Penso nessa frase que G. E. Lessing escreveu: “O maior dos milagres é que os milagres verdadeiros nos apareçam como banais ocorrências de todos os dias.” De fato, precisaríamos de uma escola do olhar que nos ajudasse a compreender a natureza do que acontece e nos escapa. Precisaríamos de aprender a colher o sentido daquilo que efetivamente se joga diante dos nossos olhos, tanto no real que nos é distante como naquele que nos está mais próximo e se aloja, inclusive, dentro de nós. Por um estranho automatismo, nunca suficientemente criticado, damo-nos mais facilmente conta do mal do que do bem. O mal salta-nos à vista e como que nos obsidia. A ele reservamos a condição de coisa extraordinária: uma peça que se solta e se destaca, um elemento inesperado que se manifesta, uma contrariedade que emerge, um problema no qual imediatamente nos concentramos. Não nos apercebemos logo, mas à custa de nos focarmos na parcela de negatividade cria-se uma distorção do nosso olhar, já que perdemos a capacidade de considerar a vida na sua inteireza. E tal ocorre, em grande medida, por julgarmos ainda o bem uma banalidade; um pressuposto que nos é absolutamente devido e que, por isso, nem nos sentimos no dever de agradecer; um mero resultado fisiológico da existência ao qual não reconhecemos qualquer intencionalidade. Não admira que os grandes milagres nos passem ao lado como banais ocorrências para as quais reservamos apenas olhos sonolentos.

Bastaria, contudo, colocarmos em prática um exercício de observação contrária. Que arrancássemos a jornada enumerando, com gratidão, o interminável elenco do bem de que somos atores e testemunhas. A começar pelo prodigioso espetáculo da própria vida sem mais, a nossa e a das outras criaturas. Bastaria abrir a janela ao romper do dia e demorar uns instantes a percorrer como este mundo, mesmo no seu degrado ou nas suas aflições, não deixa de nos rodear sempre de elementos suntuosos, de miríades de detalhes luminosos que recordam como a graça pesa infinitamente mais no prato da balança. E, ainda quando sentimos o agravo daquilo que nos tirado, é sempre mais e mais espantoso o que nos é oferecido. Na origem da vida está, assim, a bênção e esta sua admirável excedência à qual deveríamos colar o nosso coração. Isso que, por exemplo, a poesia de Walt Whitman ensina, quando diz: “Não conheço nada que não seja um milagre:/ ou ande eu pelas ruas de Manhattan,/ ou erga a vista sobre os telhados/ na direção do céu,/ ou pise com os pés descalços/ a franja das águas pela praia,/ ou converse durante o dia com uma pessoa a quem amo/ [...] ou olhe os desconhecidos na carruagem/ de frente para mim [...]// Cada momento de luz ou de treva/ é para mim um milagre,/ milagre cada polegada cúbica de espaço,/ cada metro quadrado da superfície da terra por milagre se estende/, cada pé do interior está apinhado de milagres.” 

Não há dia nenhum em que não sejamos visitados por um anjo. O grande desafio, porém, é o da hospitalidade que estamos ou não disponíveis a viver de forma concreta. Há um passo de um texto bíblico, a Carta aos Hebreus, que centra precisamente aí a necessária conversão da nossa atitude: “Não vos esqueceis de praticar a hospitalidade; pois agindo assim, mesmo sem o perceber, muitos acolheram anjos” (Heb 13:2). A maior parte das vezes, a questão não é inventar, mas reconhecer. Não é tanto forçar a irrupção do inédito, mas reaprender a ver o habitual. Não é a descoberta aparatosa, mas o abraço humilde à vida que nos é dada e às suas circunstâncias.

Dom José Tolentino Mendonça

In: imissio.net 30.08.21