Etty Hillesum em 1937 (foto de Bernard Meylink)

Para o pe. Antônio Damásio

Etty Hillesum é um nome que vem ganhando o mundo desde as últimas décadas. O que parece ser um boom literário é na verdade resultado de uma repercussão inevitável, que começa com a publicação clandestina de dois textos durante a guerra, um nada de pólen capaz de mudar a cor de um descampado.

Em 1984 surgiu no Brasil a primeira antologia de seus diários pela editora Record. Agora, a editora Ayiné anuncia uma nova edição brasileira dos diários para novembro. Quem já passou por algumas centenas dessas páginas (os diários e as cartas, na íntegra, somam quase mil páginas) pode prever por alto o que virá com essa redescoberta: um encrespar do pensamento (e um coração batendo no que se pensa), ondas de novos estudos na mística, na psicologia, na crítica literária, dissertações e teses, artigos, citações, poemas e crônicas como esta.

Holandesa de sangue russo, judia de coração cristão, Etty é como uma síntese inflamável de oriente e ocidente. Seus diários semeiam em toda parte. Há anos o padre José Tolentino Mendonça fala dessa mulher em suas homilias. O prior de Tibhirine, Christian de Chergé, que chamou seu assassino de “amigo do último instante”, também era leitor dos diários.

Na Colômbia, a Fundación Etty Hillesum acolhe as mulheres e as crianças vulneráveis de Bogotá. A carmelita descalça Cristiana Dobner, do monastério de Santa Maria do Monte Carmelo, na Itália, imaginou o encontro de Etty e Edith Stein no campo de Westerbork, como terá sido quando se cruzaram na barafunda dos transportes (e, de fato, elas se cruzaram), o que de mais íntimo podem ter dito uma à outra apenas com um olhar. O jesuíta Paul Lebeau, por sua vez, se mantém referência básica nos estudos dos diários com o livro “Um itinerário espiritual” em suas várias reedições de bolso.

Ávida de amor, Etty continua a fazer amigos do lado de cá, gente que cultiva leituras muito particulares de suas páginas. Quem vê algo da alma dessa mulher, através dos seus escritos, vê também ali sua alma implicada, convocada. É assim que Karima Berger, muçulmana, nascida na Argélia, vivendo na França do século XXI, pode amar uma jovem mística dos tempos da guerra, e reconhecer dentro dela, em seu espaço interno de silêncio, o mihrab das mesquitas.

Cada leitor, cada escritor, cada poeta amará essa mulher à sua maneira, e serão sempre muitos, serão sempre mais, como uma chuva de jasmins. Karima, essa amiga muçulmana que fala de um mihrab da alma, escreve uma carta, imensa e linda, para sua “chère Etty”. Uma carta para uma escritora que adorava cartas, e as tornava antológicas, manuscritas em letra urgente, como se entre dois séculos houvesse apenas uma película muito fina.

Falar desses diários é falar desde uma experiência profundamente pessoal. Cada um tem sua história para esse primeiro encontro, e a história fincando raiz, crescendo dentro, será esse leitor o amigo para quem Etty escreve sem conhecer-lhe o rosto, mas sabendo que virá, sim, amanhã virá. Ela também já esteve deste lado, amando os livros de Rilke, as cartas e os poemas de Rilke, a vida de um na palavra do outro, porque afinal nos falamos através dos tempos, porque nos ajudamos à distância de continentes e séculos, porque fazemos sempre, entre ontem, hoje e amanhã, algum tipo de música.

Íntima em seus diários e cartas, Etty enseja leitores íntimos dela. Aqueles olhos despertos. Aquela tremenda inteligência do coração. Quem nunca leu uma linha desses cadernos de repente se demora mirando uma mulher que nos encara, agora mesmo, seus olhos tendo emprestado fogo, minutos atrás, para o cigarro que lhe queima entre os dedos.

Não fosse ter caminhado longamente com as próprias dúvidas antes ter os pés cobertos de bolhas, não fosse o refúgio de uma escrivaninha antes de refúgio nenhum, talvez ela tivesse acabado entre os submersos. Não fosse a guerra, a viagem para o Leste, talvez hoje vivesse seu filho que nem nasceu. Etty foi cronista de sua época e a poeta que ela gostaria de ter sido tem muito de vida a ensinar aos da literatura, hoje.  Esther de Middelburg. O coração de Westerbork. Fruto do fosso da guerra em campos férteis de místicos. Servente no jardim das horas semeadas para os séculos seguintes. Lírio do campo. Jasmim depois da tempestade. Rosa das rosas de Rilke.

Mariana Ianelli

Escritora, mestre em Literatura e Crítica Literária pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, autora dos livros de poesia