Miserere: A nudez poética de Adélia Prado
Miserere é o sugestivo título da última obra poética de Adélia Prado. Neste livro, as palavras da poetisa enamoram-nos quer pela metafísica, quer pelo desvendamento do que frequentemente se vincula ao quotidiano, proporcionando-nos a descoberta da grandeza da vida nas pequenas coisas.
A poesia adeliana possui a capacidade de estabelecer um diálogo permanente com Deus e uma ponte para a transcendência, veiculando uma crença na perenidade da carne e na eternidade da alma. Miserere nobis sugere um título no qual a fé se expressa através da poesia e a poesia se assume discursivamente como uma manifestação de fé.
Diante do medo, da insegurança, da morte e do pecado, a fé é chamada a permanecer intrinsecamente unida ao Criador, que sempre Se volta para nós com os Seus olhos de misericórdia. Adélia convoca-nos a contemplar a beleza da vida que floresce, mas também a ver, com os olhos de Deus, a fraqueza da carne nos afazeres do dia-a-dia, na certeza de que em todas as circunstâncias, a Beleza nos acompanha provocando-nos o espanto diante da magnificência da existência humana, lugar onde a vulnerabilidade se converte num laboratório de vida.
Adélia Prado iniciou o seu percurso biográfico como professora de filosofia, exercendo o magistério durante vinte e quatro anos até que, em 1976, surge no cenário da poesia brasileira a sua obra Bagagem, marcada pela novidade formal, apreciada por exímios escritores como Carlos Drummond de Andrade e Affonso Romano de Sant´Anna. Nesta sua primeira obra, revela uma maturidade estilística que vai determinar todo o seu posterior percurso literário. A poesia de Adélia configura a revalorização do feminino nas letras e o papel da mulher como ser-pensante.
Uma relação entre literatura e religião que compreenda ambas como criaturas irmãs e seres da linguagem permite-nos pressupor que as experiências poética e religiosa são correlativas enquanto experiências de sentido e, uma vez que se expressam em linguagem simbólica, encontram-se numa analogia formal. A última obra de Adélia, intitulada Miserere, convida-nos a percorrer esse pressuposto e a questionar a mutualidade entre as funções estética e religiosa no interior da ação criativa do ser humano. Numa entrevista concedida ao jornal Folha de S. Paulo, Adélia afirma a dimensão epifânica da poesia:
(…) poesia é a revelação do real. Experimentar a poesia é experimentar o real, o que de fato é. Ela é desveladora da realidade, ela permite a você a desmistificação da vida. [...] o poeta é como o filósofo, é aquele que está centrado no real. Por isso, ele é tão importante no processo de humanização das pessoas. [...] o discurso poético é uma epifania, revelação constante. Revelação dirigida à sensibilidade, que não conta com a inteligência, que envolve.
No poema Quarto de Costura, encontramos os elementos simbólicos que remetem à sensibilidade religiosa, imbuída na poética adeliana. Com considerável simplicidade, Adélia valoriza neste poema a figura feminina na imagem de um óvulo que contém a potência de um universo. Demonstra uma questionadora interpelação ao entregar-se a Deus perante as perguntas, deixando-se levar pelo afazer quotidiano de um bordado esquecido. Realiza ainda uma referencialidade bíblica e filosófica que não resiste ao apelo do corpo como lugar e condição de uma realização última do ser humano.
Interessante é perceber que a fé, como experiência humana, se transforma em linguagem poética e que o poema adquire uma estrutura corporal. Adélia é fascinada pelo mistério da vida! Ela contempla toda a criação como um “espelho de Deus”, onde a multiplicidade pertence à Unidade, onde um “óvulo imaginado” se abre em universos, onde o Mistério da Vida acontece no desabalar do olhar da fé e do coração pulsante de Deus.
A poesia adeliana carrega em si o desejo de alcançar um entendimento para além de uma fé alienada e nesse sentido Adélia questiona e interpela a compreensão da sua existência. A presença de Aristóteles e Platão mostra a inquietação em busca dos conhecimentos das questões universais inerentes ao ser humano. É na aceitação da natureza humana, da sua fragilidade e mortalidade, na saudade de algo feito de “carne e ossos”, na “acidez do sangue”, que o sujeito poético encontra o que deseja como quem carrega a sua cruz, para nela dar a vida e mergulhar no mistério insondável de Deus.
Os poemas de Adélia revelam peculiaridades de uma reflexão metalinguística, reflexão na qual as palavras são encaradas pela poetisa com um efeito vivificador e questionador, vivenciando a experiência poética em toda a sua força e corporeidade, aproximando a poesia do sagrado. O campo poético adeliano revela uma mistagogia onde o humano e o divino se dão as mãos, onde o infinito se funde no finito, parecendo configurar uma unidade intrínseca. De fato, o eu lírico é permeado de dúvidas e crenças nas quais é simultaneamente possível tocar o transcendente, o incondicional. Adélia tem um olhar de águia, com o qual é capaz de ver a vida como uma existência criativa e repleta de sentidos. Em Pontuação, por exemplo, podemos perceber que o mundo adeliano suporta o encontro paradoxal entre a condicionalidade da existência e a incondicionalidade de sentido:
(…) O medo pode explodir-nos,
é com zelo de quem leva sua cruz
que o carregamos.
Por isso, Deus, Vossa justiça é Jesus,
o Cordeiro que abandonastes.
Assim, quem ao menos se atreve
a levantar os olhos para Vós? (…)
Adélia comunica um encontro com o mundo em que este ora transparece em lúcida revelação, ora de si prorrompe tudo aquilo que o transcende. A poesia é esta linguagem simbólica à qual a poetisa recorre para expressar a sua experiência de encontro com o mundo. Na sua obra, as coisas estão imbuídas de sentido e carregam em si as marcas de Deus, sensível aos olhos da fé. A poesia parece ser uma via de se chegar ao real, de se contemplar na realidade do dia-a-dia os rastros de Deus nas coisas. Nas palavras de Mircea Eliade, esta constitui uma peculiaridade da existência do ser religioso no mundo:
Qualquer que seja o contexto histórico em que está imerso, o homo religiosus crê sempre que existe uma realidade absoluta, o sagrado, que transcende este mundo, mas que se manifesta nele e, por isso, o santifica e o faz real. Crê que a vida tem uma origem sagrada e que a existência humana atualiza todas as suas potencialidades na medida em que é religiosa, ou seja, na medida em que participa da realidade.
Adélia concebe a criação literária como um mistério que é quase um sinónimo de fé, ou seja, algo que não se explica através da inteleção, mas advém da experiência com o sagrado. A poesia leva-nos a ler a vida humana com o pano de fundo do sagrado. É na luz do transcendente que as palavras poéticas ganham um sentido e se humanizam, revelando a beleza e o ser das coisas.
Na poesia adeliana está patente a força da fé! É esta fé, muitas das vezes provada, dura, desconcertante, desinstaladora, que conduz o sujeito poético ao amadurecimento na oração, na espera pelo tempo de Deus. O poema Sala de espera revela a ansiedade do eu lírico que procura um consolo e uma resposta para os seus questionamentos e, no fundo, só se confronta com a dureza das palavras das Escrituras Sagradas:
A Bíblia, às vezes, não me leva em conta,
tão dura com minha gula.
Nem me adiantou envelhecer,
partes de mim seguem adolescentes,
estranhando privilégios.
Nunca me senti moradora,
a sensação é de exílio (…)”
A Bíblia mostra-se “tão dura” perante a voracidade do desejo de alimentar uma espécie de carência existencial que não foi sanada pela maturidade, em que os questionamentos permanecem “adolescentes”, em contínuo desenvolvimento. Ao mesmo tempo, a confiança na sabedoria divina de que “Deus sabe o que fez” faz o sujeito poético superar o medo, tendo na sua fragilidade a condição primordial para o entendimento da matéria humana. Adélia termina o poema de uma forma mais esclarecida, consciente de que a “fraqueza me põe no caminho certo” e na esperança de que Deus nunca abandona ou desampara o homem. Em Jó Consolado, o eu lírico aparece já amadurecido, com uma sólida esperança, na qual compreende o sofrimento e lhe confere um sentido transcendente. Desta forma, o corpo cansado desperta e a língua feita de argila louva pelo Amor visceral que Deus tem pelo homem, libertando-o de toda a dor, vergonha e má sorte.
Na poesia adeliana, destaca-se um misto de temáticas inerentes à infância da poetisa, à sua ligação com os familiares e amigos. No poema A que não existe, fica patente a temática da saudade. Adélia adentra-se num saudosismo que é preenchido pela abissal confiança em Deus. A poesia transporta em si o poder de eternizar a beleza dos momentos vividos, de trazer à memória pessoas e acontecimentos que marcaram a nossa peregrinação sobre o chão desta terra. A poesia aporta sentido às lembranças e atribui forças para prosseguir na construção da história da humanidade, com o sentimento de gratidão, como bem expressa o poema Contramor, por aqueles que nos concederam o dom da vida.
A poesia conduz-nos à dialética entre vida e morte, alegria e tristeza, saúde e doença. Leva-nos a confrontar com as distrações no velório de Filipa e, ao mesmo tempo, nos “espasmos no santuário” faz-nos contemplar o amor que Deus tem pelo pequenino rebanho que, apesar das feridas que sangram, dá a vida àquele que na sua fragilidade se encontrava morto. É nas três aves juntas que a poetisa nos leva a mergulhar na perfeita alegria da Trindade Santa. Num dia de inverno, a poesia convida-nos a maravilhar com o sol nascente que ilumina a beleza linfática do mundo. O olhar puro e simples de Adélia traz cor e beleza às coisas, mesmo diante do incompreensível emerge um facho de luz que plenifica e rodopia a existência humana:
(…) Mas eis que a noite constela-se
e, com tanta acha de lenha
e tanta casca de pau,
já tenho como fazer uma fogueira bonita.
Espelho meu, estilhaça-te!
Escolho o baile,
quero rodopiar.
Na poesia de Adélia Prado, há um constante ir e voltar, numa conversa em que se cruzam vários assuntos. Em muitos deles, o sujeito poético começa um tema, passa para outro, faz um retorno ao primeiro e convoca um terceiro, tal como uma espiral. Isso ocorre, porque provavelmente o processo poético de Adélia se desenvolve com o olhar, com a contemplação e, finalmente, com uma reformulação. A beleza das coisas motiva o observador a expressar os seus encantamentos. É através da via da beleza e da forma que a realidade adquire o verdadeiro sentido e, por isso, é necessário olhar, contemplar e reformular o processo poético. A poesia tem, por isso, a capacidade de nos remeter para a beleza suprema das coisas que tudo purifica, que tudo transforma, que tudo recria. Alfredo Bosi, em sua obra O ser e o tempo da poesia, afirma que:
Belo é o que nos arranca do tédio e do cinza contemporâneo e nos reapresenta modos heroicos, sagrados ou ingênuos de viver e de pensar. Bela é a metáfora ardida, a palavra concreta, o ritmo forte. Belo é o que deixa entrever, pelo novo da aparência, o originário e o vital da essência.
Mesmo Fiódor Dostoiésvski afirmava: “A beleza salvará o mundo”. Com a Encarnação do Verbo, não há dúvidas de que esta Beleza tem um rosto e um nome: Jesus de Nazaré! É a própria Beleza que assume a forma humana para elevar e dignificar o homem, criado à sua imagem e semelhança. O título desta última obra de Adélia é uma feliz invocação à misericórdia desta Beleza encarnada: Miserere! É a beleza nua desta misericórdia que salva, que transforma e que recria. Jesus é a “palavra concreta” e o “ritmo forte” que dá vitalidade e beleza às coisas criadas.
O olhar de Adélia faz da poesia um sursum corda, um signo sagrado de ética religiosa aliada à opção estética. Confrontamo-nos com a afirmação de princípios poéticos e éticos, em que a metalinguagem é o ponto de partida para uma discussão existencial. Através do concreto, chega-se ao abstrato. Enquanto matéria palatável, o poema transforma-se em algo que se pode “lamber” e “devorar”: “Pus um ponto final no poema / e comecei a lambê-lo a ponto de devorá-lo”, diz Adélia em A Pontuação. Numa cena insólita, o sujeito poético é tomado por pensamentos caracterizados como estranhos: “numa bandeja de prata / uma comida de areia, / um livro com meu nome / sem nenhuma palavra minha”. Depois a imagem de uma cruz que é carregada pelo homem num ato semelhante ao de Cristo: “O medo pode explodir-nos, / é com zelo de quem leva sua cruz, / que o carregamos” – uma mistagogia que pode ser compreendida como metáfora para a aceitação do sacrifício da condição humana.
Miserere evoca o clamor da intimidade, onde a poesia dá voz e sabor ao brado da nudez existencial de cada homem e cada mulher. Miserere é o diálogo com Deus, através dos acontecimentos da vida humana. Nas fragilidades, nos sentimentos de inadequação, nos descompassos entre o corpo e o espírito, a luz da fé deve permanecer acesa, como evoca o poema Humano: “A alma se desespera, / mas o corpo é humilde; / ainda que demore, / mesmo que não coma, / dorme”.
Diante do medo e da instabilidade, a fé é convidada a permanecer constante. Construir, reconstruir, cair, levantar, carne, espírito, mistério, morte, vida, pecado, Deus. Tudo se transforma em poesia! Tudo se transforma em oração! Adélia convida-nos a amar a nudez da nossa carne. Amar sempre! O amor salva e liberta! E, quando não amamos, devemos suplicar: Miserere! Em Adélia, o pecado maior, que brada aos céus, que desfigura o corpo e a alma, é não amar, é recusar-se à abertura do coração. No dizer de Carlos Drummond de Andrade: “Não catei o verme / Não curei a sarna / Não amei bastante meu semelhante / Não amei bastante sequer a mim mesmo.” É deste pecado, mais do que de qualquer outro, que devemos ser perdoados e por isso rezamos o Miserere! O mistério da Encarnação dobra a cerviz, pois nele habita a infinda beleza de Deus que nos ama e nos conduz à Beleza do seu misericordioso Coração.
A nudez poética adeliana clama por um Miserere nobis, mas também ecoa uníssono um Laudato Si, como bem sugere poetisa:
“Louvado seja Deus, meu Senhor, porque o meu coração está cortado a lâmina, mas sorrio no espelho ao que a revelia de tudo se promete, porque sou desgraçado como um homem tangido para a forca, mas me lembro de uma noite na roça, o luar nos legumes e um grilo, minha sombra na parede. Louvado sejas porque eu quero pecar contra o afinal sítio abrasivo dos mortos, violar as tumbas com o arranhão das unhas, mas vejo tua cabeça pendida e escuto o galo cantar três vezes em meu socorro. Louvado sejas porque a vida é horrível, porque mais é o tempo que eu passo recolhendo os despojos. Velho é o fim da guerra como macabra, mas limpo os olhos, do muco do meu nariz, por um canteiro de grama. Louvado sejas porque eu quero morrer, mas tenho medo e insisto em esperar o prometido. Uma vez quando eu era menina quando abri a porta de noite, a horta estava branca de luar e acreditei sem nenhum sofrimento, louvado sejas.”
Bendita e louvada seja a nossa nudez!
Pe. Me. Alexsander Baccarini Pinto
Mestre em Teologia pela
Universidade Católica Portuguesa, Lisboa.