Um modo para descrever a estranheza e a dor, mas também a oportunidade deste ano das nossas vidas é, por exemplo, este: constatar a importância que, de repente, passaram a ter os números. Os meses deste ano interminável trouxeram essa novidade. Os acontecimentos grandes ou pequenos do mundo, os fatos da nossa vida pessoal, quaisquer que eles fossem, vimo-los perfurados pelo zumbido dos números. Dentro de nós, a impressão que tantas vezes tivemos é a de que os dias não se contaram por palavras ou por imagens, como estávamos habituados, mas sobretudo por números. Números desconhecidos, aguçados, trémulos, foscos, distópicos. Números que nos engoliam no seu ventre confuso, no seu universo sempre mais dilatado à medida que os tentávamos explicar, à medida que se multiplicavam os gráficos comparativos ou a infinidade de variantes e opiniões. Mas, ao mesmo tempo, números que enigmaticamente nos chamavam — e nos chamam — à atenção para que vejamos como a vida se declina também em medidas exatas, em concretos números. E números que não narram apenas o ziguezague de testes efetuados, de contagiados, de curados, de doentes em terapia intensiva ou de vítimas. Que não relatam apenas vulnerabilidade e restrições, dias de emergência e confinamento, empobrecimento e vida adiada. Mas falam também do primado reconhecido à vida, da resiliência que descobrimos possuir, do empenho, da dádiva de tantos, do reencontro conosco próprios, da reconstrução e do cuidado. O que quer que venha a seguir não pode ser um mero virar de página. De um modo que não pensávamos, o futuro entrou-nos pela porta.
Esperançosa frase essa que escreveu Albert Camus em tempos também nada fáceis: “No meio dos flagelos aprendemos que existe nos seres humanos mais coisas para admirar do que para desprezar.” É verdade: talvez não voltemos simplesmente ao mundo de antes. Que é, como quem diz: talvez não nos tenhamos tornado piores. Talvez a máscara não se nos cole definitivamente ao rosto. Talvez o distanciamento seja apenas uma forçada esquadria externa que o nosso interior não confirma, bem pelo contrário. Talvez ativemos a nossa responsabilidade por uma ecologia integral, celebrando um novo contrato social com a Criação. Talvez investamos em encontrar equilíbrios mais satisfatórios: entre o lucro e o dom, entre o crescimento e a sustentabilidade, entre o individual e o comunitário, entre o direito a usar e o dever de reutilizar, entre o furor da tecnologia digital e a natureza artesanal da nossa humanidade e do que a ela mais profundamente diz respeito. Talvez aprendamos a interagir de modo mais inteligente com a complexidade do mundo, mas prossigamos também mais disponíveis a nos maravilharmos com a sua desarmante simplicidade. Talvez que entre as competências que mais passemos a treinar estejam a gentileza e a fraternidade. Talvez não deixemos as escolas como realidades isoladas, mas as encaremos como centros de uma ampla rede implicada num pacto educativo de futuro. Talvez, tão claramente como percebemos o lugar da educação física ou da científica, percebamos o lugar da educação emocional e espiritual. Talvez, por fim, troquemos o conflito pela empatia. Talvez, quando pronunciemos o verbo conectar, este já tenha ganho o sentido de uma interação presente e criativa, a 360 graus com a realidade, e não apenas o de estar imobilizado diante de um ecrã. Talvez, finalmente, nos preocupemos mais com o que iremos transmitir do que com aquilo que vamos herdar.
Penso naquela passagem do salmo bíblico, que propõe: “Ensina-nos a contar os nossos dias para que guiemos o nosso coração na sabedoria.” Termos contado tão dramaticamente os dias deste ano que termina, a que sabedoria nos conduzirá?
Dom José Tolentino Mendonça
31.12.2020 in: imissio.net