Por vezes é uma luta, por vezes uma dança: introdução ao livro "O sopro da vida interior"
1.
Depois percebemos que a vida espiritual não pode ser uma coisa à parte, e que saudavelmente coincide com a única vida que temos. O que há em nós de realização e de desejo, de tensão irresolúvel e de dom; o que que nos habita da forma mais habitual; o que mais nos afunda na terra, no corpo e no tempo: é aí que ouvimos (ou podemos ouvir) o murmúrio de Deus.
Falar da vida espiritual é sempre sondar as zonas mais profundas (e por isso também mais reais, mais imperfeitas, mais inacabadas) da nossa alma. A espiritualidade não é uma busca epidérmica e apressada de satisfação. Na maior parte do percurso a pergunta que vale não é “o que me sacia?”, mas “de que ando eu à procura?” e “qual é a minha sede?”. Gosto da maneira como os autores clássicos da vida espiritual falam dela como de uma luta. Na cultura do pronto-a-servir, que em grande medida é a nossa, proliferam os sucedâneos da espiritualidade ministrados como aliciante indução de conforto. Nada mais distante da espiritualidade cristã, que é um livro do desassossego, um mapa de interrogações que não se falsificam nunca, um desafio a viver a autenticidade como caminho. A espiritualidade cristã não é um tráfico de certezas, mas um caminho trilhado na confiança. O próprio Jesus lembra que não veio trazer a paz das aparências, mas a espada que penetra as camadas mais íntimas (Mt 10,34). A vida espiritual é isso: por vezes uma luta cravada nas entranhas, por vezes uma luminosa dança. Nesse maravilhoso espelho da experiência espiritual que é o poema “Escuto” de Sophia de Mello Breyner Andresen, a atitude existencial do crente surge precisamente desenhada pelas palavras “Apenas sei que caminho”. Como se pode ler:
Escuto sem saber se estou ouvindo
O ressoar das planícies do vazio
Ou a consciência atenta
Que nos confins do universo
Me decifra a fita
Apenas sei que caminho como quem
É olhado amado e conhecido
E por isso em cada gesto ponho
Solenidade e risco.
2.
Podemos fazer muitos atos ligados ao espiritual ou ao devocional e não estar a construir uma verdadeira experiência de vida espiritual. Não é raro acontecer que, numa vida que se enche de “coisas do Senhor”, o grande ausente seja mesmo o Senhor. Ora, a experiência espiritual reclama isso: que das ideias passemos à experiência, da distância do espectador passemos ao envolvimento de quem se apresenta como testemunha, dos planos muito engrandecidos e sempre adiados passemos à humilde esperança de quem se lança à estrada e à viagem. Outro poeta lembra-nos no seu dístico: “Ama como a estrada começa”.
Cedo ou tarde compreendemos que, abordando o significado da vida espiritual, estaremos a falar de amor. De facto, a vida espiritual só cresce quando no centro está uma relação de amizade. Não basta crer, nem estatisticamente pertencer. É necessário mergulhar, habitar (ou melhor, saber-se habitado). E tudo o resto: descobrir-se buscado, querido, bem-amado. Saber que se é escutado e que se escuta. Saber que se é rezado e que se reza. Não é sem razão que a mística cultivou um apego muito grande ao livro bíblico do Cântico dos Cânticos. Ele mostra que a história de fé é uma fome de relação. Fome nossa e fome de Deus.
“Esta é a voz do meu amado. Ei-lo que vem saltando sobre os montes, pulando sobre os outeiros. O meu amado é semelhante ao gamo, ou ao filho da gazela. Eis que está detrás da nossa parede, olhando pelas janelas, espreitando pelas grades. O meu amado fala e diz-me: ‘Levanta-te, meu amor, formosa minha, e vem. Passou o inverno; a chuva cessou, e foi-se embora; Rebentam as flores na terra, o tempo das canções regressa, e a voz da rola ouve-se em nossa terra. A figueira já deu os seus figos verdes, e as vides em flor exalam o seu aroma; levanta-te, meu amor, formosa minha, e vem. Pomba minha, que andas pelas fendas dos penhascos, no oculto das ladeiras: mostra-me a tua face, faz-me ouvir a tua voz, porque a tua voz é doce, e a tua face graciosa.’” (Cant. 2, 8-14)
3.
Diz-se que estes duros tempos de crise económica, em que vemos todos os dias tombar o modelo que identificava a felicidade com o poder de compra (ou com a sua ilusão), constituem uma oportunidade para a redescoberta do espiritual. Pode bem ser. Mas no lugar de um ídolo, não podemos colocar outro. A vida espiritual não é um oculta-vazios ou um alívio emocional para sociedades à beira de um ataque de nervos. É uma aventura maior, que nos radica na verdade nua do homem e na verdade de Deus.
Os leitores deste livro encontrarão uma cumplicidade preciosa em Joan Chittister, que neste momento talvez seja ainda uma quase desconhecida para o nosso contexto de língua portuguesa, mesmo se a Paulinas editou já um primeiro e muito belo livro (“A dádiva dos anos”, 2012). Chittister certamente tornar-se-á uma inspiração e um apoio para a procura espiritual de tantos de nós, como no seu tempo foi Thomas Merton ou, mais recentemente, Henri Nouwen.
Joan Chittister é uma religiosa beneditina, norte-americana, nascida em 1936. À sua formação teológica juntou a especialização no campo da psicologia social e da teoria da comunicação. É nesta área que se doutora na prestigiada universidade de Pennsylvania. Durante 12 anos foi prioreza da comunidade beneditina de Erie e desempenhou também o cargo de presidente das Priorezas Beneditinas Americanas. Fundadora e diretora do Benetvision, um centro beneditino de pesquisa de espiritualidade contemporânea, Chittister mantém também uma coluna semanal no National Catholic Reporter. As cerca de quatro dezenas de livros publicados têm obtido um justo reconhecimento junto dos leitores e numa recente sondagem feita nos Estados Unidos para assinalar as mulheres mais inspiradoras o seu nome foi o mais votado.
Uma última palavra para justificar a opção editorial tomada para este livro. Verdadeiramente trata-se da reunião de dois pequenos tesouros, The breath of the soul (2009) e God’s tender mercy (2010). Pareceu-nos identificar em ambos uma continuidade que possibilita um olhar mais amplo à obra global da autora, e que convida a um caminho espiritual maturado. Boa aventura, é o que se deseja a partir daqui ao leitor.
José Tolentino Mendonça
In: O sopro da vida interior, Edições Paulinas