Há uma síndrome do Natal, como o há da primavera. Às vezes chega a primavera e não nos conseguimos adaptar facilmente a tamanha vitalidade, ao apelo ao renascimento que se pressente em nosso redor. Sentimo-nos embaraçados com essa espécie de recomeço do mundo, estranhamente vulneráveis e vazios, num frustrante desacerto com o surto primaveril. E a mesma coisa pode acontecer em relação ao Natal. De repente, no turbilhão dos dias, vemos avizinhar-se o Natal com todos os compromissos, com o que é necessário preparar, com o que tem de ser — e olhamos para ele esmagados. Há anos em que nos descobrimos entusiasmados por viver este tempo, e há outros em que parece uma violência tudo isto, porque nos percebemos em contraciclo, numa desamparada desolação. É para quem se sente assim que escrevo este texto de Natal.

Sim, o Natal não é apenas a festa do brilho e da abundância. Não é apenas a ronda das vozes felizes. É a festa dos esfomeados, dos sedentos, dos inquietos, daqueles que querem mais, dos que não se conformam com o apaziguamento de rotina, dos que sentem que tem de haver alguma coisa que vá além, dos que obstinadamente tateiam uma verdade, uma razão ou uma brecha algures no cerco da muralha. O Natal é a festa daqueles esfarrapados que não deixam de farejar longe até às estrelas, disponíveis para segui-las para lá das marcas das fronteiras, mesmo se por um incompreensível caminho colado ao chão, como o fizeram os Magos. Ou daqueles que, vivendo expostos ao relento, escutam a boa-nova de uma alegria e acreditam nela. Acreditam que possa ser possível o que habitualmente se declara impossível. E, mesmo na noite, trémulos, precários e puros, partem ao seu encontro, como aconteceu com os pastores de que o Evangelho fala. O Natal não se espelha apenas na fartura de sinais. Toca-se também na escassez e no desabrigo. Na solidão e na margem. Na força nua das direções e das perguntas sem resposta. Sendo assim, que tem o Natal eterno a dizer-nos? Que, no Mistério da Encarnação, a nossa humanidade passa a valer mais. Mesmo na sua indefinição, turbulência ou ruptura: passa a valer mais. Porque, aquele que nasce na manjedoura inaugura um novo ponto de vista, uma compreensão mais ampla, uma hermenêutica dissidente, faz uma leitura mais a fundo daquilo que somos.

Nós olhamos para um homem e dizemos logo: “Um homem é pouco para mudar a história.” Na verdade, que pode um homem perante a complexidade das coisas! Apressamo-nos, por isso, a descrer das suas possibilidades. Seria necessário não um homem, mas um super-homem que efetivamente superasse a endémica vulnerabilidade que trazemos. Seria necessário um ser apetrechado de tudo o que nos falta ou não somos. Uma versão melhorada daquilo que conhecemos. Porém, a história que o Natal desdobra aparece tatuada não no poder, mas na fragilidade; não na diferenciação, mas no desejo de aceitar tudo e se tornar semelhante. Afinal basta um homem. Deus manda à terra o seu Filho e ele vem sem nada, pobre, investido da fragilidade que contemplamos em nós próprios. Mas o Filho, “o Menino que nos foi dado”, vem audaciosamente revelar isto: que a nossa humanidade é o lugar da habitação de Deus. A impreparada humanidade, que tantas vezes nos desilude, a nossa vida inconcludente é a manjedoura de Deus. Por isso, o presépio não exclui ninguém. Ele integra a humanidade na sua inteireza, e ainda mais quando se trata de humanidades feridas. Da humanidade dos últimos, da humanidade subtraída, da vida dos excluídos, dos que se sentem sozinhos ou desadaptados, dos que atravessam o presente desejando outra coisa.

Cardeal Dom José Tolentino Mendonça

24.12.21

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