Chega hoje às mãos dos fiéis católicos, e também a todos os homens e mulheres de coração aberto e espírito alerta para o mundo e os outros, o primeiro documento integralmente do pontificado de Francisco: a exortação apostólica Evangelii Gaudium (A alegria do Evangelho).
Aos que esperavam que questões controversas fossem abordadas e revertidas, alguma decepção. O papa reafirma os pontos nodulares da fé e da moral cristãs ou mesmo contorna alguns deles seguramente por entender que devam ser tratados em outros foros e outras instâncias. Assim é com o casamento entre pessoas do mesmo sexo, com os segundos casamentos etc. Dentro de menos de um ano acontecerá o Sínodo da Família, que seguramente tratará destas e de outras questões.
Agora é o momento de dar o tom de seu pontificado, que completa oito meses. E ele o faz com um texto que gira em torno daquilo que tem dito e repetido em todos os seus pronunciamentos desde que foi eleito no conclave: a centralidade do Evangelho. E a alegria que deve acompanhar aqueles que por ele pautam sua vida e vivem a missão de anunciá-lo.
Porém, apesar do tom otimista e exortativo à confiança e à alegria, o papa não mede palavras quando lança um projeto de conversão do papado, propõe a descentralização da Igreja ou apresenta um autêntico plano de reforma do Vaticano. O documento é crítico e também propositivo ao lançar o projeto para o futuro da Igreja, que inclui duros ataques contra os sacerdotes que brigam pelo poder, e fazem dela um campo de batalha e não uma comunidade evangelizadora e missionária.
O papa está convencido de que a Igreja necessita recuperar a frescura original do Evangelho, embora encontrando novas formas e métodos criativos de comunicá-lo. Neste ponto, segue de perto seu antecessor João Paulo II, que propunha uma evangelização nova em seu ardor, nova em seus métodos... Porém, insiste que isso não será possível sem uma conversão pastoral e missionária que represente mudança.
Por isso, a exortação tem um espírito reformador. O bispo de Roma deseja reformar as estruturas eclesiais, para que todas se tornem mais missionárias. E está certo de que isso não se fará sem uma séria descentralização na Igreja e sem recuperar o sentido da colegialidade, que ele aconselha as conferências episcopais a recuperarem e intensificarem.
Tal modelo de Igreja não pode ser unívoco, e o papa admite que haja outros modos de configuração para a comunidade cristã, além dos tradicionais empregados até agora. Em todo caso, o essencial é que a Igreja seja aberta e saia ao encontro das pessoas. Nada do tesouro de que é depositária deve permanecer fechado, mas sempre aberto e posto à disposição de todos. Nem mesmo os sacramentos devem permanecer inacessíveis. E aqui podemos encontrar afirmações ousadas do papa, que declara que a Eucaristia “não é um prêmio para os perfeitos, mas um generoso remédio e um alimento para os fracos”.
Empenhado em que a Igreja seja realmente apaixonada pelo exercício da evangelização, o documento adverte para os perigos mortais que rondam essa missão primordial: o pragmatismo incolor que desgasta a fé diuturnamente, o cuidado exagerado e ostensivo da liturgia, da doutrina e do prestígio da Igreja, sem que se preocupem com a inserção real do Evangelho, o clericalismo e o elitismo da hierarquia e dos sacerdotes, sinal evidente de uma preocupação narcísica com o poder e não com o anúncio da Boa Notícia.
Entre os obstáculos a uma autêntica evangelização, o papa aponta alguns dentro da Igreja: por exemplo, a discriminação da mulher, impedida de ter acesso aos postos de maior responsabilidade dentro da comunidade eclesial. Outros, no entanto, vêm de fora. E as palavras mais duras do pontífice vão para o atual sistema econômico, “injusto pela raiz”, criando uma economia que mata porque prevalece a lei do mais forte. E, assim, cria-se um sistema onde se excluem pessoas que passam a ser não exploradas, mas lixo, sobras. O dinheiro deve servir e não dominar.
Fiel a suas origens latino-americanas, o pontífice, em sua exortação, lembra a primazia dos pobres, que devem receber por parte da Igreja atenção prioritária sob pena de a evangelização não ser digna de crédito. E os pobres de hoje têm o rosto não apenas dos que passam necessidades econômicas mas, também, das vítimas de todo tipo de violência, e dos migrantes que peregrinam por um planeta que decretou o fim da geografia e cujas fronteiras se transformaram em trincheiras que vitimizam os mais fracos.
São muitos os desafios, mas o papa deixa prevalecer o otimismo e a esperança. Se se conseguir transformar a vida de uma só pessoa, vale a pena entregar-se ao trabalho de anúncio do Evangelho. Só podemos esperar que esse entusiasmo contagie todos nós que somos Igreja e, portanto, responsáveis pelo futuro do projeto do Reino de Deus anunciado por Jesus de Nazaré.
Maria Clara Bingemer
Texto publicado no Jornal do Brasil online em 28.11.2013
* Maria Clara Bingemer, teóloga e professora do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio, é autora de vários livros como 'Um rosto para Deus' (Ed. Paulus) e 'O mistério e o mundo – Paixão por Deus em tempo de descrença' (Editora Rocco). - agape@puc- rio.b