Uns gostam de palavras-cruzadas, quebra-cabeça, xadrez. Eu gosto de ver os anúncios das casas no bairro que estão à venda. Procuro as razoavelmente modestas, com apenas um luxo imprescindível: um jardim. Vou entrando nas casas, uma a uma, de madrugada, sem barulho, como um crime. Piso em chão de taco de madeira, subo escadas que dão em corredores sombrios. Casas fartas de memória não fazem caso de acolher gente estrangeira, já basta a cada uma a própria saga de avós, pais, filhos e netos. Passo adiante, entro no sobrado da rua Safira, entro na casinha de arco branco coberto de trepadeiras da Dr. Félix. Nessas casas, sim, eu me demoro. Nelas vejo espaço para novas histórias. Há sol nos quartos, na sala, na cozinha, uma luz que é água de lavar e fazer fluir, as paredes brilham, o escuro não consegue refúgio nem nas escadas. No quadrado de grama do quintal da rua Safira, plantando, regando, podando, cabe um manacá. Eu acordo cedo, agora sou a primeira da casa a levantar, passo a manhã com a minha filha debaixo do nosso manacá. Num canto do jardim, balança no vento a nossa rede. Vem lá de cima, da janela da cozinha, a voz que mesmo num fiapo meio apagado de som eu reconheço. Está pronto o café, acabou de sair. Faz silêncio na nossa casa. O dia dá sua hora no sino da Nossa Senhora do Carmo. Distribuímos o que fazer entre manhã e tarde, subimos e descemos degraus não sei quantas vezes, subimos e descemos tão naturalmente que já nem atinamos para isso. À noite, no verão, dá para ver a lua do quintal e pisar na terra ao mesmo tempo. Ainda estamos no inverno, mas, mesmo faltando a lua, mesmo com os cachorros ganindo de frio e um bando de gente enrodilhada nas ruas, meu sonho é um fantasma do bem que vaga pelo bairro nas horas mortas farejando minúsculos jardins. Podem vender a casa. Ninguém sabe o sonho que mora ali.
Mariana Ianelli