"O bóson de Higgs era a peça que faltava no chamado Modelo Padrão, que descreve tudo sobre as partículas que conhecemos no Universo. Achá-lo significa completar esse modelo com enorme sucesso", escreve Marcelo Gleiser, professor de física teórica no Dartmouth College, em Hanover (EUA), em artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo, 08-07-2012.

 

Segundo ele, "na física de partículas, uma 'descoberta' é um evento tão raro que a chance de surgir outra nova explicação é de uma em 3,5 milhões". E continua: "O interessante é o que está por vir. Sabemos que a partícula é um bóson. Mas não sabemos se corresponde à previsão mais simples do Modelo Padrão ou se é algo mais exótico. Todos torcem pelo exótico, pois terão abertas portas para uma nova física. Depois de 45 anos, seria uma pena encontrar só o Higgs".

 

Eis o artigo.

 

Como não poderia deixar de ser, nesta semana escrevo sobre a descoberta sensacional do bóson de Higgs, anunciada na última quarta feira, 4 de julho, pelos cientistas do laboratório Cern, em Genebra, na Suíça. Começo repetindo a história de como o bóson de Higgs ficou conhecido como "partícula de Deus".

 

Obviamente, uma partícula elementar não tem nada a ver com Deus. O apelido vem do título do livro de Leon Lederman, o prêmio Nobel que durante anos caçou a partícula (a busca pelo bóson de Higgs durou ao todo 45 anos!).

 

Lederman conta que originalmente queria dar ao livro o título em inglês "The Goddamn Particle" ("A partícula Amaldiçoada por Deus" ou simplesmente "A Desgraçada da Partícula"). A ideia era demonstrar sua frustração em não tê-la encontrado. Porém, o editor do livro achou que, com a exclusão de "desgraçada" do título, o livro venderia bem mais. A coisa vingou - para o livro de Lederman e para a partícula.

 

Mas por que tanta empolgação com o bóson de Higgs, que inclui bilhões de dólares gastos na busca por uma mera partícula?

 

Essencialmente, o bóson de Higgs era a peça que faltava no chamado Modelo Padrão, que descreve tudo sobre as partículas que conhecemos no Universo. Achá-lo significa completar esse modelo com enorme sucesso.

 

O papel do Higgs é único entre as partículas: ele é responsável por "dar massa" a todas as outras. Vale lembrar que, na física moderna, as entidades essenciais são os campos. Partículas são excitações desses campos, como pequenas ondas na superfície de um lago. O campo de Higgs estaria por toda a parte, como o ar na nossa atmosfera. Ele interage com os campos de outras partículas: por exemplo, o campo dos elétrons ou o dos fótons (o campo eletromagnético), as partículas de luz. Essa interação tem uma intensidade que varia de campo para campo. É essa intensidade variável que determina a massa das partículas e as suas diferenças.

 

Por que, então, o nome de "bóson"? As partículas que conhecemos podem ser divididas em dois grupos, chamados genericamente de bósons e férmions. "Bóson" homenageia o físico indiano Jagadish Chandra Bose, que desenvolveu, junto com Einstein, as propriedades dessas partículas. Elas gostam de existir em grupos com muitas delas. O Higgs e os fótons são bósons.

 

Já os férmions (em homenagem ao físico italiano Enrico Fermi) são mais exclusivos e no máximo aparecem em pares. Os elétrons e os prótons são férmions.

 

Ninguém "viu" um bóson de Higgs, pois eles se desintegram em outras partículas em minúsculas frações de segundo. O que se "observa" são os vários produtos dessas desintegrações. Os resultados são estatísticos, devido aos bilhões de colisões e desintegrações que ocorrem. Na física de partículas, uma "descoberta" é um evento tão raro que a chance de surgir outra nova explicação é de uma em 3,5 milhões.

 

O interessante é o que está por vir. Sabemos que a partícula é um bóson. Mas não sabemos se corresponde à previsão mais simples do Modelo Padrão ou se é algo mais exótico. Todos torcem pelo exótico, pois terão abertas portas para uma nova física. Depois de 45 anos, seria uma pena encontrar só o Higgs.

 

Marcelo Gleiser

Artigo publicado na Folha de São Paulo 08.07.2012