Na celebração de Natal da minha família, minha cunhada, Ana, nos presenteou com um texto que lhe foi dado por uma amiga budista, e que dizia assim:

 

Conta uma antiga lenda que o mestre de um mosteiro estava à morte e mandou reunir todos os seus discípulos.

- Até aqui, fui o mestre de vocês e sempre lhes ensinei como falar com Deus. Agora, que estou partindo ao Seu encontro, vocês terão que fazer isso sozinhos. Vocês guardaram bem o lugar sagrado na floresta, onde eu invoco a Deus? Pois bem, vão até lá sempre que quiseram falar com Ele. Façam uma fogueira, bem no centro da clareira, exatamente como eu lhes ensinei. Em seguida, façam a oração, usando as mesmas palavras que eu sempre usei. Façam exatamente assim, e Deus virá a vocês.

Depois que o Mestre morreu, a primeira geração dos seus discípulos obedeceu religiosamente às suas instruções, e Deus sempre veio.

A segunda geração de discípulos, porém, se esqueceu do modo exato de acender a fogueira, assim como o mestre ensinara. Mesmo assim, iam até o lugar sagrado, ficavam lá, parados, faziam a oração, e Deus vinha.

Na terceira geração as pessoas já não se lembravam de como acender a fogueira nem sabiam o lugar exato, na floresta. Mas reuniam-se, diziam a oração, e mesmo assim Deus vinha.

Na quarta geração ninguém se lembrava de acender fogueiras, ninguém sabia mais que havia um lugar sagrado na floresta, e, finalmente, não conseguiam se recordar nem das palavras da oração.

Mas um deles ainda se lembrava de que havia uma história sobre pessoas que se reuniam para falar com Deus. E que elas se amavam e se queriam bem. Ele compartilhou isso em voz alta. E Deus veio...

 

A pequena parábola me lembrou outra, de outro mestre, Rubem Alves. Ele conta:

 

Um amigo meu, nos Estados Unidos, comprou uma casa velha, de mais de um século, conservada, como muitas que por lá existem. No entanto, havia muitas coisas a serem consertadas. Tudo teria que ser pintado de novo. Antes de pintar com as cores novas ele achou melhor raspar das paredes a cor velha, um azul sujo e desbotado. Raspado o azul, debaixo dele surgiu uma cor rosa, mais velha ainda que o azul. Raspou-a também. Aí apareceu o creme, e depois do creme o branco...

                Cada morador havia coberto a cor anterior com uma cor nova, reforma após reforma, mudança após mudança...

                E assim, meu amigo foi indo, pacientemente, raspando camada após camada. Queria chegar à cor original, que apareceria depois que todas as camadas de tinta fossem raspadas. Até que o trabalho, finalmente, terminou. E o que encontrou foi uma surpresa inesperada que o encheu de alegria.

Na última raspagem, na textura primeira, original, mais bonita que qualquer tinta, a madeira mais linda, o maravilhoso Pinho de Riga, com nervuras e desenhos formando sinuosos arabescos de cor castanha sobre um imponente fundo marfim.

 

Esta noite, em todos os cantos do mundo, famílias, comunidades, amigos estarão reunidos festejando a chegada de mais um ano a que chamaremos novo.

Muita gente, talvez, terá esquecido que toda festa é, na verdade, um ritual. E todo ritual conta uma história. A Eucaristia cristã, católica, acontece ao redor de uma mesa. Sobre ela, há comida e bebida. Há música, cantos, palavras compartilhadas, pessoas que se alegram por se encontrar, por estarem juntas, em comunhão.

Em todas as crenças, e até nas descrenças, há ritos assim. Mesmo que as pessoas não saibam ou não se recordem da sacramentalidade das coisas, dos objetos, da profundidade dos gestos, da universalidade das palavras.

Onde houver um desejo que nos aproxime, ao redor de uma mesa ou em qualquer lugar, na emoção de um abraço, na saudade que brota, espontânea, nesses momentos mágicos e místicos em que o coração humano se aproxima da beleza original, do lugar sagrado de onde todos viemos, onde há amor, Deus não precisa vir.

Ele já está.

Feliz Ano Novo!

 

 

Eduardo Machado

Escritor e professor 

31/12/2013