O mais precioso e saboroso do legado de Libanio não está em suas produções, encontra-se no coração de quem com ele conviveu e aprendeu a dedicar-se à arte de amar e servir.
Liberdade crítica e autocrítica, na Igreja e como Igreja. Liberdade crítica e autocrítica, na Igreja e como Igreja. (jblibanio.org.br)

 

Os grandes mestres, pelo jeito singular com que forjam e transmitem seu saber-fazer, deixam marcas indeléveis na vida de seus discípulos e discípulas. Tais marcas não se convertem em pura admiração, reconhecimento e gratidão. Vão muito além disso. Provocam incontornável senso de corresponsabilidade para que o tesouro recebido não se perca.

 

Libanio foi desses mestres singulares e inesquecíveis. Deixou atrás de si incontáveis seguidores-continuadores, que assumem publicamente, não só a importância da formação recebida, mas sobretudo o impulso vital, dele recebido de forma testemunhal, para colocarem-se também a serviço e darem continuidade ao precioso legado do mestre. Quanta saudade viva e instigante ele deixou esculpida em nossos corações!

 

No marco dos três anos de sua partida para a Casa do Pai, destino último de todos nós, quero aqui compartilhar três traços muito significativos da arte libaniana de fazer-ensinar teologia pastoral.

 

1. Libanio foi alguém que se deixou lapidar pelo labor teológico

Sua vida praticamente inteira girou em torno do aprender e do fazer-ensinar teologia. Cedo entrou na Companhia de Jesus. Ao fazer seus estudos superiores na Europa, desde os primeiros anos da imersão no mar da teologia, descobriu sua vocação e missão. Desde então, deixou-se lapidar pelo complexo labor teológico. Cultivou, com rigor, o desafio de tornar-se intelectual orgânico no seio da Igreja e da sociedade. Após a graduação, passou a ser repetidor das aulas de teologia para os estudantes brasileiros. Essa tarefa oportunizou a ele adquirir sólida formação geral em teologia. Ele gostava de dizer que não seguiu o caminho dos especialistas, mas dos generalistas. A teologia fundamental, destituída de toda apologética não dialógica e aprendiz, ocupou-lhe o centro de irradiação.

 

Doutorou-se na Alemanha e, em seguida, voltou para o Brasil inserindo-se, de corpo e alma, no desafiante e criativo processo de recepção das ousadas transformações encetadas pelo Concílio Vaticano II. Aqui encontrou na dinâmica de assessoria da CRB – Conferência dos Religiosos do Brasil e da CNBB – Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, na FAJE – Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia, dentre outros espaços, terreno fértil para se colocar a serviço da Igreja, desde os mais pobres, e da profética teologia latinoamericana da libertação. Se na Europa recebeu sólida formação clássica e na teologia dos grandes ideólogos do Concílio, foi em nosso Continente, tão injusto, excludente e desigual, que se aliou aos pensadores da libertação, teólogos, sociólogos e outros, diretamente comprometidos com a participação na luta dos empobrecidos e na defesa da igual dignidade humana, seja na sociedade, seja na Igreja.

 

Libanio paulatinamente encontrou seu lugar ao concretizar com maestria, ao longo de todo o Continente latino-americano, vasta experiência como teólogo, pastoralista, escritor, conferencista, assessor, diretor espiritual, professor e orientador de estudos. Sua obra precisa ser melhor conhecida para ser continuada.

 

2. Libanio cultivou autêntico amor pelo fazer-ensinar teologia pastoral

Ninguém coloca em dúvida a paixão com que exercia o criativo labor teológico. A teologia cristã alimentava seus horizontes de sentido e dava a ele alegria de viver. O fazer-ensinar teologia, de forma muito especial, nutria sua pessoa de vitalidade e profunda energia espiritual.

 

Libanio cultivou verdadeiras amizades com seus pares e, singularmente, com seus alunos e orientandos. Era a presteza em pessoa, alguém sempre pronto para ajudar a quem lhe procurava. Conquistou, desse modo, enorme grau de reconhecimento e admiração pelo seu sensível labor teológico. Mostrava-se alguém profundamente realizado profissionalmente com o que se dedicava. Ele se entregava, de tal maneira, ao fazer-ensinar teologia pastoral que este parecia dar a ele muito mais prazer que cansaço.

 

Seu bom humor, uma de suas marcas mais características, amalgamado a aguda capacidade crítica e para captar e discernir ideologias, tendências e cenários, tornava suas aulas, palestras, assessorias e orientações de estudo leves, agradáveis, instigantes e contagiantes. Exercia verdadeiro fascínio sobre quem o escutava, não tanto por ser um excelente orador, mas por se doar no que fazia. Era visível sua preocupação com o ritmo de cada um, nos processos de crescimento na fé cristã e nas lides iniciais da vida intelectual. Tinha prazer em lançar seus orientandos na práxis pastoral e vê-los galgar degraus. Seus olhos brilhavam, quando percebia que tocava o mistério profundo das pessoas. E quando estas sentiam o desejo de abrir o coração diante de suas provocações, acompanhava a cada uma, com profundo respeito e ternura. Essa preocupação sensível pela singularidade de cada um que lhe procurava era, de fato, contagiante.

 

3. Libanio amava o fazer-ensinar teologia na Igreja e como Igreja.

Quando mergulhamos em sua produção teológica e contemplamos sua arte de fazer-ensinar o pensar teológico, o que mais se destaca é a profunda preocupação pastoral. Isso significa que a sensibilidade de despertar para o autêntico seguimento de Jesus era sua preocupação maior. Quando Libanio encontrava uma fresta de abertura no coração das pessoas ou um limiar de conversão ou renovação na vida da Igreja, procurava explicitar, fortalecer e cuidar para que o pequeno broto aflorasse e frutificasse verdadeiros processos de transformação.

 

Libanio conseguiu fazer-ensinar teologia, com profunda liberdade crítica e autocrítica, na Igreja e como Igreja. E isso não é simples. Não era um teólogo do confronto em flanco aberto ou da vanguarda, do lançar-se na abertura de novas fronteiras para a fé cristã. Embora atento e antenado diante dos acontecimentos, ele dedicava-se mais ao cotidiano da caminhada, ao cuidado da explicitação e consolidação dos processos dialéticos de crescimento humano na medida em que eram aflorados pelo caminho. Libanio apostava nos processos pessoais, eclesiais e sociais e sabia como acompanhá-los com reverência e respeito.

 

Não é simples fazer-ensinar teologia no caminho, ou seja, inserido numa Igreja repleta das ambiguidades humanas, com suas desafiantes contradições. Se parece mais fácil romper com a instituição, Libanio optou por permanecer no seio dos embates internos e externos da vida da Igreja. Com humildade aprendiz, cultivo da paciência histórica e busca de lucidez, Libanio permaneceu fiel, como os Mestre de Nazaré, até o fim. Foi alguém profundamente livre e consciente dos limites e possibilidades postos pela instituição. Mas, sempre atento ao discernimento dos sinais do tempo, ele captava, com grande habilidade, as novidades do Espírito e as tendências trazidas pelas novas gerações e pela diversidade dialética dos cenários. Ele sabia a quem servia: ao dinamismo libertador do Reino de Deus.

 

À guisa de conclusão

Libanio deixou vasta obra consignada em livros, inúmeros artigos, conferências, palestras, vídeos, aulas e homilias. Para conhecê-la recomendo acessar o site feito em sua homenagem que, de forma primorosa, oferece amplo acesso ao legado libaniano: http://jblibanio.org.br. Mas, o mais precioso e saboroso, não está em suas produções. Encontra-se vivo e atuante, alojado no coração de quem com ele conviveu e aprendeu a dedicar-se à maravilhosa arte de amar e servir.

 

Edward Neves Monteiro de Barros Guimarães é mestre em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia e professor no Centro Loyola.