Dia desses, vi meu primeiro filme de zumbis. Embora me interesse pelo imaginário de vampiros e lobisomens, confesso que não assistia filmes de zumbis por medo, por pensar que era um terror meio trash que me faria mal. Bom, vamos tentar elaborar essa questão que coloco inicialmente como algo pessoal. Alguém pode dizer que estou disfarçando um preconceito, mas não é bem assim. Quer dizer, talvez seja, mas vou relutar até o fim, porque se eu tiver algum preconceito, sentirei vergonha do meu preconceito.

 

Aproveito aqui para fazer um parêntese ainda nesse tom. Uma certa dose de vergonha, sobretudo no que diz respeito à vida pública, não é de todo ruim. A vergonha pode parecer um sentimento conservador, mas me parece também um sentimento inevitável, como a inveja. Mesmo que não seja uma coisa boa, a gente sente coisas desse tipo, da vergonha e da inveja. E não é por sentir coisas assim que elas se tornam boas. Tudo é mais complexo. É verdade que a vergonha é um tipo de sentimento que serve de mediação a outros. Eu sinto vergonha de ter medo, por exemplo, porque no fundo, no imaginário, a coragem é mais valorizada, ou sinto vergonha de ter ciúme ou raiva porque, igualmente, o ciúme e a raiva me desvalorizam diante de outros que não admiram esses sentimentos. A vergonha sinaliza para os valores de um época. Que nos tocam a todos e revelam um certo senso do que é “comum”.

 

Não estou fazendo o elogio da vergonha, apenas dizendo que eu sinto vergonha de ter preconceitos. E de ter preconceitos estéticos, como esse que talvez tenha me levado a não assistir filmes de zumbis.

 

Assisti a meu primeiro filme de zumbis e fiquei com uma sensação péssima. Em Extermínio 2 não restou aquele último sobrevivente que em todo cinema distópico dá um último sinal de esperança na comunidade humana, na vida possível e até mesmo na promessa de uma felicidade que há de vir. Na mesma noite, além do mal estar difuso, tive um pesadelo com redes sociais em que o foco era a solidão inevitável do mundo atual e a transformação de pessoas humanas em bonecos da Disney.

 

O filme parecia fechado nele mesmo, mas o que aparece no cinema é sempre um pouco espelho da realidade. E foi então que percebi que eu não estava com medo do filme de zumbis porque fosse humor trash, ou coisa de mau gosto (o mau gosto é um dos meus objetos de análise assim como o “bom gosto”, quem vai esquecer do “esteticamente correto” que nos controla hoje?), mas porque alguma verdade bem desagradável podia aparecer. E essa verdade apareceu.

 

A zumbificação do mundo

De que verdade estou falando? A verdade da zumbificação do mundo. Cada época tem os monstros que merece, digamos assim. Toda imagem em cada época revela energias psicológicas, morais e políticas que são sua verdade mais inerente. Ou seja, aquilo que aparece mesmo quando não devia aparecer, quando seria melhor que não aparecesse. Se nos séculos 19 e 20 os vampiros fizeram sucesso, no século 21 os zumbis tomaram a cena e os vampiros parecem cada vez mais antiquados.

 

O que tem um zumbi que o vampiro ou qualquer outro monstro mais clássico, por assim dizer, não tem? Uma determinada relação com o tempo. Vampiros viviam entre o dia e a noite, se moviam lentamente, precisavam enganar suas vítimas com gestos e simulações que exigiam de um tempo para acontecer. Vampiros se transformavam em morcegos. Eram ligados à animalidade e, desse modo, com a vida. Assim também acontecia com os lobisomens. Qualquer vampiro atravessa os séculos e seu tempo é medido em séculos. Por isso, a narrativa do vampiro é longa e sempre sobra alguém para o futuro.

 

Já o filme de zumbi mostra uma vida vivida como morte, dia e noite já não importam. O corpo do zumbi não tem saúde nem vitalidade e nenhum sangue o alimenta. O corpo zumbi atua sem esperança alguma. Os vampiros sobreviveram na época romântica como a tristeza de mortos que viviam como vivos, ou, melhor ainda, como seres límbicos, larvares entre a vida e a morte. Já o zumbi é sem futuro e, por isso, vive sem esperança alguma, no mais completo desespero. Por isso, sem grandes metamorfoses, as pessoas se tornam zumbis em vinte segundos, sem chance de retorno, sem qualquer expectativa de salvação.

 

Kierkegaard, autor cristão e romântico do século 19, escreveu um livro chamado A doença para a morte, no qual fala sobre o desespero. O desespero seria justamente a “doença para a morte” ou, se pensarmos bem, a vida vivida como uma doença na qual não se pode esperar mais nada.

 

Chegamos nesse lugar com o projeto-programa neoliberal. Adequado para o surgimento e para a sustentação da experiência zumbi.

 

Se a racionalidade técnica é a racionalidade da dominação, como diziam Adorno e Horkheimer em sua Dialética do Iluminismo, entende-se por que o tipo de susto zumbi é diferente do susto do vampiro. Vimos aliás, essa mutação na história do cinema. Da lentidão sepulcral de Nosferatu aos voos rasantes de Deixa ela entrar (2009), também o vampiro se tornou mais ágil. Até os vampiros sofrem de zumbificação. Dessa mudança no movimento que implica a velocidade das máquinas e das conexões digitais.

 

O susto zumbi é rápido porque não há tempo há perder. Ele é instantâneo como os movimentos da câmera que nos mostra o mundo zumbi. De repente, é estranho, mas ninguém sente mais susto algum ao ver um filme de terror tão intensamente pavoroso. O terror se tornou literal, vemos atores e espectadores anestesiados de tanto pavor. A coisa toda ficou naturalizada.

 

A política zumbi

A estética zumbi caracteriza a nossa época. E a ela corresponde uma política zumbi.

 

Michel (para) Temer é, na sabedoria iconográfica popular, um vampirão, como dizem há tempos. Porém, com a demonstração do apodrecimento generalizado dos personagens políticos, entramos com força na era dos zumbis políticos. Não espanta que a sabedoria iconográfica da internet tenha configurados Aécios e outros como personagens caricatos desse processo de zumbificação da política.

 

Desesperados por dinheiro, por poder, adoecidos para a morte, de dentro dela, todos correm para o alvo que é o corpo vivo ainda saudável, não para sobreviver nele, mas para puxá-lo para dentro da morte sem esperança, nem expectativa. A zumbificação acontece no tempo dos zumbis que é também o tempo digital, no qual tudo é instantâneo, no qual não há tempo para a salvação. O niilismo é a última verdade.

 

Ao corpo devorado pelo desespero podemos dar o nome genérico de democracia. Por isso, a pergunta urgente é: como produzir democracia e qual seria a sua chance, a sua qualidade, em tempos de zumbificação geral?

 

Marcia Tiburi 

In: Revista Cult 24.05.17