O novo livro de poesia de Adélia Prado é, mais que um acontecimento literário a festejar, quase um pequeno milagre. A palavra não parece inadequada para descrever “Miserere”, reunião de 38 poemas que podem ser lidos como fragmentos do diálogo ininterrupto da autora com Deus. Nascida em 1935 em Divinópolis, Minas Gerais, onde mora até hoje, Adélia se aproxima dos 80 anos com a mesma curiosidade diante dos mistérios da vida que encantou os leitores de seus primeiros livros, “Bagagem” (1976) e “O coração disparado” (1978). Professora, mãe de cinco filhos e pacata dona de casa, Adélia se tornou na época uma celebridade, quando teve sua poesia “descoberta” por Affonso Romano de Sant’Anna e Carlos Drummond de Andrade. Seguiram-se, intercalados por longos períodos de silêncio poético (e alguns títulos de prosa), ‘Terra de Santa Cruz’, ‘O Pelicano’, ‘A Faca no Peito’, ‘Oráculos de maio’, ‘Louvação para uma Cor’ e ‘A duração do dia’.
O título ‘Miserere’ vem da expressão latina “Miserere nobis” (“Tende piedade de nós”), da liturgia católica, e já tinha sido usado por Adélia em um poema de 1978. O livro inteiro é atravessado pela constatação da fragilidade da matéria vida e pelo sentimento de inadequação, de um descompasso entre o corpo e o espírito, como no poema “Humano”:
“A alma se desespera, / mas o corpo é humilde; / ainda que demore, / mesmo que não coma, / dorme.”.
Mas também estão presentes versos sobre a condição feminina, como em ‘Senha’:
“Eu sou uma mulher sem nenhum mel / eu não tenho um colírio nem um chá / tento a rosa de seda sobre o muro / minha raiz comendo esterco e chão. Quero a macia flor desabrochada / irado polvo cego é meu carnho. / Eu quero ser chamada rosa e flor / eu vou gerar um cacto sem espinho.”
Luciano Trigo - do site G1