Chega setembro e voltavamos à escola. Ou, mais estrondoso ainda, ingressavamos na escola pela primeira vez. Com que palavras se evocam essas figuras que, nos anos primeiros da nossa formação, nos ensinaram não só a ler e a contar, mas antecipadamente nos revelaram o que viria a ser impacto disso na nossa vida. São figuras matriciais, protagonistas pacientes que não se assustaram com a nossa turbulência e ignorância, que ativaram em nós o espanto, a inteligência e a dedicação, e fizeram de nós aquilo que depois seremos até ao fim: aprendizes.

Há dias dei comigo a pensar numa das minhas professoras do ensino primário. Conheci-a no último ano do primeiro ciclo do ensino básico, a então quarta classe. Havia feito os anos iniciais de escolaridade em Angola e chegava à Madeira, onde para mim tudo era novo e, certamente, também difícil, penso eu agora. A escola ajudou-me a refazer de dores de que eu não era consciente. Lembro-me de três episódios. O primeiro foi uma aula fora da escola, por meados de outubro: a professora levou-nos ao caminho do cais, serpenteado de grandes árvores, para que recolhêssemos folhas de outono. Eu até aí não sabia o que era o outono, habituado às duas estações africanas. Entreguei-me, por isso, àquela atividade um bocado às cegas, valorizando erroneamente alterações mínimas nas folhas, coisas que o verão produzira nelas. Enchi as mãos de folhas que me fizeram ouvir aquela que é a primeira frase que recordo da professora: “Essas não são ainda as folhas do outono.” A verdade é que, não sei bem porquê, recebi aquela correção sem descorçoar. Deve ter sido feita no tom certo. Voltei àquele caminho sozinho e com mais atenção. Encontrar o outono nas folhas tornara-se uma tarefa pessoal importantíssima e depressa aquelas folhas amareladas e vermelhas, como se fixassem em si uma labareda, vieram a ser a minha primeira coleção, para desconcerto dos meus irmãos e primos, que seguiam com ironia e desespero aquele meu súbito arrebatamento de caçador de inutilidades. Porém, alguma utilidade tiveram aquelas horas perdidas, pois, quando a professora nos pediu uma composição escrita sobre o outono, tinha alguma coisa para dizer. Isso, porém, não diminuiu a surpresa que para mim foi o modo como a professora festejaria a minha composição, colocando-a num quadro de cartolina, dependurado numa das paredes da sala. Experimentei contentamento e vergonha, pois na infância tudo nos custa mais do que se mostra, até a alegria. Este foi o segundo episódio. O terceiro foi dramático e não teve nada de escolar, mas atesta como os professores humanizam a escola, evitando que ela se torne uma máquina de processos e de técnicas. O barco onde trabalhava o meu pai não tinha entrado no porto, falava-se à boca pequena de um possível naufrágio e que os tripulantes estariam dispersos, e, quem sabe, mortos. A minha mãe sacudia como podia a nossa angústia e não tinha dúvidas de que o melhor seria não faltarmos à escola. Assim foi. Recordo que o nó que tinha na garganta estrangulava o meu corpo e que choramingava. A professora falou-me com desembaraço, como se fala aos crescidos nesses momentos, mas deu depois uma parte da aula sentada a meu lado. 

Sei muito pouco da vida desta mulher maravilhosa que na minha cabeça ficou sempre como “a minha professora”. E o nosso encontro mais recente, teve o seu quê de cómico. Ela assistiu a uma sessão em que eu falava e no final veio cumprimentar-me. Senti uma emoção que não fui a tempo de esconder. E atrapalhado perguntei se ainda dava aulas. Ela deu uma gargalhada e, nesse momento, os nossos olhos com doçura se cruzaram. Só então me dei conta de como e porquê, dentro de nós, fantasiamos que o tempo não passa.

Dom José Tolentino Mendonça

Revista Expresso 5.09.20

Publicado in: imissio.net 06.02.2023

imagem: pexels.com