Aprovado em primeiro turno na Câmara Municipal, o Projeto de Lei 751 visa “flexibilizar” a Lei do Silêncio, aumentando o limite de ruído permitido na cidade. Sua alegação grita aos céus: os limites estariam baixos porque o barulho está alto, legalizar o ruído estratosférico atenderia melhor a cidadãos e negócios para os quais ruído é “legal”. Seguindo o mesmo raciocínio: deveríamos legitimar a corrupção já que se apresenta como comum, norma infalível em certos ramos de atividade “social”? O escândalo quer ganhar patente.
“Pedra de tropeço” é o significado literal de skandalon em grego, quando colocada diante do cego para que tropece, “pedra” indica engano, tentação, armadilha, tudo aquilo que faz cair, que induz a pecar (Levítico). Escândalo é metáfora de tropeços e vícios morais que diariamente se armam para nós, de obscuros poderes que nos
preferem cegos, isto é, surdos, imersos no ruidoso nada que nos exaure. A relação entre ética e audição é mais que estreita, sem audição a boa conduta é impensável. Má audição é maldição, corrupção ativa dos ouvidos esquecidos. Não é lucro, é escândalo.
A população carece de uma Lei de Educação e Saúde Auditiva, não de uma Lei Anti-Silêncio que garanta impunidade, que prometa isenção de responsabilidade na escalada de violência deci-bélica. O barulho é astro coadjuvante da violência, a zoeira é o som da mentira em excesso. É a Lei do Ruído, melhor, é uma compulsória Lei da Surdez (moral e auricular) que se impõe em nosso cotidiano. Se os valores referenciais em decibéis nos parecem baixos, é porque já estamos surdos; não são os limites que estão baixos, nós é que andamos “altos” demais.
Da árvore do silêncio pende seu fruto, a paz, assim dizia Schopenhauer. O silêncio desperta e fertiliza a consciência, aqueles que acolhem o silêncio e suas bênçãos ganham asas, cantam, conversam, tocam, transbordam paz e esperança para todos. Silêncio é a eterna voz do divino que anima a vida, que ganha forma na música, no tempo, na palavra, na memória, ela é ouvida pela alma em busca de sentido. Silêncio não é ausência, mas presença que nos ensina o essencial, é o ruído que em desespero berra ausências e insuficiências. Muitos ficam apavorados sempre que o silêncio ameaça surgir, sempre que a consciência vem à tona para alertar sobre os rumos que sua vida tem tomado. Medo inconfesso projeta para fora de si a ruidolatria, adoração de ruído compensatório viciante ensurdecedor, destinada a “silenciar” o silêncio que tudo revela.
O ídolo é nossa melhor armadilha. Difícil andar sem tropeçar. Na guerra das frequências repetitivas, promíscuas, desrespeitosas, em meio à inflação de escândalos, ídolos competem com ídolos, vícios com vícios, ruídos com ruídos, pedras com pedras, brigam pelo poderio decibélico. Inventamos uma espécie de realidade paralela, esquizoide, esquizofônica, dissociada da vida, em que a idolatria do ruído opera a serviço dos mecanismos de fuga e escape. O projeto 751 é pedra no sapato, digo, pedra no nosso ouvido, não se deve querer tirar vantagem política e comercial da surdez alheia.
Escutem: precisamos inserir a noção de silêncio em nosso tecido social, fazer a contenção do barulho (multidão de ruídos viciados) que nos amaldiçoa e tortura, permitir as verdadeiras vozes da vida e da música, voltar à simplicidade das boas condutas. Senão no fim chegamos à calamidade na qual já nos (des)encontramos.
Ilan Grabe
Músico e Educador
Artigo publicado no Jornal O TEMPO em sua edição de sábado, dia 07 de janeiro de 2017, Número 7329, Coluna Opinião, Belo Horizonte, p. 14