O que acontece a essa gente que no meio de uma pandemia só se preocupa com as cotações da Bolsa? Essa gente que mesmo no meio da miséria mais desmoralizante ainda pensa que seu catre é melhor que o catre alheio? Que raio de humanidade é essa que não sente, não vê, não ouve, senão o que lhe chega ao pé da porta, o que lhe fisga o nervo, o que lhe quebra o osso, o que lhe subtraem do próprio bolso? Pertence de fato à espécie humana essa gente armada até os dentes, que não enxerga o outro a não ser como um alvo? Que tipo de gente é essa que se fotografa sobre o lombo de um cadáver como um prêmio angariado, que chama de esporte a uma matança, de erro a um estupro, de incidente a duzentos e cinquenta assassinatos? Que espécie é essa imune a toda lei, toda Constituição, toda justiça, a quem é dado o poder de matar, e, não lhe fosse dado, tomaria à força e assim igualmente mataria? Que bicho maldito é esse que não se reconhece bicho, mas se regozija em ser maldito, em nada se importando, quem sabe mesmo se divertindo, se o que lhe sai da boca é crime, e o que lhe sai das mãos, mais crime, de que elemento é feito isto que empesteia a terra e o ar e água por onde passa, que desgraça uma floresta, que arrasa uma cidade, que tipo de ser é este, afinal? É isto um homem?
Mariana Ianelli
(Em Dia de amar a casa, Porto Alegre: Ardotempo, 2020)