Para crentes e não-crentes, o Natal é uma estação de confronto consigo mesmos. Por aquilo que os símbolos desta quadra dizem ou não a cada um, por aquilo que as palavras acordam, pela presença ou pela ausência de uma transcendência nos dias que se avizinham. Cada um vive à sua maneira ou como interiormente pode. Mas uma coisa inegável é observar este silencioso sobressalto, esta espécie de “sentimento oceânico” que nos percorre em conjunto, que sem sabermos como nos transporta e que ganhamos em escutar, mesmo se no final as interpretações encontradas possam ser distintas. Recordo-me, a esse propósito, do debate que ligou, por exemplo, Sigmund Freud e o escritor Romain Rolland.

Um dos temas a que Freud prestou atenção foi, como é sabido, a experiência religiosa. O tema fez sempre parte das suas investigações, mesmo quando estas versavam diretamente outros assuntos. E não restam dúvidas sobre a importância que atribuía à religião no âmbito da economia psíquica do sujeito. É certo que a sua tese de fundo remove do fenómeno religioso toda a dimensão externa de revelação e explica-o unicamente à luz dos conflitos não-resolvidos que vêm da primeira infância (desse intrincado e gigante magma, feito, segundo ele, de medos, desejos e culpas a que se procurará a vida inteira dar respostas). Mas, ainda assim, Freud teve a oportunidade de realizar diálogos marcantes neste âmbito. Talvez o mais significativo tenha sido precisamente o que ficou registado na sua correspondência com Rolland. Este, que foi Prémio Nobel da Literatura em 1915, era um intelectual poliédrico, um arquiteto de pontes: entre o Oriente e o Ocidente, entre o ensino académico e a militância pacifista, entre o compromisso civil e a experiência espiritual. Definia-se a si mesmo como um viandante em busca da verdade, e o motor dessa busca era, segundo ele, um “instinto religioso”, que trabalhou com audácia e a modo seu.

Foi Freud quem o procurou, enviando-lhe uma primeira carta, em fevereiro de 1923, e as trocas epistolares durariam até ao ano da morte do pai da psicanálise, em 1939. É curioso constatar como o debate privado que mantinham alcançava depois um eco na produção ensaística de ambos. Recebendo um exemplar de “O Futuro de Uma Ilusão” (dezembro de 1927), Rolland critica Freud por considerar uma mera ilusão supor que as respostas que a ciência não nos pode dar podemos consegui-las noutro lugar (e quando este diz “outro lugar” pensa sobretudo na religião). As representações religiosas não passam, para ele, de ficções que corporizam a necessidade infantil da proteção. A esta radical redução psicológica, Rolland contrapõe “o facto simples e direto” que continua a provar que a religião é uma experiência viva e inalienável: a “sensação de eterno” que ciclicamente assoma ao coração de cada um e nada cancela; a consciência de que somos o ponto de uma relação mais vasta do que nós próprios; a experiência de imersão num “sentimento oceânico”, transbordante e vital, que é uma grafia essencial da vida. Esta corrente espiritual que nos envolve pode-se adjetivar como “oceânica”, por analogia àquilo que o mar desperta em nós. Ao mesmo tempo traz ao coração humano a ressonância de algo primordial e a evidência sensível do que é maior, do que nos transcende, do que só tocamos com o desejo, do que tentamos nomear chamando de infinito. Para Roland, se não se encara de frente o impacto deste “sentimento oceânico”, não se compreende o caminho do humano. 

Os dias 24 e 25 de dezembro passam depressa, mas as questões que colocam à nossa humanidade são mais do que lentas. São irremovíveis.

Cardeal Dom José Tolentino Mendonça

27.12.21

In: imissio.net