Não dá para desconversar. Tem uma revolta no ar como uma eletricidade. Quem não sente? Tem uma verdade entrando pelas narinas dos hipócritas. Não dá para virar as costas, pedir licença, até a próxima. Quem usa a palavra é posto à prova no ato. A vida bruta, cheia de olhos e mãos, é a prova. Não dá para amainar, desviar numa curva suave. Não há desvio, não há curva suave. Um poeta morreu, retirou-se farto da ceia como quem diz “aguentem vocês que podem”. Uma mulher que era multidão, uma mulher que não tinha medo dos batalhões da morte, foi morta numa emboscada. Essas coisas não podem trazer paz. Essas coisas dão no contrário da paz. É como uma vista para o pelourinho, como uma vista para o Gólgota. Não há como pensar “isso a mim não me toca”. O tal Simão de Cirene quis pensar assim, que não tocava a ele aquela cruz, e lá estava Simão metido na via dolorosa, ele que nada tinha a ver com aquilo, ele Simão que nem era dali, só estava voltando do campo. E o que era aquela enormidade onde estava metido agora? Como é que ele, justamente ele, que não fazia parte da vida daquele outro homem, como é que ele Simão, que até ali não tinha importância que o fizesse entrar para a história, estava agora no centro da cena, com a cruz de Cristo nas costas? Dava por acaso para se desculpar com o centurião, dizer “essa cruz não me pertence”? Simão de Cirene foi apanhado, obrigado a participar, arrastado a viver na pele o que ele achava que não era da sua alçada. Não dava para pedir licença, voltar para casa, fechar a porta. Não dá. Tem uma verdade no ar que é o contrário da paz e não há quem não sinta, não há quem não saiba.
Mariana Ianelli
In: RUBEM 24.03.2018