Gosto daquela velha olaria com suas altas janelas rasgadas para o céu num quadro de 1947 de meu avô. Gosto dos primeiros tempos de um artista, quando tudo nele ainda é nascente como no país da infância. Aquelas pinceladas sólidas quase em relevo. Aquele primeiro tatear de formas. Dezenas de estudos do corpo feminino como anotações de um amante obcecado. Os muitos exercícios de luz e sombra, perspectivas, profundidades. Um barco solitário atado a uma corda numa marinha sem data. Uma figura curvada sobre um livro. Naturezas-mortas com gladíolos, uma abóbora aberta ao meio e uma jarra de prata brilhante. Paisagens de campo com pinheiros invertidos no reflexo de espelhos d’água. Esboços de detalhes anatômicos de uma orelha, um olho, uma boca. Desenhos realistas demais, acadêmicos demais, ou o contrário, excessivamente românticos, gestuais, impressionistas, todos eles como que felizes em seus excessos num éden antes da expulsão e do vexame. O autorretrato do menino Picasso aos quinze anos com sua franja selvagem como uma pata de urso, uma jovem Frida num robe vermelho-sangue, esguia como uma mulher de Modigliani, o amarelo berrante das casinhas de Kandinsky antes de tornar-se Kandinsky, a árvore primeira e nada elementar de Mondrian embaraçando-se num caos de traços. Gosto dessa infância dos caminhos, dessas mãos estreantes, experimentais, exploradoras, estonteadas com o começo de tudo, mãos ainda sem nome nem traquejo, ocupadas em se autodescobrir antes de fazer história.

 

Mariana Ianelli é escritora, mestre em Literatura e Crítica Literária pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, autora dos livros de poesia Trajetória de antes (1999), Duas chagas (2001), Passagens (2003), Fazer silêncio (2005 – finalista dos prêmios Jabuti e Bravo! Prime de Cultura 2006), Almádena (2007 – finalista do prêmio Jabuti 2008), Treva alvorada(2010) e O amor e depois (2012 – finalista do prêmio Jabuti 2013), todos pela editora Iluminuras. Como ensaísta, é autora de Alberto Pucheu por Mariana Ianelli,  da coleção Ciranda da Poesia (ed. UERJ, 2013). Estreou na prosa com o livro de crônicas Breves anotações sobre um tigre  (ed. ardotempo, 2013).