Conheci-a numa tarde de verão, quando os ramos arqueados pelo peso da folhagem desenhavam uma longa sombra sobre a rua estreita. Serena e majestosa, abrigava naquele tempo uma pequena orquestra de pássaros selvagens e era ponto de encontro de amigos.
Os anos passaram. Tenho-a acompanhado nas adaptações às diversas estações do ano. Esta semana, por exemplo, a chuva caiu generosa e gratuitamente. O ritmo constante da água e a força do vento agitaram repetidamente os ramos secos e, mesmo assim, ela permaneceu silenciosa e serena, como se escondesse o segredo da juventude, a força que em breve a fará renascer. Amanhã será diferente. Amanhã, o vento voltará a agitar a folhagem, como se uma mão divina passasse os dedos pelas cordas de um instrumento.
Por agora, porém, a intempérie oferece ciclos de sucessivas provações. Despem-na do seu esplendor. Despojam-na da alegre companhia dos homens. Quase esquecida, ela está ali, à espera de um sinal da natureza para que volte a ser uma bênção. Ela persiste austera e silenciosa como um monge, de ramos erguidos para o céu, quais braços abertos à procura da eternidade. Serena e majestosa.
A Quaresma bate à tua porta como uma intempérie de sinais e palavras: cinzas, roxo, despojamento, jejum, abstinência, esmola, silêncio, oração e oração. A Quaresma é como um parto. A Quaresma é como se estendesses a mão e ouvisses pela primeira vez «não basta este pão». E a fome põe-te a caminho.
Como a copa da árvore num início de outono, descobres, nestes dias, que os quartos da tua casa estão arqueados de objetos imprescindíveis e imagens endeusadas sob as quais se escreve, num jogo de luz e sombras, «não me adores mais». Ali está também o velho relógio a medir o tempo com um ponteiro que não se cansa de repetir as mesmas voltas. Quantas voltas já deste aos mesmos temas? Quantas vezes já repetiste os esquemas obsoletos na esperança vã de vencer e dominar? Vais aprender, nesta Quaresma, que perder é ganhar?
Compreendes que é tempo de sair sem os artifícios do verão. Viajas em sentido contrário? Percorres ruas esquecidas? Lês mapas antigos? Reencontras aqueles que tens evitado? Não te arrependas nem tentes o Criador com os teus lamentos. A intempérie que te faz sofrer é também aquela que te fortalece. A provação que te despoja é aquela que te enriquece. E se a vocação daquela árvore, serena e majestosa, é confundir-se com o céu, tu também estás chamado a crescer, cada vez mais livre, em direção à eternidade.
Publicado em 08.03.2019 no SNPC