Não basta ser salvo. A vida só começa depois de sermos salvos, isto é, após resgate do abismo, do abismo da passividade. Da passividade sem passagem. Não é para darmos fim a problemas e encrencas que somos salvos, é a partir da salvação que começa o tipo de trabalho que nos abençoa, trabalho guiado pela responsabilidade perante si e os outros. Essa salvação não é final, é inicial. Espiritualmente imaturos esperam pela salvação como uma espécie de solução final que mata para finalmente fazer viver. Para fazer viver no fim. A salvação é pensada como isenção de responsabilidade, isenção tornada legal, legalmente livre de cobranças internas e externas, enfim, livre de trabalho. Quem espera por salvações e soluções finais não trabalha, ou mata as possibilidades ou é morto pelas impossibilidades. Vira carrasco ou vítima, ou os dois ao mesmo tempo. Em outras palavras, só quem trabalha se salva.
Trabalho é dom, graça, benção divina. Sem trabalho não há redenção da morte, do engano em vida. Trabalho é dignidade, inteligência, respeito, fé aplicada no real. Trabalhemos pelo melhor possível nesse mundo, para que se faça do possível o melhor e do melhor o possível. É assim que nos aproximamos do impossível que se realiza. Observe que quem não trabalha dá muito trabalho para quem trabalha. Não ajudamos o próximo se trabalhamos por ele sem faze-lo trabalhar também. Sim, socorremos o próximo se o ensinamos a trabalhar (enquanto nós mesmos trabalhamos), a praticar e estudar, a pensar direito, a desobedecer aos desígnios da estressada e deprimida passividade letal. Mesmo que a princípio esperneie, chute, saia correndo. Pelo menos está correndo. Ensine-o a correr bem.
O tipo de trabalho que serve à tortura (o termo “trabalho” deriva do latim “tripalium”, instrumento romano de tortura), ao entortamento moral, à coerção e ao proselitismo, ao “trabalho liberta” (“Arbeit macht frei”) dos campos de extermínio nazistas (com sua “solução final”), esse não é o trabalho da responsabilidade para com o Outro que se hospeda nos outros e em nós mesmos. Trabalho genuíno cura e regenera, renova a fé na Criação que ternamente nos salva do caos, do amorfo indiferenciado.
Creio que Deus tenha feito excelente trabalho ao nos pôr para trabalhar em aparentemente inesgotáveis, insolúveis e insalváveis tarefas. Graças a Deus, Deus generosamente concedeu o dom do trabalho às suas criaturas (à sua imagem e semelhança?). Deve ser por isso que desinventou o paraíso. Tirou-nos do bem bom e nos atirou em tarefas. Deu-nos o dom para sairmos do bem bom. Pôs a responsabilidade em nossas cabeças. Dom é decisão divina em sua ascendência, corajosa de-cisão que com isso assume riscos e perigos futuros. Dom verdadeiro não se encontra, por exemplo, na agenda dos Senhores do Universo, dos Donos da Verdade. Deus certamente não nos quer criados nem como escravos nem como senhores, inclusive Dele mesmo.
Save God. Não o deixe a sós, não o delete, pelo amor de Deus. Salve Deus de complacências e teorias conspiratórias. O infiel e o inimigo são duplos diabólicos da pretensão de salvação sem trabalho. Daí que quem falta ao trabalho se intoxica com raiva, inveja e preconceito, diabolizando a si e aos outros. E trabalho sempre há, sempre aparece na medida em que crescemos e trabalhamos a nós mesmos. Deus nos dá emprego e muito serviço junto ao livre-arbítrio. É o diabo criado nosso que, para nos aliviar do compromisso com a vida real, nos oferece salvações e soluções finais, o definitivo, a regalia definitiva chamada inferno. Ame trabalhar (o) bem antes de dizer amém. Trabalhe para amar e acreditar no bem. Note que nem todo bom trabalho é numerado, reconhecido e remunerado. A verdadeira recompensa cai na alma pessoal de cada um. Muito temos que trabalhar para não sermos abissais e passivos casmurros senhores escravos escravizantes.
Ilan Grabe
Músico e Educador
Belo Horizonte, 30 de abril de 2018