Foram dezenas os balanços da visita do papa Francisco ao Brasil. Todos, sem exceção, destacando a mudança de rumos da Igreja Católica. Embora o próprio cardeal Bergoglio propusesse uma nova topologia política – em vez de esquerda e direita entra o par centro e periferia –, desviando da inspiração da ideologia para a do ativismo, o que se constatou foi uma aproximação destemida entre religião e política, como há muito não se via.


Temos, todos nós, ocidentais pós-iluministas, uma concepção muito restrita de religião. Tudo se passa como se a crença fosse apenas experiência individual, enraizada na sensibilidade e na intuição. Perto de ser incomunicável, ela passaria ao largo de todo o esforço da razão em buscar a verdade. Mesmo o compartilhamento de valores, na linha da comunidade de destino, teria como suporte a relação direta com o sagrado, sem necessidade de justificação de qualquer natureza. A crença não precisa ser explicada. 

Como se houvesse, no processo que nos constitui como pessoas, etapas que fossem se sobrepondo. Sobrecarregados pelo mistério da vida, todos nascem religiosos, com o tempo aprendem que a fé não garante nada além do próprio sujeito e, então, abre-se o terreno para a razão, as ciências e a arte, entre outras formas de expressão do nosso caminho em direção à maturidade. 

Esse tem sido um caminho convencional, que separa fé e razão, ciência e superstição, indivíduo e sociedade. Basta prestar atenção na forma como as pessoas se tornam religiosas ou têm sua concepção de Deus moldada por uma cultura infantil: o Deus do medo, que tudo vê e tudo pode, além do espaço da compreensão e do diálogo. No entanto, quando se trata da experiência racional, quanto mais maduros, mais estamos abertos ao debate com o outro. Nossa concepção de razão amadurece com o tempo, nossa concepção de Deus queda adormecida em motivos atávicos.

Os adultos sabem que não existiram Adão e Eva, compreendem que se trata de uma história simbólica, o que permite, portanto, que convivam no mesmo sujeito dimensões da religião e da ciência. No entanto, nem tudo na religião (como querem os novos profetas do ateísmo) se reduz ao embate com a racionalidade. Não somos fé ou razão, mas fé e razão. A experiência religiosa, para merecer o campo de constituição do homem maduro, precisa dar a ele uma experiência que não seria alcançada em outro terreno que não o da espiritualidade.

Por isso, na história do pensamento, encontramos grandes filósofos e cientistas que, mesmo senhores dos instrumentos da razão, não apenas mantiveram sua inserção religiosa no mundo, como fizeram questão de refletir sobre elas. É o caso de, entre outros, dos filósofos Husserl (1859 –1938), Peirce (1839 –1914), Bergson (1859 –1941), Maritain (1892 –1973), Lévinas (1906 –1995) e Ricouer (1913 –2005) e de cientistas do porte de Max Planck (1858 –1947), Werner von Braun (1912 –1977) e Einstein (1879 –1955).

O que, no projeto intelectual desses pensadores, permite que tenham se dedicado com igual empenho à razão e à religião? Sobretudo a certeza de que, no terreno da fé, estamos tratando de uma experiência pessoal, e não de um conjunto de saberes ou instrumentos. A religião – e por isso ela não é contraditória com a razão – não se encaminha para o território do conhecimento, mas da prática de vida. Ser religioso não é sustentar um conjunto de dogmas (quase sempre equivocados), mas se comportar em relação aos outros a partir da noção de compromisso. Nesse sentido, toda religião é, antes de ser dogmática, política.

É preciso, no entanto, distinguir religião de igreja. A experiência religiosa, mesmo em grande parte dos casos se manifestando a partir da convenção que emana de uma igreja, qualquer que seja ela, vai muito além da institucionalidade. Talvez por isso os cismas e as heresias sejam o terreno comum das igrejas: não é possível emparedar o impulso para a transcendência nas normas sistematizadas por uma estrutura hierárquica, marcada por disputas internas. 

Uma forma de constatar essa contradição é perceber como, hoje, todas as posições radicais em termos religiosos são resultado de demandas políticas, não de verdades reveladas. Assim, judeus e palestinos disputam a mesma região ancorados em argumentos pretensamente religiosos e de precedência histórica; católicos e evangélicos batalham pelos mesmos fiéis, igualmente sustentados por argumentos fundamentalistas que são traduções de interesses políticos claros; os muçulmanos são considerados perigosos em razão de comportamentos nitidamente políticos, que ganham tradução fideísta. 

Reviravolta de Francisco 

A visita do papa Francisco ao Brasil foi histórica exatamente por revelar a dimensão política da experiência religiosa. Não se trata de buscar aproximação com a teologia da libertação, em sua opção preferencial pelos pobres, ou de valorizar as críticas dirigidas ao consumismo e ao modelo inviável de desenvolvimento econômico concentrador e anti-humanista. Fosse isso, o papa apenas estaria apontando uma reversão de rota, um arejamento nas posturas tomadas pela Igreja Católica nas últimas décadas.

Há uma radicalidade nas atitudes de pronunciamentos de Bergoglio que apontam para a recuperação da dimensão social e comunicativa da experiência religiosa. O papa assumiu uma posição que vira as costas para o clericalismo (uma igreja que tem como gozo a realização ritual de seus mandamentos e convenções, entre a burocracia e o autoritarismo), para a ostentação (com a desconstrução de todos os símbolos de distinção de classe que vieram da nobreza para os corredores do Vaticano) e para o solipsismo (mantido vivo pelas seitas conservadoras que valorizam apenas atitudes pessoais e, quando muito, assistencialistas e redentoras de culpas psicológicas).

Além disso, e talvez tenha sido o ponto marcante da reviravolta franciscana, o papa fez questão de juntar no mesmo projeto as dimensões da espiritualidade e da convivência social. Reconheceu erros, defendeu punições exemplares aos ladrões, fugiu de qualquer desvio corporativista no julgamento de ações tomadas no âmbito da vida social. Diferenciou pecadores – que somos todos, segundo ele – dos criminosos. Aos primeiros, o perdão; aos outros, a cadeia.
Enquanto os papas anteriores tentavam separar pedofilia de Igreja e crimes financeiros da cúria, por exemplo, o novo papa não quis dar a ações condenáveis a capa de qualquer justificação religiosa, histórica ou dogmática. Nesse sentido, lembra a atitude de João XXIII, que, ao saber de uma greve dos servidores do Vaticano, ordenou o imediato processo de negociação que resultou em aumento de salário. Quando advertido de que o dinheiro sairia de obras da Igreja, respondeu: “Primeiro a justiça, depois a caridade”.

Por fim, a nota preocupante: há preconceito violento de parte da sociedade brasileira em relação aos evangélicos. É preciso reconhecer que grande parte da mídia e dos estudiosos da religião – postura que ecoa na classe média – compreende as religiões pentecostais e neopentecostais como capitulação, um sintoma de empobrecimento espiritual.

Várias análises apresentadas na última semana faziam questão de encarar a perda de fiéis da Igreja Católica para os evangélicos como um problema que precisava ser superado, doença social carente de tratamento, nunca como opção livre dos crentes. Nação acostumada a se sentir católica (“o maior país católico do mundo”), parece haver dor de consciência pelos fiéis perdidos pelo catolicismo, dor esta que instiga pesquisadores, jornalistas e leigos a se esforçar com ideias que contribuam para a “recuperação” dos fiéis à sua origem. 

Há inspiração quase higienista e discriminatória por trás dessa atitude. Não que os evangélicos façam por merecer boa vontade, é só seguir suas manifestações preconceituosas, homofóbicas e questionáveis em termos éticos, sociais e econômicos. Mas essas são atitudes das quais a Igreja Católica, por sua vez, não pode igualmente se jactar em sua longa trajetória de equívocos. 

A melhor lição ficou mesmo com Francisco ao se dirigir aos jovens: “Sejam revolucionários”. É bem mais edificante que ser católico ou evangélico. 

 

João Paulo Cunha

Coordenador do Caderno Pensar do Jornal Estado de Minas

Texto publicado em 03/08/2013 no Jornal Estado de Minas