Sêneca dedicou os últimos anos da sua vida a construir um dos mais fascinantes epistolários latinos. Discute-se muito se o seu correspondente, Lucílio, existisse de facto ou fosse simplesmente uma entidade ficcional. Há, porém, um candidato plausível a ocupar o lugar: Lucílio, o jovem, um modesto escritor e político que exercia nesses anos (62-65 d.C.) o cargo de procurador imperial na província da Sicília. As cartas de Séneca têm tudo o que nos fascina nas cartas: a vivacidade visual do quotidiano, as marcações lentas e íntimas do tempo, as confidências, os sentimentos entrevistos, a espontaneidade, o humor, as observações não transcuradas. De facto, as cartas são uma incrível forma de escrita tridimensional: dão a ver (ou criam a ilusão de dar a ver) em direto a existência tal como ela é. Mas, a somar a essas características, as de Séneca são também preciosos tratados filosóficos em pequeno formato. Além de amigo, o filósofo sentia a responsabilidade de guiar através da reflexão o aperfeiçoamento do seu interlocutor. Assim, cada carta oferecia a possibilidade de abordar temas e de oferecer pontos de meditação onde o conhecimento da verdade se ampliava. E de fazê-lo — facto deveras admirável neste clássico de obrigatória leitura — como um diálogo escorreito entre amigos, partindo tantas vezes da experiência mais comezinha da vida, mas com a capacidade de reconduzi-la ao âmago do seu sentido.
A carta 23 é dedicada à verdadeira alegria, aquela que não se confunde com a satisfação imediatista ou com os prazeres prêt-à-porter que apenas armadilham e contraem o campo de possibilidade do desejo. A verdadeira alegria é a que nos faz trilhar com decisão um itinerário interior do qual resulta um crescimento e uma maior consciência de nós próprios. Há formas de contentamento que alegram momentaneamente o rosto, mas aprofundam a divisão e o vazio da alma. Séneca insiste: “É o espírito que se deve alegrar, elevando-se com confiança sobre os acontecimentos, quaisquer que eles sejam.” Para isso temos, porém, de acolher a exortação que ele faz a Lucílio: disce gaudere, aprende a alegrar-te.
Esta necessidade de uma aprendizagem, não raro árdua, requerida para a experiência efetiva da alegria é um dos pontos centrais da sua mensagem. A este, juntaria outros três. O primeiro deles é a descoberta de que a alegria deve ser encontrada em nós (“que a alegria te nasça em casa”), não no que nos acontece. Contudo como acontece com os metais — os de escasso valor encontram-se à superfície, enquanto que os preciosos se escondem nas profundezas da terra —, a verdadeira alegria é aquela que parte do fundamento e se expande a partir de dentro. O segundo ponto leva-nos a compreender que a verdadeira alegria é a alegria do bem que se exprime, segundo Séneca, por uma reta consciência, uma honestidade de intenções e uma concentração no essencial, como “quem percorre um único caminho”. O último ponto é a vigilância e o empenho necessários para levar a bom termo a aprendizagem da alegria: são poucos aqueles que conduzem realmente a própria vida; a maior parte deixa-se levar pelo curso das coisas.
O discurso da alegria serve assim a Sêneca para um apelo à responsabilidade de vivermos a fundo a vida. Não aconteça que partamos sem ter percebido a oportunidade que representou esta passagem ou, pior ainda, que desistamos “de viver ainda antes de ter começado”. E Sêneca despede-se dizendo, vale, adeus.
Dom José Tolentino Mendonça
In: imissio.net 26.06.21