Nos tempos recentes nenhum papa falou como o papa Francisco. Ontem disse aquilo que pensa com franqueza, passando por cima de linguagens alusivas e estilo diplomático. Este discurso ecoa aquele que S. Bernardo – monge, todavia, não papa – ousou dizer no século CI ao papa e à sua corte: palavras que poucos souberam escrever ou proclamar sobre a correção dos vícios eclesiásticos nos momentos em que se tornava urgente uma reforma da Igreja “in capite et in corpore” [na cabeça e no corpo].
Mas mais ainda, ecoa o Salmo 101, em que a cabeça, o guia do povo de Deus promete ao Senhor não só caminhar com coração íntegro, mas também afastar quem, junto dele, tem o «coração perverso», «o que, às ocultas, calunia o seu semelhante», «o arrogante e orgulhoso», o «fraudulento» e o «mentiroso». O papa Francisco conhece bem a psicologia dos «homens religiosos», presentes entre os escribas e os fariseus, hoje entre os cristãos «em cada cúria, comunidade, congregação, movimento eclesial».
Não só nos padres do deserto dos primeiros séculos era habitual a compilação de «catálogos» de vícios e pecados «capitais»: também as gerações de cristãos como a minha, formatadas antes do Vaticano II, tinham à disposição prontuários de pecados «em pensamentos, palavras, atos e omissões» para se prepararem para o sacramento da Confissão, para assim fazerem um exame de consciência pessoal sobre a sua própria inadequação relativamente às exigências colocadas pelos Dez Mandamentos e, com mais profundidade, pelo próprio Evangelho. Foi em algo de semelhante – fortalecido ainda pela análoga tradição de Loyola – que o papa Francisco pensou no seu discurso à cúria romana por ocasião do Natal. Assim expôs com franqueza um detalhado elenco de quinze «doenças da alma», da patologia do «sentir-se imortal ou indispensável» até à do «aproveitamento mundano e dos exibicionismos».
Neste catálogo das doenças dos homens religiosos emerge o consentimento a uma tentação-chave, a do poder, tentação colocada pelo demónio também a Jesus Cristo, e por Ele rejeitada e vencida. Sim, a sede insaciável de poder torna aquele que lhe cede capaz de difamar e caluniar os outros nos jornais e nos blogues, através de jornalistas complacentes, capazes até de odiar por comissão. O papa Francisco não inventa nada, simplesmente lê o dia-a-dia que deforma e desfigura a Igreja enquanto corpo do Senhor. É uma análise cortante, fruto também da experiência diária destes vinte e um meses de pontificado, um exame minucioso não tanto ao passado e aos escândalos que precederam a sua eleição, mas sobretudo a um presente que perdura.
E é significativo que o antídoto universal para todas estas patologias o papa Francisco o ofereça enquadrando o seu discurso – rico de citações bíblicas e de referências à sua exortação “A alegria do Evangelho”, confirmação do enraizamento na Palavra de Deus e no projeto da sua linguagem e ação – precisamente na compreensão da Igreja como «corpo místico de Cristo». Ora, a imagem do corpo composto por muitos membros como metáfora de uma comunidade pertence à tradição clássica, antes ainda que ao Novo Testamento, mas a conotação precisa que o papa delineia a quantos o ajudam no governo da «Igreja de Roma que preside na caridade» é a íntima comunhão deste corpo dinâmico e de cada membro singular com o Senhor: «A cúria, como a Igreja, não pode viver sem ter uma relação vital, autêntica e sólida com Cristo».
Cada cristão, mas sobretudo cada pessoa munida de autoridade ou comprometida num ministério pastoral, é convidada a perguntar-se: «Sou um homem de Deus ou sou um administrador de Satanás?». Não há alternativa: porque se é certo que todos somos tentados e todos caímos, também é verdade que a fratura existe entre quem cai e procura levantar-se, confessando ser pecador, e quem, pelo contrário, aceita cair até ser um corrupto, chegando ao ponto de se exibir a si próprio diante dos outros como pessoa justa e exemplar.
Este objetivo, bem mais árduo do que qualquer reforma funcional, é indubitavelmente inovador e, ao mesmo tempo, profundamente radicado na mais autêntica tradição cristã: remontar um aparelho burocrático eclesiástico à sua verdadeira natureza de corpo comunitário ao serviço da Igreja universal. Dir-se-á que as doenças são de tal maneira numerosas, graves e espalhadas que exigem uma cura imediata, e que o tempo da convalescença não será imune a recaídas, mas sabemos bem que uma condição preliminar para qualquer terapia é um diagnóstico preciso, e nisto as palavras do papa Francisco são extremamente apropriadas.
Sim, há na cúria romana muitas pessoas cuja vida cristã é um testemunho de fé, de qualidade evangélica, de serviço leal e amoroso ao papa e à Igreja, e podem também ser pessoas com uma vida dupla «escondida e muitas vezes dissoluta», outras «covardes» que falam mal do irmão, ainda ouras «mesquinhas, infelizes» porque perderam a memória do seu Senhor e «olham apaixonadamente para a própria imagem e não veem a imagem de Deus impressa no rosto dos outros». Todavia, o papa Francisco não perde a esperança de ver a cúria reformar-se, converter-se numa «orquestra que produz barulho» desarmónico e que provoca «autodestruição ou fogo amigo», numa autêntica comunidade de discípulos do Senhor Jesus, numa comunidade de pecadores perdoados, capazes de seguir o convite de S. Paulo aos cristãos de Éfeso para viverem «segundo a verdade na caridade, procurando crescer em cada coisa para aquele que é a cabeça, Cristo, do qual todo o Corpo, bem ajustado e unido, por meio de toda a espécie de articulações que o sustentam, segundo uma força à medida de cada uma das partes, realiza o seu crescimento como Corpo, para se construir a si próprio no amor» (Ef 4, 15-16).
Já escrevi e volto a escrever: o papa Francisco faz-se eco do Evangelho e a sua paixão pelo Evangelho condu-lo a medir a vida da Igreja e de cada membro a partir da fidelidade ao Evangelho. Mas que não haja ilusões: quanto mais o papa percorre este caminho, mais desencadeará forças demoníacas operantes na história, e o resultado para os verdadeiros crentes será o surgimento da cruz de Cristo. Não é verdade que na Igreja se estará melhor, é verdade o contrário: a Igreja, efetivamente, só pode seguir Jesus na rejeição sofrida e na perseguição, e não poderá obter sucessos mundanos se incarnar a mensagem do seu Senhor.
Enzo BianchiPrior da Comunidade de Bose, Itália
In "Vatican Insider"
Trad.: Rui Jorge Martins
Publicado em 23.12.2014