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Eis a primeira direção que seguiremos.  Quem diz espírito diz, antes de tudo, consciência.  Mas o que é a consciência?  É claro que não vou definir algo tão concreto, tão constantemente presente à experiência de cada um de nós.  Mas sem dar da consciência uma definição que seria menos clara do que ela própria posso caracteriza-la pelo seu traço mais aparente:  consciência significa primeiramente memória.  À memória pode faltar amplitude;  ela pode abarcar apenas uma parte ínfima do passado;  ela pode reter apenas o que acaba de acontecer;  mas a memória existe, ou então não existe consciência.  Uma consciência que não conservasse nada de seu passado, que se esquecesse sem cessar de si própria, pereceria e renasceria a cada instante;  como definir de outra forma a inconsciência?  Quando Leibniz dizia que a matéria é “um espírito instantâneo”, não a declarava, bem ou mal, insensível?  Toda consciência é, pois, memória – conservação e acumulação do passado no presente.

 

Mas toda consciência é antecipação do futuro.  Consideremos a direção de nosso espírito a qualquer momento:  veremos que ele se ocupa do que ele é, mas sobretudo em vista do que ele vai ser.  A atenção é uma expectativa, e não há consciência sem uma certa atenção à vida.  O futuro lá está: ele nos chama, ou melhor, ele nos puxa:  esta tração ininterrupta, que nos faz avançar na rota do tempo, é também a causa de que ajamos continuadamente.  Toda ação é um penetrar no futuro.

 

Reter o que já não é, antecipar o que ainda não é, eis a primeira função da consciência.  Não haveria para ela o presente se este se reduzisse ao instante matemático.  Este instante é apenas o limite, puramente teórico, que separa o passado do futuro;  ele pode a rigor ser concebido, não é jamais percebido;  quando cremos surpreende-lo, ele já está longe de nós.  O que percebemos de fato é uma certa espessura de duração que se compõe de duas partes:  nosso passado imediato e nosso futuro iminente.  Sobre este passado nos apoiamos, sobre este futuro nos debruçamos;  apoiar-se e debruçar-se desta maneira é o que é próprio de um ser consciente.  Digamos, pois, que a consciência é o traço de união entre o que foi e o que será, uma ponte entre o passado e o futuro.

 

 

(Henri Bergson,  A consciência e a vida.

São Paulo, Abril Cultural, 1974)