filosofia, foi o da poética.  Esse mundo do imaginário é o que nós chamamos de mundo da ficção. Você não pode provar que as coisas aconteceram, mas você sabe que elas aconteceram, são tão vivas quanto as nossas vidas.”, sustenta.

 

Conforme Eliana Ynes, o mundo da ficção dilata a extensão do nosso conhecimento, nossa potência de ser. “O outro que nos escuta não habitou nossa experiência, mas tem uma vivência que dá a ele uma certa cumplicidade. Por isso as histórias de ficção movem a gente tão profundamente”, justifica. 

 

A escritora sustenta que a ficção não é exatamente uma mentira, mas alerta que, “ao trabalhar com literatura, e com ficção de maneira geral, você não tem nenhum compromisso com a verdade. Porque quem mergulha no imaginário sabe que do ponto de vista humano não é possível acessar a verdade”. E prossegue: “diante da impossibilidade de falar sobre a verdade a gente usa as múltiplas verdades. E a literatura, a ficção, é um caminho para a gente perceber como as coisas poderiam ser”.

 

Eliana destaca que, se não há compromisso com a verdade, não há compromisso com a persuasão, com o convencimento. Mas que, ao ler um romance, saímos convencidos de uma porção de coisas. “A leitura é um ato de adesão e abertura”, afirma. “Por isso, quando alguém quer passar uma mensagem - contramão do literário - usa a estrutura literária. A estrutura literária coopta você, coopta seu coração, seus sentimentos, seus desejos. Ela traz você para dentro do que ele está querendo te convencer”, revela. E avisa: “a literatura pode te persuadir de uma porção de coisas, mas essa persuasão é sua responsabilidade”.

 

“O livro A Cabana é um livro desta natureza!”, revela Eliana Yunes. “Mas ele não é um livro ingênuo”, avisa. De acordo com a especialista, "o autor usa a estrutura literária para contar um relato extraordinário, cooptar você a fazer a experiência da dor e convencê-lo, como fez com a principal personagem da história, de que Deus está muito mais perto do que eu possa imaginar e sob formas que eu não posso imaginar".

 

"A Cabana não é um livro ingênuo".

 

A professora terminou sua exposição explicando que o autor de A Cabana, Willian P. Young, conhece esse arsenal todo de literatura, de teologia, o que torna o livro extraordinariamente sedutor. “Mas ele não deixa, no fundo, de querer me passar uma lição de vida”, afirmou, passando a palavra para o padre J.Fernandes que fez uma abordagem teológica dos pontos mais evidentes do livro. 

 

 “Nós construímos uma imagem de Deus a partir da nossa própria imagem”, afirma o padre jesuíta José Maria Fernandes em sua reflexão sobre o amor, o sofrimento e a experiência de Deus a partir da leitura do livro A Cabana, de Willian P. Young... 

 

O padre, que também é teólogo e artista plástico, começa sua exposição dizendo que todos nós construímos imagens, ao longo da vida, a partir da nossa própria imagem, mas que o tempo e a história possuem movimentos dinâmicos que atingem nosso interior e mudam tudo. “O inesperado desconstrói nossas imagens e nos obriga a reconstruí-las”, postula.

Para José Maria, essa é a situação apresentada no livro A Cabana. O personagem principal tinha uma imagem de Deus, construída no decorrer dos anos, a partir de conceitos e pré-conceitos que recebeu de outras pessoas. “Mas a perda da filha muda radicalmente seus relacionamentos. E Mack começa a se perguntar ‘que Deus é esse, que permite essa estupidez, e não faz nada”, retoma a narrativa. “O personagem não tem consciência de que está mantendo uma fé desprovida de sentido”, argumenta. E questiona os participantes: “quantas vezes nós já pensamos assim, não?”.

Continuando sua apresentação, Fernandes diz que a situação vai minando Mack por dentro, como também acontece conosco. “A falsa fé vai esvaziando a pessoa”, explica. “Mas aquilo que o protagonista pensa ser o vazio é o espaço das falsas imagens. Aí sim, a ficção vira mentira”, revela. Na sua interpretação, Deus permite tais situações para desfazermos uma falsa imagem. “É no vazio que Deus vai se reconstruir”, sustenta. Para ele, o livro mostra esse processo dentro do Mack.

De acordo com o jesuíta a tensão permanece até que Mack recebe um bilhetinho: “estou te esperando lá na cabana, papai”. Durante meses, anos, o personagem passa por esse processo em que vai se esvaziando, se afastando das suas relações, até que na sua interioridade pega aquele bilhete e diz “estou cheio de Deus!”, rasga-o e joga no lixo. “Nós também podemos passar por essas situações de ter raiva de Deus. Às vezes são situações tão pesadas que a gente acaba falando: ‘volta lá para sua nuvem, fica sentado lá e me esquece’”, pondera.

Mas acontece algo quando ele (Mack) entra na cabana, rememora o religioso. “É a nossa cabana interior”, sustenta. “Toda casa tem um quartinho. Ele fica entupido de coisas. Aquilo que eu não quero, que eu não gosto, que me incomoda. Até o dia em que não cabe mais nem uma folha de papel. Agora tem que esvaziar. E aí começa todo o processo”, ensina. “É nesse quartinho que Deus quer trabalhar em nós. É ali que Ele quer entrar. E a esse quartinho só Deus tem acesso. É a nossa cabana. É ali que Deus quer falar”, assegura.

De acordo com o palestrista, Deus manda bilhetinho, marca encontros, usa de diversas estratégias até que criemos coragem de abrir as portas e esvaziar o “quartinho”. “Então começa a desconstrução da imagem. Eu não sou aquilo que eu esperava ser, que eu pensava ser. Deus também não é assim”, esclarece.

Para o padre, é isso que acontece com Mack e vai se iluminando dentro dele. A começar pelo encontro inesperado com “a negra gorda, peituda, fazendo doce e chá na beirada do fogão”. No livro, o personagem questiona como conversar com um Deus assim e ainda chamá-lo de pai. “Espera quando você conhecer o meu filho!”, reconta. “E chega quem? Um operário, sujo, com a roupa rasgada”, continua. “E a terceira pessoa? A louca da casa!”, recorda.

Neste ponto da reflexão, o teólogo faz um aparte interpelando os participantes: “como é que vocês fazem uma oração para o Espírito Santo? Vocês conseguem conversar com uma pomba?”. Ele afirma categoricamente: “é a imagem que nós temos, que nos é passada”. E ironiza: “Não dá para dialogar com um pombo. Como é que eu vou dialogar com um velho sisudo sentado num trono em cima de uma nuvem com um triângulo na cabeça?”. Retomando a apresentação, José Maria diz que essas imagens começam a se retorcer e a se decompor na mente de Mack.

Na seqüência, Fernandes destaca o trecho em que Mack é levado a atravessar um lago caminhando. “Mas, não tem um barco... Não, a gente vai andando mesmo... Eu não sei andar sobre as águas... Eu te ensino”, refere. “Nós temos uma passagem assim na bíblia, não temos? Vocês sabem o que significa andar sobre as águas? Olha aí uma ficção...”, dialoga com o público. O estudioso esclarece que, na linguagem bíblica, o mar significa a morada do mal. “É por isso que Jesus caminha sobre as águas. Porque é aquele bem que supera a força do mal”, interpreta. “Então andar sobre as águas é uma fantasia, é uma ficção, é um simbólico”, conclui. “O que é que representa para minha fé Jesus caminhar sobre as águas, literalmente? Nada. Quando muito me dá uma imagem do taumaturgo, do mágico”, considera. O jesuíta estabelece que, para nossa fé, hoje, a passagem quer mostrar que somos capazes de superar, de estar acima do mal.

Voltando ao livro, o religioso traz à memória os vários encontros de Mack com essa trindade, onde cada um tem seu papel. “Por que é que Deus, o papai, é a negra gorda que está sempre fazendo os quitutes? Qual a imagem de Deus que está aí por trás?”, aprecia. Ele mesmo responde: “é a mão providente. É Ele quem prepara as coisas”. Neste momento, o palestrista alude às culturas da pré-história, em que todas as deusas da fertilidade eram esculpidas em pedras negras, “gordas, bundudas e peitudas”. Ele também pensa sobre imagens que estão no nosso inconsciente. “Quem não se lembra de ‘Direito de nascer’, com a mamãe Dolores? ‘Sítio do pica-pau amarelo’, com tia Nastácia... ‘E o vento levou’...”, enumera. “É sempre essa imagem, da mãe preta, da ama de leite. É ficção, mas é realidade”, alega.

Se o Pai é aquele que prepara, o Filho é aquele que realiza, segundo padre Fernandes. É o que mete a mão na massa, aquele que trabalha, que chama, que ensina, que mostra que não é por aqui, que aí vai afundar, que diz “vem atrás de mim que eu te ensino”. Já o Espírito Santo, na compreensão do teólogo, traz um nome de origem indu-européia, da mesma raiz de “o vento quente que sopra”. É aquele que vem, que entra, que transforma. “Muito interessante. Ele (o autor) conhece a teologia, a cultura, e vai colocando essas imagens no texto. E os três vão configurando uma nova imagem no Mack”, na opinião de José Maria.

Outro diálogo do livro que mereceu destaque durante a palestra diz respeito à dificuldade que Mack tem de se dirigir finalmente ao Pai, o Deus negro feminino. Deus o questiona: “É complicado por causa dos fracassos do seu Pai?”. E propõe: “Se você quiser, eu posso ser o seu pai”. Mas Mack replica: “Como posso confiar em você se não foi capaz de cuidar de Missi, minha filha?”. E Deus finalmente se revela dizendo: “Mack, não existe uma resposta fácil para a dor de um pai. Desculpe, eu não sou mágico”.

Padre Fernandes chama a atenção para isso. “Deus não é mágico. E nós ficamos pensando na graça de Deus como um pozinho de pirlimpimpim, que vai transformar estátua em príncipe”, alerta. “Milagre de Deus acontece na nossa fé”, ele dá por certo. “É dito, ao longo de todo relato bíblico: ‘foi a tua fé que te salvou’”, referenda. Para o estudioso, com tais questionamentos, as imagens de Deus vão, aos poucos, se desfazendo para dar espaço a uma reconstrução.


Na sequência do livro, Mack é convidado a conversar com Sofia, a sabedoria. Ela o convida a, da mesma maneira que deseja um julgamento para quem matou Missy, sentar no lugar de Deus e a julgar toda sua família, tirando a vida de um de seus filhos. Conforme a avaliação de padre Fernandes, aí está a grande reviravolta na vida de Mack. “É muito fácil jogar para cima dos outros a sua culpa, alienar sua participação na história. É muito fácil pedir a Deus para afastar aquela pessoa que incomoda”, critica. “Nunca vai acontecer. A graça de Deus está para nos fortalecer, fortificar nossa humanidade, para enfrentar essa história maluca”, determina. “Se eu tenho uma falsa fé, ou uma fé infantil, eu acabo me perdendo”, assegura. O teólogo acredita que evidencia-se assim para Mack a circularidade do amor trinitário.

Padre Fernandes faz ainda uma alusão ao trecho em que o personagem principal questiona a crucifixão de Jesus e Deus afirma que estava lá e foi crucificado com Ele. Para o jesuíta, Deus está dizendo que participa da nossa dor, que não estamos sozinhos. “As conversas particulares com os três são o mesmo diálogo, que conduzem a um mesmo objetivo, o amor”, condensa. De acordo o religioso, a história toda gira em torno do valor do amor na nossa vida. “Amar como Deus ama nos faz vencer os desafios. É isso que o filho ensina. E o Espírito fortalece. Ilumina e faz compreender essa verdade que emana do Papai”, sintetiza.

Resumindo, padre Fernandes diz que o que aconteceu com Mack é que “ele tinha uma imagem de Deus. Deus o fez entrar na sua cabana, encontrar a sua verdade, a sua verdadeira imagem, a imagem de um Deus trinitário, compreender o amor, perdoar”. E termina sua explanação abrindo o debate para o público com a seguinte questão: “Qual Deus eu criei na minha história?”.

Ao fim do encontro, a mesa do café foi posta para a costumeira e agradável partilha da vida.


Os palestristas

José Maria Fernandes Machado
Padre jesuíta, teólogo, diretor do Centro Loyola do Rio de Janeiro.

Eliana Yunes
Doutora em letras e lingüística, escritora e professora da PUC do Rio de Janeiro.